Essa é a última de uma série de cinco matérias por Line Algoed, doutoranda e pesquisadora da Vrije Universiteit Brussel, e María E. Hernández Torrales, professora adjunta na Clínica de Assistência Jurídica da Escola de Direito da Universidade de Porto Rico e ex-presidente do conselho administrativo do Fideicomiso de la Tierra del Caño Martín Peña, publicada originalmente na revista Radical Housing Journal, aqui.
Essa série introduz e descreve a criação e o funcionamento do Termo Territorial Coletivo Canõ Martín Peña, em Porto Rico, e discorre sobre o capitalismo do desastre após o furacão Maria que fomentou políticas de desalojamento na ilha. Ela também apresenta como as comunidades do Canõ Martín Peña vem respondendo a este quadro, propagando o conhecimento das comunidades do Caño—no âmbito do Termo Territorial Coletivo (TTC)—e porque esse conhecimento pode ajudar na resistência de outras comunidades ao redor do mundo. Leia a série toda aqui.
Os Conhecimentos das Comunidades do Caño
A experiência das comunidades do Caño nos permite compreender a democratização do planejamento para medidas de sustentabilidade, que ajudam a mitigar a vulnerabilização em um contexto de eventos naturais extremos provocados pelas mudanças climáticas. Como já descrito, o Termo Territorial Coletivo (TTC) do Caño resulta de um processo longo e contínuo de planejamento popular, com o propósito de democratizar o desenvolvimento local e alcançar justiça ambiental e sustentabilidade ecológica. O processo é conduzido pelo pensamento crítico dos moradores, que são encorajados e auxiliados por profissionais a não aceitarem suas atuais condições de moradia e a pensarem em alternativas. Nesse sentido, ecologia política, como definida por Robbins1, “busca expor as falhas nas abordagens predominantes ao meio ambiente apoiadas pelo legislativo local e pelas autoridades estaduais e internacionais, trabalhando para demonstrar os impactos indesejáveis de políticas e de condições do mercado, especialmente do ponto de vista da população local, dos grupos marginais e de populações vulneráveis”.
Estudar a resistência das comunidades do Caño por uma ótica ecológica-política nos ajuda a entender o papel do pensamento crítico na transformação social. O ecologista político latino-americano Arturo Escobar, que estuda esse papel, examina duas tendências-chaves no pensamento crítico na América Latina: pensamento autônomo—autonomismo—e el pensamiento de la tierra, o pensamento da terra2. Na tendência do autonomismo, de acordo com Escobar, o coletivo predomina sobre o individual, a ligação com a terra predomina sobre a separação entre humanos e a natureza, e el buen vivir (viver em harmonia com a natureza) sobrepuja o crescimento econômico. Autonomismo em Porto Rico é pensar em outras direções que não aquelas impostas pelo estado colonial capitalista. Isso é essencial no TTC Caño e é fortalecido diariamente por meio da administração e gestão coletivas da terra. A outra tendência-chave no pensamento crítico na América Latina, de acordo com Escobar, exige ouvir a terra. Nesses processos, exige-se dos moradores, e daqueles que os acompanham e os estudam, que aprendam a pensar e sentir—sentipensar—com a terra, enquanto desaprendem a fixação com o individual, com a propriedade privada, com o crescimento da economia, da ciência e do mercado. Escobar argumenta que os conhecimentos ligados às lutas daqueles que sente-pensam com a terra são mais apropriados ao estudo da transformação social do que as muitas formas de conhecimento produzidos na academia atualmente3.
Essas lutas nos proporcionam conhecimento das profundas transições culturais e ecológicas necessárias ao enfrentamento da crise ambiental e à reversão de políticas de insustentabilidade. Para Escobar4, aqueles que produzem esses conhecimentos “sentipiensan con la tierra (sente-pensam com a terra) e se orientam em direção ao momento em que seres humanos e o planeta finalmente poderão coexistir de maneiras mutuamente enriquecedoras”. Moradores das comunidades do Caño sente-pensam com a terra que criaram e com seu corpo de água, por cuja proteção lutam. Considerem, por exemplo, as palavras do morador José Caraballo Pagán:
“Hidrovias são seres vivos. Não falam, não andam, mas fluem, têm vida. Crescem. E quando você viveu perto de algo que viu desde pequeno, com vida própria, vê-lo simplesmente morrer, isso afeta sua mente.”5
Estudar os conhecimentos produzidos pelas lutas das comunidades do Caño na proteção da terra e na restauração do canal em um contexto urbano pode nos ajudar a entender como a transformação social em assentamentos informais pode ocorrer. A resistência das comunidades do Caño fornece um antídoto para a informalidade, regularizando coletivamente a propriedade territorial e fortalecendo o já existente e acessível parque habitacional. Isso permite às comunidades permanecerem no local, apesar do discurso do governo que foca na necessidade de eliminar assentamentos informais por meio do deslocamento da população para fora de suas comunidades. Como já descrito, a falta de documentação da propriedade da terra tem sido um empecilho para muitas comunidades informais em Porto Rico terem acesso à ajuda que precisam para se recuperar do Furacão María. Entretanto, os moradores das comunidades do Caño encontraram um ponto de apoio em sua organização, onde podem encontrar orientações e um sistema de apoio para suas necessidades específicas. Nenhuma agência federal ou local pode legitimamente dizer que os moradores das comunidades do Caño não possuem o título da terra. A propriedade coletiva da terra tem se mostrado um escudo ao redor dos moradores da comunidade, tornando-os menos vulneráveis a deslocamentos, apesar de repetidas ameaças do governo. A implementação do Plano do Distrito irá torná-los menos vulneráveis a inundações e os ajudará a se prepararem para enfrentar os efeitos das mudanças climáticas.
