Esta é a segunda de duas matérias sobre o Julho Negro, este ano em sua 4ª edição. Esta série foca nas três mesas de debate do segundo dia do evento de 2019. Segundo os organizadores, “Julho Negro é uma Articulação Internacional de Luta contra o Racismo, a Militarização e o Apartheid. Ele é organizado por movimento de mães e familiares de vítimas do Estado e por grupos que integram o movimento de favelas do Rio de Janeiro.” Leia a parte 1 aqui.
Mesa 2: Genocídio—das Drogas ao Cárcere
Como comunicadora comunitária oriunda da Rocinha—reportando para o RioOnWatch—posso afirmar que o tema da militarização de vidas, foco da segunda mesa do dia, dialoga com toda a minha trajetória enquanto moradora de favela por 38 anos. Para os que estão fora desta realidade, posso afirmar que militarização do cotidiano é basicamente isto: ir comprar um pão com seu filho de manhã e ter um soldado com o cano de fuzil apontado na porta do estabelecimento; participar de redes para saber se a incursão feita no horário escolar acabou; checar se seu filho está bem e já pode voltar para casa; é acordar às seis da manhã com helicópteros dando rasantes na laje da sua casa anunciando que deveremos permanecer seguros, se é que é possível, pois sair para trabalhar pode nos custar a vida; é ter de evitar utilizar objetos comuns, como guarda-chuva, furadeira, celulares, em dia de operação para não ser confundido com uma arma e acabar sendo alvejado. Estes são exemplos ínfimos perto da sensação de viver isto de maneira cíclica, e por anos, nas ruas de muitas favelas. Acrescentando ao fato de tal violência não ser vista em bairros nobres que muitos destes cidadãos de favelas trabalham. Foi sobre este direto negado que a segunda mesa do dia veio discutir e debater.
A mesa foi composta por: Cristiano Silva de Oliveira do Coletivo Eu Sou Eu, reflexos de uma vida na prisão e da Frente Estadual pelo Desencarceramento; Eliene Vieira, integrante do Mães de Manguinhos e do Fórum Social de Manguinhos; Lourenço Cezar do CEASM e do Museu da Maré e Mônica Cruz da Justiça Global e moradora de Manguinhos. Foi consenso entre as falas, dos componentes desta mesa, a angustiante questão de quem vive a militarização: a guerra é contra quem? As pessoas que ali vivem têm seus cotidianos diariamente atribulados por ações estatais que miram apenas para um território da cidade: as favelas.
Lourenço falou sobre o papel de políticos de esquerda e a tentativa destes de construir um novo cenário em relação a segurança pública para tais territórios. “A gente está no nosso mundinho aqui, mas tem gente que está estudando isto há anos e que pode estar conhecendo estas informações e trazendo para gente estar contemplando uma possibilidade de projeto que seja nosso. Eu sei que no Nordeste, por exemplo, tem alguns estados que estão diminuindo drasticamente a violência. A gente precisa saber o que estes caras estão fazendo. Porque a gente está na linha de fogo, tomando tiro pra tudo quanto é lado, a gente tem dificuldade de sair do tiroteio e fazer uma reflexão. Precisamos de mais ferramentas para estar chegando no campo e convencendo outras mentes e corações. É disto que sinto falta.”
A fala de Lourenço deixa clara a necessidade da construção de políticas públicas feitas de dentro para fora. De acordo com ele, sobre favelas sabem-se apenas o que é dito sobre guerras às drogas, a despeito de toda uma cultura composta por pessoas e suas famílias. Reduzindo a vida de cidadãos comuns à criminalização e ao preconceito. Como disse Cristiano, que também compunha a mesa, “Nossos corpos são matáveis”.
Eliene, um das Mães de Manguinhos, reiterou: “Há um tempo ouço falar na falência do Estado. Mas, para nós que moramos nas favelas, essa falência sempre existiu. Meu filho teve o tórax perfurado [pela polícia] e foi para o cárcere. Ali eu entendi que eu tinha que gritar não só por ele, mas pelos jovens. Antes, eu achava que era a culpada. Eu achava que o meu filho era culpado. Mas foi aí que outra mulher me ensinou que não é assim, que nós temos direitos”. Para finalizar Eliene afirmou: “A polícia não é para matar, a polícia é para proteger”.
Mesa 3: Mulheres Negras—Nossa Resistência Vem de Longe
A terceira mesa do dia foi composta por mulheres negras e uma psicóloga mulher trans, para o debate sobre racismo. Desde que a colonização trouxe forçadamente negros africanos para o Brasil até os dias atuais, o racismo tem feito suas vítimas psiquicamente e fisicamente. Falar destas dores, que assolam pessoas negras e em especial os negros empobrecidos, é falar de um dor que parece não ter fim. Contudo, justamente para selar a importância do Julho Negro, estas mulheres estiveram a frente desta mesa tão poderosa. Algumas delas transformaram suas dores em fortalecimento para outras mulheres negras que vêm perdendo seus filhos para o cárcere ou para a morte.
