“Vou chamar dois MCs pra cair no bangue bangue. O Pac’Stão quer o que?” “Sangue.”
Assim começam as batalhas de hip hop na Roda Cultural do Pac’Stão, em Manguinhos, em referência às batalhas de sangue, aquelas nas quais o participante ataca e ridiculariza o adversário com suas palavras para vencer, em oposição às batalhas de conhecimento, nas quais ganha aquele que melhor rimar sobre um assunto que lhe é proposto.
“Se gentileza gera gentileza, matança vai gerar o que?”
Esse verso proclamado em uma das batalhas lembra que a metáfora da guerra não está só no grito que abre as batalhas ou na própria escolha do termo “batalha”, comuns a outras rodas. “É Pac’Stão porque a gente tá do lado da Faixa de Gaza”, diz Xandy MC, morador do Jacarezinho e um dos organizadores da roda. Faixa de Gaza carioca é como é conhecida a Rua Leopoldo Bulhões, que margeia a linha do trem e passa entre Manguinhos e o Jacarezinho, que fica muito mais próxima da Roda Pac’Stão do que os mais de 3.000 quilômetros que separam a Faixa de Gaza original—território palestino constantemente atacado por Israel—do Paquistão, país no sul da Ásia. As duas localidades, conectadas no imaginário popular como pertencentes a um oriente distante, se aproximam das duas localidades no Rio pela narrativa do conflito.
A escolha pelo nome Pac’Stão, então, ao mesmo tempo que faz alusão a um país historicamente marcado por conflitos, utiliza a narrativa da guerra para subverter a lógica de violência real que afeta a região. “O que nos motivou a fazer a roda foi a opressão, especialmente a opressão policial. A gente queria dar voz a muita gente que foi agredida, verbal e fisicamente”, conta o MC 2D, outro dos organizadores. “Eu sofri um bagulho que é o motivo pra eu querer continuar aqui. Os policiais pegaram minha mulher grávida pelos braços. Fui cobrar meu direito de acompanhar minha mulher e levei dois tapas na cara”. Xandy completa: “A polícia é pacificadora, mas nós nunca vivemos em paz”.
Mas Pac’Stão é também a junção de “PAC”, sigla que significa Programa de Aceleração do Crescimento, e o sufixo “-stão“, que significa “lugar de”, “terra de”—a terra do PAC. A área onde acontece a roda, que foi batizada pelo então governador Sérgio Cabral de Praça da Cidadania e que abrigou no passado o Depósito de Suprimentos do Exército (DSUP, inscrição que ainda pode ser lida na torre remanescente, como aparece na foto abaixo), é mais conhecida somente por “PAC”. A referência ao programa se materializa na infraestrutura construída ao redor da praça, que inclui um conjunto habitacional, um colégio estadual, uma pista de skate, uma Biblioteca Parque, a Casa da Mulher e um Centro de Referência da Juventude.
Da mesma forma que só construir casas não é o mesmo que construir uma cidade, dotar um espaço com equipamentos urbanos sem a devida manutenção para o seu pleno funcionamento não é promover cidadania, supostamente a intenção proposta pelo então governador. A Casa da Mulher encontra-se fechada desde 2016, o colégio que deveria ser referência sofreu sucessivos saques e depredações, a Biblioteca reabriu em 2018 por mobilização dos moradores após dois anos fechada (e agora chamada de biblioteca Marielle Franco), mas com horário bastante reduzido. A tarefa de ocupar a praça e promover a cidadania—quando os equipamentos que deveriam dar suporte à população estão sucateados—vem sendo desenvolvida pela roda do Pac’Stão há dois anos.
O PAC foi ainda responsável pela elevação da linha do trem, o que levou a centenas de remoções e foi feito sob o argumento de criar uma área de lazer embaixo dela, o que supostamente conferiria mais segurança aos usuários ao permitir que eles pudessem atravessar por debaixo da linha em vez de cruzarem os trilhos, e de integrar os dois lados de uma comunidade dividida. Pode-se argumentar que, pelo contrário, a elevação aumentou a sensação de insegurança: não houve a ocupação por comércio ou equipamentos urbanos, criando espaços vazios e escuros, além de ter deixado os trens mais vulneráveis quando ocorrem trocas de tiros. Não é raro ver os vidros das composições marcados por buracos de bala, tampouco é raro que a circulação no ramal seja interrompida.
Além disso, o PAC não ouviu as prioridades dos moradores, que demandavam principalmente investimentos em saneamento. “A gente tá no meio de uma favela plana onde tem dois rios que alagam. Isso de novo e de novo há 40, 50 anos”, coloca Franciele Campos, do coletivo Mulheres do Vento, que reúne produtoras de audiovisual, e que também organiza o Slam Manguinhos,
Para os organizadores da roda, Pac’Stão é, ainda, “Por Amor à Cultura”, que inclusive dá nome ao perfil da roda no Instagram. Esse amor à cultura se manifesta em múltiplas expressões: para eles, por exemplo, o hip hop não se distancia muito dos livros, literal e metaforicamente. O cenário das batalhas é emoldurado pelo letreiro da Biblioteca Parque de Manguinhos, em uma ressignificação do uso do espaço. “É uma roda de cria pra cria, pra nos livrar das pistolas, porque livro é muito melhor”, diz 2D. Apesar do tom usual que empregou, a veia poética fica clara no trocadilho entre “livrar” e “livro”. E há quem diga que eles incentivam mais a leitura do que a biblioteca. “A população que não lê com palavras, lê com imagens, sons, movimentos”, complementou Xandy.