A coletivização da propriedade territorial como uma estratégia para reduzir a vulnerabilização de moradores em assentamentos não planejados e a democratização da sustentabilidade ecológica são baseados nesses processos de pensamento crítico e autônomo. Muitas experiências de participação de comunidades nos processos de desenvolvimento urbano são enfraquecidas pelo cenário antagônico em que eles ocorrem, apesar do comprometimento genuíno delas com a transformação social6. Se a criação de instrumentos como o Termo Territorial Coletivo não forem apoiados por processos de pensamento crítico e autônomo conduzidos pelos moradores, tais esforços se tornarão instrumentalismo (quando o instrumento se torna o fim) e desenvolvimentismo. Se a busca por controle pleno pelos cidadãos não for o objetivo, esses esforços não serão nada diferentes de outras intervenções que chegam de cima para baixo.
Conclusão
No texto acima, nós apresentamos o TTC Caño como um mecanismo que permite que os moradores mantenham, administrem e gerenciem sua terra com o objetivo de guiá-los no desenvolvimento mais amplo do próprio bairro. Nós discutimos que por meio de seu TTC, do G8 e do projeto ENLACE, os moradores realizaram uma “forma mais inclusiva de produção ambiental”7, ou a democratização do planejamento para sustentabilidade social e ecológica. Esse aspecto ataca a vulnerabilização das comunidades pelo fortalecimento delas por meio da reabilitação participativa no local, restauração da qualidade ambiental do canal de maré e redução do risco de alagamento, e ao mesmo tempo traz uma solução para evitar gentrificação e remoções que tais melhorias nas condições de vida poderiam trazer. A organização da comunidade e a construção de parcerias estratégias continuam a ser cruciais para enfrentar esses e outros novos desafios, como garantir que os fundos do Subsídio Global para Desenvolvimento Comunitário-Recuperação de Desastres (CDBG-DR) sejam usados para dar apoio para o Plano do Distrito e não para deslocar os necessitados.
Nós argumentamos que o estudo da resistência das comunidades do Caño pode ajudar a formular estratégias urbanas ecológicas-políticas e avançar na pesquisa de exemplos de participação verdadeiramente democráticas que lutam contra as “políticas de insustentabilidade”, que produzem desigualdades socioambientais profundas em Porto Rico. Vulnerabilidade em assentamentos informais, de fato, não deveria ser estudado sem olhar para desigualdade urbana, que merece mais atenção do que a que foi dada nesta série de matérias.
Como um dos grandes proprietários de terra em San Juan, a propriedade de terra coletiva deu aos moradores do TTC Caño o poder político para confrontar o estado e controlar o desenvolvimento de sua área e a proteção do canal, em um contexto de globalização e colonialismo neoliberal profundo. Eles estão produzindo um ambiente urbano que está alinhado com suas visões de mundo e que se afasta do desenvolvimento liderado pelo mercado enquanto favorece a preservação socioecológica. No atual contexto de mudanças climáticas e crescente desigualdade, isso é exemplar.
Agradecimentos
Esta série de matérias apresenta os conhecimentos produzidos pelas lutas incansáveis pelo direito à cidade e pela justiça ambiental de milhares de moradores das comunidades Martín Peña e seus colaboradores e aliados. Os autores querem agradecer aos líderes comunitários do G-8 e equipe da Corporación Proyecto ENLACE del Caño Martín Peña e do Fideicomiso de la Tierra del Caño Martín Peña, e especialmente Lyvia Rodríguez Del Valle por sua contribuição nessa série. Os autores também querem agradecer John E. Davis e Antonio Carmona Báez por suas recomendações.
Referências Bibliográficas
[1] Robbins, P. Political Ecology: A Critical Introduction. Hoboken: John Wiley & Sons (2012: 99).
[2] Escobar, A. “Desde abajo, por la izquierda, y con la tierra: la diferencia de Abya Yala / Afro / Latino / América”, in: H. Alimona & C. Toro Pérez & F. Martín (Eds) Ecología Política Latinoamericana. Pensamiento Crítico, Diferencia Latinoamericana y Rearticulación Epistémica, pp. 51-68. Buenos Aires: CLACSO (2017: 58-67).
[3] Escobar, A. Thinking-feeling with the Earth: Territorial Struggles and the Ontological Dimension of the Epistemologies of the South, Revista de Antropología Iberoamericana, 11(1), pp: 12 – 32 (2016: 24).
[4] Ibidem, p. 14.
[5] UNC University of North Carolina School of Media and Journalism (Producer). Rooted in el Caño. [Video] (2018). Disponível em: https://vimeo.com/264156328 (Acessado em 21 de novembro de 2018).
[6] Escobar, A. “Desde abajo, por la izquierda, y con la tierra: la diferencia de Abya Yala / Afro / Latino / América”, in: H. Alimona & C. Toro Pérez & F. Martín (Eds) Ecología Política Latinoamericana. Pensamiento Crítico, Diferencia Latinoamericana y Rearticulación Epistémica, pp. 51-68. Buenos Aires: CLACSO (2017: 66).
[7] Swyngedouw. E. and Heynen, N. (2003). Urban Political Ecology, Justice and the Politics of Scale, Antipode, 35(5), pp: 898 – 918.(2003: 914)
Esta é a quinta matéria de uma série de cinco apresentando Lições Oriundas da Vulnerabilização e Resistência do TTC Caño Martín Peña.