Hoje com 64 anos, Vanderley da Cunha, conhecido como Deley de Acari, é poeta, escritor, ativista de direitos humanos e mobilizador cultural na favela de Acari, Zona Norte, há mais de quatro décadas. Fundador do grupo Negrícia, poesia e arte de crioulo, militante do movimento negro e detentor da medalha Chico Mendes de Direitos Humanos 2008 do Grupo Tortura Nunca Mais, desde a década de 1970 Deley atua contra violações de direitos humanos na favela de Acari. A comunidade, ao longo dos anos, vem sofrendo com a violência constante de confrontos da Polícia Militar com narcotraficantes. Há mais de uma década, Deley participa da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, que reúne familiares de vítimas da violência de Estado e as denunciam. Mais recentemente, ele participou da criação do Coletivo Fala Akari, um grupo de moradores e militantes da favela de Acari, que visa disseminar e divulgar ações culturais e educacionais, e denunciar violações cometidas pelo Estado no território. Sendo um ativista que sempre se dedicou de corpo e alma pela dignidade dos moradores de sua favela, ele teve sua importância para a comunidade materializada no Centro Cultural Poeta Deley de Acari (CCPD) e, ao solicitarmos a uma rede de mobilizadores comunitários quem deveríamos destacar em entrevista no RioOnWatch, Deley foi a pessoa mais mencionada, muitas vezes por jovens lideranças. Segundo Deley, isto deve ser pela sua “teimosia e resistência”. Atualmente, Deley se prepara para lançar seu primeiro livro Ainda Teremos Dublin?, na próxima segunda-feira, 5 de agosto, no Centro do Rio. Em antecipação ao lançamento, o RioOnWatch entrevistou Deley, trazendo para o público um pouco da sua trajetória e visão de mundo.
RioOnWatch: Onde você nasceu?
Deley: Nasci, no dia 7 de outubro de 1954, em Londrina no interior do Paraná, cidade do café. Até os seis anos, fui criado num outro município da mesma cidade, Itambém. Dos seis aos dezesseis anos morei na Vila Norma, uma favela localizada em São João de Meriti, onde minha vó tinha um time de futebol.
RioOnWatch: Qual foi o evento mais memorável da sua infância?
Deley: O evento mais significativo da minha infância foi fazer o serviço de alto-falante da rádio comunitária que tinha no clube da minha vó, em São João de Meriti. Eu colocava discos para tocar e transmitia recados aos moradores. Perto havia um tronco de eucalipto com quatro cornetas instaladas e era através delas e da minha voz que as informações chegavam a todos. Quando eu comecei tinha oito anos, até que minha vó teve um derrame e o clube encerrou suas atividades. Eu tinha mais ou menos nove anos.
RioOnWatch: Quando você foi para Acari?
Deley: Em 1974, com vinte anos. Com dezesseis anos, nós mudamos para Duque de Caxias, depois para Paciência. Foi ali que comecei a participar de festivais de rock, grupos de teatro e a fazer letras de música.
RioOnWatch: Quando a Poesia entrou em sua vida?
Deley: Aos dezesseis anos.
RioOnWatch: E como começou a sua militância?
Deley: Minha militância política começou, e continua sendo, na área da cultura, mas antes disso eu já tinha contato com literatura marxista, produzida por um tio meu que era militante de uma organização comunista, nessa época eu devia ter uns treze anos. Comecei fazendo teatro. Escrevi uma peça em parceria com um amigo em 1966, que foi censurada, e como resultado, acabei preso por dois dias. Era uma peça sobre o Juvenal, mestre de bateria das antigas junto com outros compositores e um pessoal do sindicato dos estivadores, onde na época era o foco da militância comunista do samba. Esse Juvenal foi preso e morto. Ensaiávamos essa peça no Teatro Armando Gonzaga e o então diretor geral nos denunciou, sem nós sabermos, dizendo que estávamos montando uma peça subversiva. Enviamos a peça para avaliação da censura, e em seis de outubro de 1976—quando eu e meu amigo fomos saber o resultado na Polícia Federal—soubemos que a peça tinha sido proibida porque feria todas as alíneas do Artigo 41 do Código de Censura e outras coisas. No caminho de volta, fomos abordados por um carro e seus ocupantes se identificaram como agentes do DOI-CODI. Queriam que déssemos depoimento sobre a peça. Eu me apresentei como autor, mais diretor do que autor, então soltaram meu amigo e me levaram. Passei meu aniversário de 22 anos na cadeia. Minha mãe, que trabalhava na casa do Capitão Pires Gonçalves, foi me buscar e eu fui liberado. Se não fosse isso, eu teria ficado preso mais tempo ou teriam desaparecido comigo. As luzes ficavam acesas a noite toda e eu devo ter sido torturado durante uns 40 minutos ou uma hora.
