A subida que leva ao Quilombo Sacopã, pela rua de mesmo nome, revela casas de classe alta. A rua localiza-se no bairro da Lagoa. Falei com Celina Almeida Freitas ao telefone e ela me descreveu o portão do Quilombo. Nem precisaria—há nele uma faixa que o diferencia dos outros portões da rua em que se lê “Nenhum quilombo a menos”. Do portão, vejo que a a metade de baixo da escada que dá acesso às casas desapareceu por debaixo da terra. Avisto também o Leandro, que Celina me contou que chegou através de amigos de amigos e que está ajudando com a limpeza, com uma ferramenta do meu tamanho furando a terra. Bráulio Nazaré, que já conheço, está sentado no primeiro degrau que é possível avistar. Na encosta, plásticos cobrem a terra para evitar que ela absorva mais água em caso de chuvas e deslize novamente.
Celina me instruiu a perguntar a Leandro pelo Luiz Pinto, seu tio, líder do quilombo e também, descubro mais tarde, ex-presidente da Associação Quilombola do Estado do Rio de Janeiro. Descubro então que todos são tios, primos, irmãos. O Quilombo é composto por uma única família, originária de Eva e Manoel, que vieram de Nova Friburgo, há mais de 106 anos, onde seus pais e avós haviam sido escravizados, no início do século XX. Como todo quilombo, a história do Sacopã é uma história de resistência.
As casas todas estão de portas abertas. Para se chegar na outra escada de acesso é preciso atravessar por dentro de uma das casas. Essa escada é bem mais íngreme do que a outra—não funciona para Bráulio, que é tetraplégico, e desde as chuvas não consegue retomar sua fisioterapia porque não consegue deixar o quilombo.
Chego a um salão onde se lê em uma faixa “Negro levanta a cabeça”. No meio do salão erguem-se duas árvores, que continuam para além do teto e do chão—as árvores não foram retiradas para dar lugar ao salão, mas o próprio salão adaptou-se à natureza. É nesse salão que aconteciam as festas e as feijoadas.
Luiz aparece e se senta junto a nós na mesa. Da casa do lado, dá para sentir o cheiro do feijão no fogo—e o barulho da panela de pressão. Luiz, assim como vários de seus antepassados, é cantor e compositor de samba. Celina chega com várias sacolas de mercado e começa a distribuí-las. “Um pediu para eu trazer laranja, outro pediu outra coisa. Aproveitando que a gente já desceu a ladeira, né…”, fala risonha.
As festas foram proibidas por pressão dos moradores do entorno, contrariando o Artigo 215 da Constituição que garante aos quilombolas o direito de praticar a sua cultura. Mesmo proibidas, algumas ainda aconteciam eventualmente em datas comemorativas importantes. Durante as chuvas, no entanto, o salão foi todo tomado por lama e esgoto. No momento, os moradores buscam parcerias ou editais que viabilizem a sua reforma.
O problema com o esgoto não é novo. Em cima da encosta nos fundos do quilombo fica um condomínio. Em 2018, um cano estourou lá em cima e o esgoto desceu, invadindo o salão. “O síndico disse que ia tomar providência no próximo dia útil. Era uma sexta-feira! Meu tio disse que não podia esperar, que morava ali com seus filhos, netos. Ele só resolveu quando a gente disse que ia tomar as nossas providências: chamar um repórter”, lembra Celina.
“A gente descobriu que o condomínio que fica lá em cima até têm calhas, mas as calhas caem direto na encosta, inclusive o esgoto. A gente sente cheiro de esgoto”, diz Celina. A água que cai na terra provoca assoreamento e deixa a terra pesada. Quando as chuvas bateram dessa vez, a terra toda deslizou e a lama invadiu as casas.
“A água entrava pela porta de trás e saía pela porta da frente como se fosse um rio. Onde não tinha saída, a lama acumulou, acumulou e estragou tudo. Foi horrível ver tudo desmoronar assim”, diz Márcia Arruda, que também está sentada à mesa. “Você vê a água tomando a sua casa e você não pode fazer nada. Não dá vazão, a água entra mais que você tira. Foi móvel, foi roupa, foi tudo. Graças a Deus não teve nenhum ferido”, diz Luiz.
“Nasci aqui, em 1961. O condomínio foi construído em 1986. Quem está errado? Foram eles que trouxeram problema para a gente. Mesmo por conta da gravidade. As coisas descem, não sobem”, coloca Márcia. “Agora a gente pode perceber claramente a satisfação deles [dos moradores do condomínio] diante disso tudo. De falar ‘agora eles saem’. Ontem mesmo veio um se certificar do quão prejudicado nós fomos pela chuva”.
