Esta é a primeira de duas matérias sobre o Julho Negro, este ano em sua 4ª edição. Esta série foca nas três mesas de debate do segundo dia do evento de 2019. Segundo os organizadores, “Julho Negro é uma Articulação Internacional de Luta contra o Racismo, a Militarização e o Apartheid. Ele é organizado por movimento de mães e familiares de vítimas do Estado e por grupos que integram o movimento de favelas do Rio de Janeiro.” Leia a parte 2 aqui.
A 4ª Edição
Em sua 4ª edição, o Julho Negro deste ano aconteceu nos dias 24, 25 e 26 de julho. O encontro reafirmou a sua essência: combater o racismo, o apartheid, e—segundo os organizadores do evento—“internacionalizar as lutas, contar e denunciar as nossas dores, e juntar as nossas forças contra aquelas que nos oprimem e matam”.
No dia 24, houve o debate “Racismo Ambiental e Sua Interface com a Violência” no Terreiro Ilê Omolu Oxum, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.
No dia 25, durante à tarde, o evento ocorreu no Museu da Maré com três rodas de conversa—as quais esta série de duas matérias se dedica—e à noite houve a apresentação da peça Encruzilhada Feminina. Nesta mesma noite, também foi realizado o Slam Manguinhos, na estação de trem de Manguinhos em frente a Fiocruz.
Já no dia 26, foi realizada a “Tenda da Resistência” no Largo da Carioca, que distribuiu roupas, brinquedos, livros em bom estado e que foi palco da última atividade da programação do IV Julho Negro, o ‘Tribunal Popular: Os Estados Latino Americanos nos bancos dos réus“, que foi composto por duas mesas de debate com a participação de militantes do México, Venezuela, Povo Mapuche (Chile), mães e familiares vítimas de violência de Estado e moradores de favelas. Abaixo o vídeo completo do “Tribunal Popular”:
Este ano, além da programação oficial, aconteceram oficinas autogestionadas em outros pontos da cidade, sendo elas: O Festival Nossa História Nossa Voz, em Belford Roxo no dia 27 e o debate Racismo Religioso e o Impacto da Militarização na Vida da População Negra e Periférica, no Terreiro de Ologunede-Ilê Àse Alade Ode Lomi, em Nova Iguaçu, onde houve a confraternização final de encerramento Julho Negro, no dia 28.
Sua Essência
Para Gizele Martins, jornalista, moradora da Maré e uma das organizadoras do evento, o Julho Negro tem como objetivo “discutir a militarização, o racismo e o apartheid a nível internacional, trazendo pessoas de outros países que vivem e pautam esta temática, como uma forma tanto de formação quanto de denúncia também”. Gizele afirma que “é uma maneira de aumentar as nossas forças nesta luta, quando a gente se reúne com outros países, com outras mães e familiares para discutir estas pautas. É uma forma de ganhar forças e reconhecer estas temáticas para além daquilo que a gente vivencia aqui no Rio”.
No dia 25 de julho, o RioOnWatch esteve no Museu da Maré ouvindo, nas rodas de conversa, militantes—muitos, moradores de favelas—que a partir de suas vivências se organizaram para tentar suprir a falta de políticas públicas efetivas e eficazes para uma parcela da população. No evento, ficou notável que ser um militante oriundo destes espaços leva a luta a um patamar afetivo, pois as lutas não são do outro, as lutas são dos “nossos”, como muitas vezes foi repetido nas mesas do Julho Negro. Falar do seu lugar e para pessoas que são “suas” têm um valor muito significativo. Esta aproximação de vivências tão particulares e ao mesmo tempo universais, levou ao evento um clima de acolhimento, mesmo estando em combate contra uma estrutura racista que tem cada vez mais artifícios cerceadores para que esta parte da população não consiga ter seus diretos validados, sejam de segurança, moradia, educação, dentre outros.
O Espaço
O segundo dia do IV Julho Negro, aconteceu em um museu dentro da favela da Maré. O Museu da Maré conta a história do seu povo e suas formas de re-existir dentro de uma sociedade que valida as práticas de exclusão do Estado. O museu dialoga com o Julho Negro através da experiência da arte contra as práticas de exclusão e inviabilidade dos governantes. Além da exposição permanente do museu, enquanto as mesas não começavam, era possível refletir sobre os temas em debate através de histórias apresentadas por meio de fotografias e de trechos de falas de vários militantes de favelas, na área externa do museu.
E por Falar em Arte…
Lucas Francisco, morador da Maré, frequentador desde a infância do Museu da Maré, e estudante de dança da UFRJ, abriu os debates do dia 25 com uma impactante apresentação. Misturando dança e militância de uma forma tocante, as criticas à LGTfobia, aos padrões impostos aos meninos em especial, mesclando com uma cena forte falando de militarização e tortura, nos deixaram silenciados diante do poder da arte em dizer coisas tão doloridas de forma bela e intensa.
Mesa 1: LGBTI+ Militarização e Resistência Favelada
Estreando este ano no Julho Negro, a mesa LGBTI+ foi composta por pessoas que tiraram as suas experiências do campo pessoal e resolveram cobrar dos governantes ações para esta população que ainda vê seus diretos bem longe de serem conquistados. Betto Duarti, representante do movimento LGBTI+ da Maré, morador da Maré na Vila do João há mais de 30 anos, e um dos responsáveis pelas primeiras paradas LGBT da Maré, foi um dos integrantes da mesa. Ele relatou que como representante do movimento LGBTI+ da Maré, uma das práticas mais comuns é a de agir para viabilizar a garantia no atendimento de qualidade para esta população em postos de saúde. Betto é constantemente solicitado quando o preconceito gera algum tipo de mau atendimento.
Outras componentes da mesa eram Dayana Gusmão, cria da Maré e integrante da Coletiva Resistência Lesbi de Favelas e Michele Seixas, da Articulação Brasileira de Lésbicas e moradora do Alemão. As falas destas mulheres, lésbicas e intelectuais, se concentraram na violência do machismo que rondam as lésbicas fazendo subir o índice de lesbocídio.
Um ponto importante do debate foi a questão da população carcerária LGBT. De acordo com Michele Seixas, os dados—tão importantes na construção de medidas para melhoria da vida de todos—são muitas vezes negligenciados, dificultando dentre outras coisas, o mapeamento de quantos LGBTIs estão em situação de privação de liberdade e quais as ações para reinserção destes na sociedade. Para Michele Seixas, tal atitude faz parte da política de invisibilidade, como afirmou em sua fala: “A ausência destes dados é proposital, porque a ausência destes impossibilita a construção de políticas púbicas e a [sua] execução… Dentro das políticas públicas [para a população carcerária] já existentes, a invisibilidade é maior ainda quando se é lésbica, negra e moradora de favela”, e para finalizar a roda de conversa Michele concluiu que “dado ao fato que a necropolítica tem funcionado muito bem, e não é de hoje… matar LGBTs virou algo banal, uma vez que o Brasil é [líder no] ranking de morte [desta população]”.
Este é a primeiro matéria de uma série de duas partes sobre o IV Julho Negro. Para a parte 2, clique aqui.
Carla Souza é pedagoga por formação e professora de educação infantil apaixonada pela profissão. Cria da Rocinha, entende sua existência em ser negra e favelada, como um foco de luta e de resistência no mundo.