RioOnWatch: E quando você começou a atuar como ativista na penitenciária?
Deley: Em 1987 aconteceu um evento no presídio feminino Talavera Bruce, e eu me inscrevi para dar oficinas de produção de texto. Isso foi uma coisa muito marcante pra mim. Havia mulheres de várias nacionalidades, inclusive brasileiras, presas por transporte de drogas. As oficinas aconteciam semanalmente com a presença de 25 presas e duravam dois meses. No encerramento elas pediram para eu levar uma torta. Comprei duas tortas, uma de cada sabor e oito garrafas de refrigerante. Foi emocionante, uma das presas afirmou que não comia uma torta de abacaxi há vinte e cinco anos, seu tempo no presidio. Depois disso aconteceram leituras, Varal de Poesia e outras coisas.
RioOnWatch: Como você se descreve hoje?
Deley: Me descrevo como poeta e animador cultural, mais voltado para a Educação Popular.
RioOnWatch: Seu trabalho com esporte é muito conhecido, como você começou?
Deley: Na verdade, sempre tive vontade de trabalhar nessa área, pois fui criado dentro de um clube de futebol onde minha avó era a matriarca. Era o clube mais importante da Baixada Fluminense onde tinha baile todo final de semana, festas juninas e o time de futebol. Também fui muito influenciado pelo meu tio que era treinador, mas a questão do futebol foi mais por necessidade. Em 1985, quando eu fui trabalhar no CIEP [Zumbi dos Palmares] como animador cultural, montei uma escolinha de futebol de salão. Em 1986 e 1987 fui trabalhar com dois professores de educação física e tomei o gosto por montar, dirigir e treinar. Mas antes, eu já jogava handebol, fomos várias vezes campeão estudantil. Na verdade, meu esporte favorito é esse.
RioOnWatch: Em que ano e como começaram suas iniciativas com esporte em Acari?
Deley: Começaram em 1993, 1994, quando foi construída a quadra de areia por um morador local. Depois esse morador saiu, a quadra ficou parada e nós, eu e o Henrique, montamos uma direção, assumimos e organizamos a primeira escolinha. De lá pra cá nós conseguimos vários projetos. O primeiro foi um projeto da SUDERJ, que administrava o Maracanã. Eu e o Henrique começamos nesse projeto como voluntários, montávamos os equipamentos com garrafa PET, por exemplo, para substituir os cones e usávamos pneus velhos também. Em seguida, o presidente da SUDERJ, na época, forneceu o equipamento e materiais necessários. Depois teve os projetos da prefeitura: Don Quixote, Mel (Movimento de Esporte e Lazer), todos de futebol.
RioOnWatch: E o projeto com handebol?
Deley: Eu fazia handebol por conta própria, e [o projeto] começou porque não tinha nenhuma atividade para as meninas, então eu montei um projeto de handebol com quase trinta meninas. E como era um esporte de areia, jogávamos em Copacabana. Isso foi em 1996, 1997. Montei um time de handebol com as meninas, o que foi uma grande decisão. Consegui levar três dessas meninas para o time Vasco da Gama: Jéssica e Géssica que eram gêmeas, e a Elisângela. O Vasco me pedia muito meninas que jogassem queimado, porque elas tinham muita força nos braços. Então eu levei as gêmeas com quinze anos e a Elisângela com dezesseis anos. Os dirigentes ficaram alucinados e queriam federa-las, mas elas só iam disputar campeonato no ano seguinte. Foram federadas, toda a documentação ficou pronta. Em finais de outubro me mandaram levá-las em janeiro. Quando eu as procurei pra dar a notícia, elas me disseram que não poderiam mais jogar porque estavam grávidas, as três ao mesmo tempo. Depois desse acontecido parei, handebol foi só nessa época, mas talvez eu volte.
RioOnWatch: De 1993 até os dias de hoje, durante quanto tempo você atuou na área de esporte na comunidade?
Deley: Eu não parei mais, então da mais ou menos vinte e oito anos.
RioOnWatch: Quantos jovens imagina que tenha ensinado, treinado e apoiado?
Deley: Uns três mil jovens. Através do projeto da SUDERJ muitos garotos foram fazer atletismo na Mangueira. O Bruno, por exemplo tinha quatorze anos, e foi vice-campeão de atletismo com levantamento de peso. Mas a Mangueira não o federou então eu o levei para o Vasco da Gama, onde começou a treinar. Ganhou sapatilhas e os equipamentos necessários, mas depois que começou a ir sozinho, pegava o dinheiro da passagem e não comparecia aos treinos.
