Hip Hop na Baixada: Projeto em Caxias Utiliza o Ritmo como Terapia para Crianças

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Quem adentra a sala de aula no galpão da Sociedade Musical e Artística Lira de Ouro, também um histórico bloco de carnaval, fundado em 1957 no Centro de Duque de Caxias, nem imagina que o grupo de crianças alegres e bagunceiras ali reunidas está em fase de recuperação. Mas não se trata de notas ruins a serem recuperadas no boletim escolar. É um processo pedagógico-terapêutico em curso para recuperá-las de todo um histórico de violências vividas. O que dá a elas essa segurança de retomar a vida cotidiana é um ritmo nascido nos guetos dos Estados Unidos: o hip hop.

Para entendermos melhor essa história, precisamos conhecer a vida do professor de dança e DJ Diego Fábio dos Santos de Jesus, mais conhecido como Zulu Tec Nykko. Antes de se tornar um jovem rebelde, segundo sua própria definição, Zulu passou parte da infância preso à cama. Durante três longos anos conviveu com uma bronquite asmática seguida de sopro cardíaco (uma anormalidade do fluxo sanguíneo que passa pelo coração).

“Minha saúde era muito frágil. Eu não conseguia fazer absolutamente nada. Era um mês em casa e três no hospital”, lembra o rapper. Após a cura, o tempo em que ficou enclausurado no quarto o fez querer vivenciar intensamente tudo o que perdeu, nem sempre da melhor maneira. Dos 15 aos 17 anos, repetiu a 6ª série quatro vezes seguidas até que ficou um ano inteiro sem frequentar as aulas. Passava noites seguidas em bailes funk na ChatubaMangueirinha e em outras regiões periféricas da Baixada Fluminense. Até que conheceu um projeto social na Favela do Lixão, onde passou a integrar um grupo de street dance.

Ele queria mudar de vida e encontrar um sentido para tudo o que acontecia ao seu redor, mas as coisas não iam tão bem. “Eu não tinha boa coordenação motora para os passos, mas queria aprender. Sofria bullying direto dos meus colegas, mas persisti. Até que um dia lá em 2000, na [casa de shows] Rio Sampa, íamos fazer a nossa primeira apresentação. Fui um fiasco e o coordenador de dança disse assim pra mim: vai pra casa, se mata e depois volta aqui”, lembra Zulu.

Escolha Entre o Balé e o Funk

O que poderia ser motivo para a recaída rumo a um cotidiano desregrado foi a inspiração de que precisava para continuar. Através de conhecidos, Zulu ficou sabendo de uma escola de dança no Méier chamada Espaço Cultural Arte e Dança (ECAD). Explicou o problema de inaptidão motora aos professores e eles recomendaram que a única expressão corporal que serviria para calibrar seus movimentos, oferecendo uma disciplina mais rítmica seria… o balé. Vencido o preconceito pela “dança só de meninas”, faltava cumprir com uma condição para ser aceito: que voltasse a estudar e trouxesse, todo o mês, o boletim com boas notas. Trato feito. Negociado o dinheiro da passagem, era hora de voltar aos tablados.

Com o passar do tempo, Zulu frequentou outros grupos de dança até descobrir o movimento hip hop. A passagem por ONGs e projetos sociais fez com que criasse uma metodologia própria de ensino a ser aplicada a crianças, o que o qualificou como educador. Em pouco tempo já estava ministrando aulas no projeto que ajudou a criar, o Cypher na Rua. Na linguagem do hip hop, “cypher” é a roda de amigos que se forma nas batalhas de MC’s ou em outras atividades ligadas ao movimento.

Funcionando desde 2015, hoje o projeto atende cerca de 40 crianças de várias classes sociais e acumula inúmeras histórias de superação. Uma delas, é a de Lua, filha da artesã Fátima Oliveira. A menina é branca com cabelo crespo, já que a mãe é branca e o pai, negro. A mistura étnica fez com que Lua sofresse bullying nas duas escolas que frequentou. Ficou calada, arredia, engordou por causa da ansiedade provocada pelos insultos. “Chegaram a pegar uma tesoura, dizendo que iam cortar o ‘cabelo ruim’ dela. Como crianças assim já são cruéis desse jeito?”, indigna-se Fátima. Entretanto, com as aulas de hip hop a menina recuperou a desenvoltura e reconquistou a confiança em ser exatamente quem ela é.