A limpeza da lama foi os próprios moradores que fizeram. A escada ainda está obstruída. “O poder público não chega e a gente tem que fazer tudo sozinho. Mas não dá para a gente, com a nossa mão de obra, restaurar tudo. Tem que fazer um muro de encosta, de contenção”, fala Luiz. Além de demandar do condomínio a canalização completa da água e do seu esgoto, eles chamaram um geólogo da UFRJ para produzir um laudo da situação, não só para pressionar o condomínio, mas também para acompanhar um ofício que eles entregarão ao Ministério Público pedindo a ação do poder público no local, idealmente da GEO-Rio.
O risco é a Defesa Civil recomendar a remoção das famílias. “Eles vão dizer que tá condenado, que a gente tem que sair. Mas aqui é nosso quilombo. E tem casa que não é afetada em nada”, diz Luiz. “A gente toma cuidado com o poder público. O medo é eles nos removerem arbitrariamente, sem considerar que estamos no processo de obtenção do título quilombola”, completa Celina.
Inicialmente, eles entraram com um processo de usucapião. “Já estávamos aqui há mais de 50 anos. No primeiro julgamento, ganhamos a causa, de uma forma muito bem sustentada. Na segunda instância, perdemos de 3 a 0 e dois meses depois, chegou um oficial de justiça com um processo de reintegração de posse. Aquilo nos despertou uma desconfiança. Se a gente ganha em primeira instância, em segunda é difícil de perder sem nenhum voto a favor. A gente foi descobrir que o relator do nosso processo foi expulso da magistratura por ser vendedor de sentença. Quando esses caras são pegos, eles ganham aposentadoria compulsória, pegam a sunga e vão pra praia. Se fosse a gente, era justa causa, perdia tudo e ainda era criminalizado”, lamenta Luiz.
Hoje, eles estão na antepenúltima fase do processo administrativo de regularização pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) da posse quilombola. “É uma fase que o governo federal começa a procurar nos séculos passados os verdadeiros donos, se é que existem”, explica Luiz. “Nos meus quase 80 anos eu nunca vi dono. Já tiveram uns aí que se titularam donos e na hora na frente do juiz quebraram a cara”.
“Aparecem construtoras fictícias com papéis falsos. A própria associação de moradores, Amofonte, apoia as construtoras. Quando a gente vai à reunião eles param de falar, mudam de assunto. Nós não somos como os outros moradores, somos o alvo principal”, diz Márcia. “Algumas pessoas da associação eram frequentadores dos eventos aqui. De repente a cabeça virou, perceberam o valor da terra”, diz Celina, em alusão à localização do quilombo em um dos bairros mais caros da cidade. Não é só o quilombo que está na mira da associação: “Tentaram tirar o colégio da Pequena Cruzada, retiraram ambulantes da rua—retiraram um rapaz que empalhava cadeiras, um que vendia frutas”, completa ela.
“Já tivemos também umas cinco ordens de origem pública, do estado e do município, com prazo inclusive: ‘Você tem quinze dias se não a gente chega e derruba.’ Não é mole não, é uma resistência secular”, diz Luiz. “O que a gente está passando em pleno século XXI ninguém acredita. A vontade deles é ver a gente fora, mas a gente não sai”.
“E a gente não tem só esse problema. A poda é a gente que faz—deveria ser o poder público a tomar providência”, continua Luiz. Os moradores também estão sem água, pois a CEDAE fechou a bomba devido a um buraco no cano que abastece a comunidade, que se encontra apodrecido. “Em vez de substituir o cano, eles colocam braçadeira atrás de braçadeira. Eles vão ter que tomar providência porque o pessoal lá em cima [do condomínio] vai ficar sem água. Eles têm um reservatório muito grande, mas são muitas famílias, com piscina”, diz Celina.
Os problemas com o condomínio também não se limitam ao despejo de água e esgoto. Latas, garrafas de plástico, resto de comida, pedras portuguesas, um aparelho de narguilé e um ferro de passar já foram encontrados nos telhados das casas do quilombo. “O condomínio precisa tomar providências, distribuir normas e instruções para os moradores e quem aluga por temporadas, explicando que aqui embaixo moram pessoas”, reclama Celina.
“A gente tá esperando tudo acontecer e nada acontece, então a gente decidiu agir. Temos que fazer o que está a nosso alcance pra continuar a nossa vida. A gente não tem medo porque não deve nada a ninguém”, diz Márcia, decidida.
Me despeço de cada um com um abraço. Antes de ir, ainda vejo Márcia olhando para o alto: “Tá muito quente. Acho que vai vir chuva aí. Esse é o nosso pavor”.