RioOnWatch: Durante todos esses anos, algum dos jovens com quem você trabalhou, chegou a ser profissional ou semiprofissional?
Deley: Só a partir de 2010. Tem os meninos que participaram da Taça das Favelas: o Marlon, que está no América Futebol Clube e o Pedro que está no Fluminense FC. Têm uns quatro garotos já federados, jogando futebol de salão no Vasco. Todos entre oito e treze anos e uma menina de quatorze que tem quase um metro e oitenta de altura.
RioOnWatch: Como é a interação dos jovens com a cultura dentro da comunidade?
Deley: Eu acho interessante porque as duas escolas de samba são dirigidas por ex-funkeiros. Aquela história de que a cultura jovem não se integra com a cultura tradicional é uma visão de fora, preconceituosa. A favela sempre teve uma coisa muito dinâmica. Os jovens que participam do carnaval, escolas de samba e Folia de Reis são os mesmos que participam das festas juninas. Por exemplo, a diretoria das duas escolas de samba que foram fundadas, Favo de Acari em 2008, e a de Acari que é mais antiga, têm suas diretorias formadas por garotos que começaram dançando funk e eram da “Força do Rap”, banda de funk mais famosa não só de Acari, mas também do Rio de Janeiro. Quem trouxe as quadrilhas de volta foram os meninos do “Menores do Funk”, que dançavam funk e dançam até hoje. E foram eles que começaram a dinamizar as festas juninas.
RioOnWatch: Comparando a outros lugares, fora da comunidade, mas dentro do Brasil e do Rio de Janeiro, em que Acari supera esses lugares?
Deley: São os laços comunitários, as famílias aqui são grandes, as vezes trinta ou quarenta pessoas. Tem a família do Corinto, que dança a Folia de Reis composta por mais de trezentas pessoas. A gente [nesta comunidade] acaba se apegando.
RioOnWatch: E hoje, os jovens estão tendo muitos filhos, as famílias continuam sendo grandes?
Deley: As famílias continuam grandes, mas não tanto como era antigamente. Eles têm filhos mais cedo, mas bem menos. Hoje a maioria da população da comunidade de Acari é feminina e jovem, porque a mortalidade entre os jovens masculinos é muito maior.
RioOnWatch: Qual a porcentagem da população envolvida direta e indiretamente com o comércio de drogas?
Deley: Diretamente, menos de 1%. Indiretamente, uma média de 20%. Nós temos quantitativos divergentes, para nós a população do Complexo de Acari gira em torno 45.000 moradores, mas a prefeitura afirma que é uma média de 25.000. Acari toda deve ter mais 160.000 pessoas, incluindo todas as favelas e o bairro todo em geral. Mas em Acari, acredito que não mais de 120 jovens estão envolvidos com o tráfico de drogas.
RioOnWatch: O número de jovens que entram para a faculdade aumentou?
Deley: Não é o ideal, mas aumentou bastante, hoje está em torno de 60%, pois o ENEM ajuda muito, e a maioria faz faculdade particular.
RioOnWatch: Em que situações acontece a violência, hoje em dia, em Acari?
Deley: Hoje a violência vem mais com as incursões policiais do que internamente. A frequência dos confrontos com a polícia, agora, é toda semana. Em um desses confrontos aconteceu a morte da menina Maria Eduarda, no Morro da Pedreira que está dentro do bairro de Acari.
RioOnWatch: De que forma essa morte afetou os moradores?
Deley: Depois de uma tragédia dessas sempre vem um projeto como compensação por parte do governo, propostas do prefeito de blindar escolas e implantação de atividades culturais. Por outro lado, tem o impacto negativo pois, é criada a esperança de que, depois da tragédia as coisas vão melhorar, mas esse mesmo governo que elabora os planos de redução de danos e proteção aos jovens e crianças, é o mesmo que coloca os policiais nas ruas no dia seguinte.
RioOnWatch: Qual foi o resultado da remoção de moradores de Acari para os conjuntos na Zona Oeste?
Deley: Muita gente voltou porque não conseguem pagar a mensalidade e o custo de vida lá é maior e tem a questão do gasto com transporte que para algumas pessoas triplicou.
RioOnWatch: Você pode fazer uma comparação entre as duas realidades?
Deley: Em Acari, as pessoas que vêm de fora têm uma circulação tranquila dentro da comunidade, já os condomínios pra onde elas foram removidas, são fechados e vigiados, tem guaritas e as pessoas têm que se identificar para entrar. Não têm espaço de lazer ou lugar para as crianças conviverem, e por isso 20% das pessoas que foram removidas, voltaram para Acari.
RioOnWatch: Você pode fazer uma relação dessa situação entre Acari e a Zona Oeste, para onde as pessoas foram morar?