A produtora cultural e professora de dança afro, Luna Leal Santos, com especialização na disciplina Corpo, Educação e Diferença, diz que a fase escolar e suas modificações corpóreas, que costumam ocorrer com mais intensidade entre os 10 e 13 anos, são mais sensíveis especialmente quando as questões étnicas se sobressaltam. “Além das mudanças naturais do corpo, as crianças descobrem a sua cor, os lábios, a textura do cabelo e acabam sofrendo as consequências do bullying e do racismo”.

É aí que entram os aspectos terapêuticos da expressão corporal nascida em um movimento como o do hip hop, que podem ser inseridos na vida de crianças, especialmente na perspectiva da superação de traumas e da recuperação da autoestima. “Como ensino especificamente dança afro, ajudo a trazer a cultura de um povo, os ensinamentos ancestrais que ajudam a construir uma consciência contemporânea de si, o reconhecimento em pertencer a um grupo específico, assim como o hip hop faz. Nesse tipo de aula é importante trazer vários subtextos que auxiliam nas questões cotidianas. As meninas, principalmente, precisam entender que seu cabelo é bonito, que sua boca é linda”, explica Luna.

Reconhecimento e Vida Saudável

O ano de 2019 está sendo próspero para o Cypher. O projeto foi contemplado com o Diploma Heloneida Studart, uma forma de reconhecimento e estímulo às boas práticas culturais promovida pela Comissão de Cultura da Alerj e entregue no último dia 17 de junho.

Além disso, foi um dos sete vencedores do edital “Apoio a Ações Locais Enfrentamento Ao Racismo Com Enfoque Na Segurança Pública”, lançado em 25 de fevereiro pelo projeto Direito à Memória e Justiça Racial do Fórum Grita Baixada. A chamada pública visava fornecer suporte para iniciativas, coletivos e organizações sediadas na Baixada Fluminense que tivessem ideias sobre como usar a arte ou as tecnologias de informação e comunicação para fazer frente ao racismo, com enfoque na segurança pública.

“Escolhemos o projeto Cypher, pois eles trabalham com um público que poucas pessoas estão dispostas a se dedicar, especialmente se formos considerar o que foi pedido pelo Edital. Racismo e segurança pública, mas com uma perspectiva didática para as crianças, ainda que de forma mais subjetiva. Eles passaram uma sensação de concretude do que eles fazem, discutem. E não apenas com as crianças, mas com as famílias delas também”, explica Fransérgio Goulart, coordenador do projeto Direito à Memória e Justiça Racial.

Para além dos reconhecimentos afetivos e políticos promovidos pelo hip hop, a prática do estilo também é garantia de saúde. Há quatro anos, o professor de medicina preventiva da Universidade da Califórnia, James Sallis, alertava para os perigos da obesidade infanto-juvenil, que poderia afetar a saúde de crianças e adolescentes entre 5 e 18 anos nos Estados Unidos, especialmente as meninas que, segundo o pesquisador, tinham bem menos oportunidades de praticar atividades físicas que os meninos. Ele aconselhou que, para reverter o que chamou de uma possível epidemia de jovens muito acima do peso ideal, era necessário praticar uma hora de atividade física “de forma moderada à vigorosa” todos os dias, porém com uma quantidade de esforço que não submetesse os jovens a exageros.

Ao investigar que ritmo seria o mais adequado, verificou-se que o hip hop era o que atendia melhor às exigências especificadas pelo professor. Fatores como o tempo estimado de aquecimento corporal para os exercícios e ouvir as instruções das professoras foram determinantes para que o hip hop fosse eleito o melhor estilo para uma vida saudável.

“A dança é uma oportunidade de ouro que muito contribui para a saúde das garotas, pois enquanto elas estão se movendo de forma satisfatória e se divertindo com as amigas, estão construindo competências físicas através do aprendizado de novas habilidades”, explicou James em matéria da Revista Time, em maio de 2015.

Matéria escrita por Fabio Leon e produzida por parceria entre RioOnWatch e o Fórum Grita Baixada. Fabio é jornalista e ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada. O Fórum Grita Baixada é um fórum de pessoas e instituições articuladas em torno da Baixada Fluminense, tendo como foco o desenvolvimento de estratégias, o fomento de articulações e a incidência política no campo da segurança pública, entendida como elemento para a cidadania e efetivação do direito à cidade. Siga o Fórum Grita Baixada pelo Facebook aqui.