As mulheres que compunham esta mesa—que aconteceu no dia da Mulher Negra Latina e Caribenha e também de Tereza de Benguela—foram Mônica Cunha, do Movimento Moleque e da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ; Saney Souza do Coletivo Popular de Mulheres da Zona Oeste e da Rede Carioca de Agricultura Urbana; Irone Santiago, moradora da Maré e mãe de Vitor que ficou paraplégico devido à violência de Estado e Maiara Fafini, psicóloga, mulher trans e integrante da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ.
Mônica Cunha trouxe para o debate a morte maciça de homens negros e nos alertou: “A todo momento a gente toma a frente desta batalha para não deixar os nossos caírem. Ontem num encontro com Sueli Carneiro, ela disse que sentia falta de jovens negros masculinos, ela vê mais mulheres [atuando]. E eu respondi: ‘Não têm, porque eles estão morrendo ou encarcerados. Eles geralmente não estão chegando na mesma proporção nas universidades. Neste momento nós [mulheres] estamos chegando mais que eles. Não é uma situação para ficarmos felizes, como se fosse uma disputa de gênero, antes fosse… Mas não é este o motivo…Os homens [negros] estão morrendo ou ficando encarcerados. Que vitória é esta? Que lucro é este? A gente continua chegando lá para pegar o canudo, olhando para ele e vendo que ainda falta muito. Cadê os nossos do nosso lado?’” Mônica complementou dizendo: “O genocídio não se dá apenas com o tiro, ele vem bem antes, com tudo que falta: saúde, educação, moradia e alimentação. Tudo isto faz parte do genocídio, o tiro já é o final”.
Um outro debate importante, fomentado por Saney de Souza, foi sobre a atual conjuntura e a possível piora para movimentos que defendem minorias. Saney, disse: “ Nas análises de conjuntura que fazem de uns tempos pra cá, sobretudo depois do golpe, falam que as coisas irão piorar. Agora vai ter perseguição ao movimentos sociais, perseguição as pessoas… Eu me pergunto: Quando é que esteve bom? Quando é que esteve tranqüilo [nas favelas]?”
Maiara finalizou as falas da mesa com um pensamento do escritor e pesquisador Muniz Sodré: “Desconfie de quem olha muito para o abstrato e para o astral, mas não olha para o território”.
O dia de mesas de conversas acabou com muita empatia e acolhimento, contudo com muitas perguntas sem respostas, o que aponta para a necessidade de um caminho cada vez mais colaborativo e de união de lideres e de comunicação comunitária, buscando preencher estas lacunas que há séculos governantes não dão conta de preencher. Para sermos cada vez mais nós por nós. Assim como disse a convidada mexicana do Julho Negro, Soledad Ortiz Vasquez, do Consejo de Defesa de los Derechos del Pueblo (CODEP), é preciso “unidade do povo para combater um inimigo clássico”.
A experiência destas falas me trouxeram lembranças muito próximas de lutas de amigos, vizinhos e parentes. Nada me parece novo e, infelizmente, a pauta não muda porque não mudam os ataques. Nós de favelas, gostaríamos de contar mais nascimentos, festas, encontros e não mortos, porém o sistema não nos permite ter uma vida normal e falar apenas de coisas prosaicas. Toda esta sensação me fez lembrar da música Amenidades, da talentosa cantora Rubia Divino. Com esta poética letra musical fecho esta série:
“Um corpo parado ali, extasiado de tanto caminhar
Na TV, no rádio
Olhos, ouvidos vidrados sentem o sangue verter
Minorias crucificadas por falta de amor que mata
A pedra que pega a menina, o negro açoitado, um ano irracional
No congresso um golpe, um tiro
Dado por um anti-cristo parlamentar
Afim de reduzir, condenar o jovem pobre da nação
A mulher acuada no beco sem insinuações… desespero
Na vinda ao mundo, um sistema que quer me tirar com hora marcada
Queria amenidades, falar de amenidades, mas quando isso vai parar?
Queria amenidades, você quer amenidades entra no guarda roupa e volta pra Nárnia
Não respeitam o credo
Não respeitam opção
Não respeitam nascimento
Não respeitam constituição
Não respeitam o corpo
Onde isso vai parar”
Escute Amenidades abaixo:
Leia a parte 1, da série sobre o IV Julho Negro, aqui.
Carla Souza é pedagoga por formação e professora de educação infantil apaixonada pela profissão. Cria da Rocinha, entende sua existência em ser negra e favelada, como um foco de luta e de resistência no mundo.