Deley: Eu posso falar sobre a experiência de Acari. As relações são mais flexíveis em Acari, os traficantes são moradores locais, todos se conhecem. Já a milícia não, ela se impõe de maneira autoritária. No geral, Acari ainda é melhor, as coisas são mais baratas e até a questão da dívida é mais flexível. Em Acari, a pessoa que mora de aluguel, por exemplo, pode ficar devendo dois meses, quem mora em área de milícia, não. E têm os custos que na favela [de Acari] não existem como luz e condomínio.
RioOnWatch: Em relação às favelas, o que você espera do futuro?
Deley: Eu acho que se nós da favela não acreditarmos que independente de governo—mas com a ajuda de alianças externas—somos capazes de alternativas para a comunidade favelada, vai ficar complicado.
RioOnWatch: Se você tivesse recursos para gastar com políticas públicas, o que você mudaria no panorama atual?
Deley: Geraria empregos e renda. Pra mim, mesmo que fosse nos moldes capitalista, teria que ter geração de trabalho bem remunerado e isso não se faz de um dia pro outro. Uma forma de realizar essa ideia seria justamente com políticas públicas.
RioOnWatch: Qual é a porcentagem de desempregados hoje em Acari?
Deley: Em média 40%. Mas existem os desempregados e os sem trabalho, que são situações diferentes. Os sem trabalho são poucos, pois de uma maneira ou de outra todos trabalham, fazem alguma coisa para alguém. Os sem emprego são aquelas pessoas que simplesmente desistiram do emprego formal com registro em carteira.
RioOnWatch: Tempos atrás Acari era a favela com o menor Índice de Desenvolvimento do Rio, essa posição mudou?
Deley: Os índices que o IPEA usa para medir estão baseados em expectativas de vida, escolaridade, trabalho formal. Deve estar entre as dez últimas.
RioOnWatch: Quando você começou a ser chamado de Deley de Acari?
Deley: Foi mais ou menos em 1978. Eu era Vanderley da Cunha e então fui fazer parte da Ala de Compositores da Escola de Samba Quilombo, em Acari, e lá éramos três Vanderleys, então decidiram que eu seria Deley de Acari, mas no mundo da poesia eu sou Vanderley da Cunha.
RioOnWatch: Qual seu maior legado hoje, na história do Rio?
Deley: Vejo pouca coisa, não tenho consciência dessa importância toda não. Mas minha poesia e o fato de eu estar nessa estrada há mais tempo, podem ser legados. Mas não gosto de ser unanimidade.
RioOnWatch: Você está lançando o livro “Ainda Teremos Dublin?”. Este é o seu primeiro livro publicado?
Deley: Já publiquei poemas em outros livros, este é o primeiro livro solo. A diferença é que este livro é um coletânea de crônicas postadas no Facebook, depois da minha volta de Dublin, em 2017 [do encontro realizado pela Front Line Defenders]. A intenção de escrevê-lo foi ter uma visão mais clara e menos efêmera dos textos postados no Facebook que é muito volátil.
RioOnWatch: Qual foi a razão do título do livro?
Deley: Logo depois da execução da Marielle a situação de risco à minha vida se agravou e eu duvidava que eu e outros ativistas de direitos humanos, que estiveram em Dublin, pudessem estar vivos em 2019, quando vai acontecer o próximo evento realizado pela Front Line Defenders*. Por isso, o título Ainda Teremos Dublin?
RioOnWatch: Finalizando, gostaria de falar mais alguma coisa?
Deley: Gostaria que houvesse mais unidade. Tem muita divisão por pouca coisa. Também gostaria que as pessoas soubessem que com a venda do livro estou conseguindo manter a escolinha de futebol em Acari.
Não perca! Deley de Acari estará realizando uma noite de autógrafos do seu livro Ainda Teremos Dublin?, dia 5 de agosto. No lançamento, haverá uma roda de poesia e conversa.
Deley “faz neste livro uma antropologia da dor e da luta ao destacar trajetórias anônimas de moradores e moradoras da Favela de Acari, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro. Assim, combina de modo único em seus relatos e poesias – sua produção é ampla – e aqui temos apenas uma pequena, mas expressiva parte dela – a trajetória de personalidades públicas como a própria vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada em março de 2018, e mulheres negras perseguidas, assediadas e caladas em favelas no Brasil, com destaque para aquela na qual viveu a maior parte de sua vida”.
Data: 5 de agosto
Local: Avenida Rio Branco 173 Sala 802 – Centro
Horário: 18-20h
*A Front Line Defenders foi fundada em Dublin, em 2001, com o objetivo específico de proteger a defensores e defensoras de direitos humanos (DDH) em risco, pessoas que trabalham, de maneira não violenta, por qualquer um ou todos os direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).