Xandy acredita que é preciso “ensinar [aos jovens] algo mais interessante que fazer cálculo”. Nesse intuito, o coletivo realiza visitas a escolas e unidades do DEGASE. Em uma das atividades, no CRIIAD (Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente, uma unidade de semiliberdade) de Caxias, além de levar um filme que contava a história do hip hop, fizeram uma oficina de poesia. “Quando eu perguntei quem gostava de poesia ninguém levantou a mão. Aí eu distribuí uma poesia e fiz a pergunta de novo. A poesia era uma letra dos Racionais“, diz 2D.
“Seu filho não é militar, é militante.”
A frase é de Xandy. “Nós escrevemos porque ou é isso ou depressão. Essa é a democracia de verdade, esta troca de ideias. Isso é potência! Lá fora eles não querem essa troca de ideias, não querem me ouvir falar”, coloca o MC. “A gente já tem cultura aqui, não precisa trazer. O povo não tá interessado na cultura burguesa, mas percebemos uma concentração dos incentivos pra esse tipo de cultura”.
Xandy descreve ainda a falta de espaço que marca a realização das rodas desde a década de 1990. “O pessoal fazia uma na Cidade de Deus, fazia no CIC [Centro Interativo de Circo], na Lapa, que pegou fogo em 2009. Hoje é a mesma coisa—na Cidade Alta a roda acontece num espaço que era um lixão”. Desde 2018, uma lei que reconhece o hip hop como patrimônio cultural do estado, também determina que as rodas não precisam mais de autorização da polícia para acontecer, desde que não tenham palcos ou arquibancadas.
Para além da resistência à opressão policial, “a gente faz rima pra botar comida no prato também”, como diz 2D. “Porque a gente não consegue emprego quando eles perguntam de onde nós vem. ‘Do Manguinhos? Cê tem passagem?’ Nem passagem de ônibus eu tenho que tá muito cara”. A rima já deu a Xandy, inclusive, uma passagem de avião para Portugal, prêmio por ter ganhado a batalha do Festival Terra do Rap, superando 97 MCs.
Franciele coloca a importância da rima para que os MCs sejam protagonistas de suas próprias narrativas: “Mais do que falar da gente, a gente precisa citar a gente, o nosso trabalho. Mostrar quem está fazendo, quem está na linha de frente do enfrentamento diário ao genocídio. Os autores mais fodas que eu conheço estão aqui na minha volta. Marquem os artistas, divulguem o clipe novo do 2D. A gente precisa usar marcadores que mostrem a gente vivo. Não podemos ficar isolados, queremos diálogos, mostrar que a gente tá vivo”. 2D concorda: “A roda de rima nasce de uma necessidade, de a gente ter um espaço pra se expressar. O rap e o hip hop não são uma cultura africana. São uma expressão da resistência ao racismo fora da África”. Confira seu clipe novo abaixo:
“A realidade é bruta, mas também é linda. Aqui é lindo. Ninguém aqui morde. Só quando fecha a boca.”
“O Pac’Stão vai estar em festa!”, dizia uma postagem do Instagram anunciando o aniversário de dois anos da roda, no dia 15 de julho. Apesar de segunda-feira, as férias escolares ajudavam a explicar a rua cheia de gente e o intenso vai e vem de motos. Feito todo o corre da montagem do palco e dos equipamentos, eram quase 22 horas quando a batalha começou, porque “o som ficou preso lá no Manguinhos”, como esclareceu Xandy.
Depoi de 12 batalhas, foram pra final Mr. PAC da ZN, Vydau e Catu, única mulher que participou da batalha. Sua filha, inclusive, foi quem puxou o grito de guerra das batalhas finais: “Vou chamar dois MCs pra cair no bangue bangue. O Pac’Stão quer o que?”.
O grande vencedor da noite foi Mr. PAC, o Patrick Nascimento, morador de Manguinhos. Ele lembra que acompanha a batalha desde 2012, quando ainda era chamada de Roda Cultural de Manguinhos e acontecia em frente à UPA. O seu nome artístico, inclusive, é um cruzamento do local onde começou e de sua trajetória no funk, que tinha como referência Mr. Catra.
Nos intervalos e após as batalhas, a comemoração ainda contou com DJs e com a participação da cantora Azzy, do Angola e do DJ 2T do Arrocha, do Baile da Colômbia. À semelhança do Baile da Colômbia, que acontece no Lins, a região também tem o seu baile “internacional”, o Baile de Paris, que acontece no Jacaré. Essa tendência recente de renomear os bailes pode ser explicada como uma tentativa de reduzir o estigma que envolvem os bailes funk. Os nomes escolhidos, que vão de Califórnia a Dubai, contrastam-se fortemente com a imagem evocada pelo Paquistão.
A cantora Azzy ainda convidou, durante o seu show, artistas de rua que ela conheceu fazendo suas performances no transporte público: o Dorgo DJ, do Instituto Enraizados, em Morro Agudo (Nova Iguaçu) e representantes do Slam Nós da Rua e do Conexão Favela & Arte.
As comemorações contaram também com um grafite feita pela Maria, cria de Manguinhos e filha do também grafiteiro Toquinho.