Deslizamentos de terra e enchentes como resultado de fortes chuvas não são novidade, especialmente no Rio de Janeiro. Mas nos últimos anos a situação piorou visivelmente. Embora o aumento da vulnerabilidade climática seja uma preocupação global, cidades costeiras como o Rio devem ser particularmente afetadas por desastres naturais.
Acima está um gráfico interativo da Our World In Data mostrando deslizamentos de terra relatados globalmente ao longo do século passado. Com alguma variação de ano para ano, a tendência geral de aumento nas ocorrências de deslizamentos é clara. Em países tropicais como o Brasil, a mudança rápida dos padrões climáticos terá um efeito ainda mais perceptível.
O Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) mantém um banco de dados online com informações sobre os padrões climáticos brasileiros ao longo do tempo, como temperatura média, precipitação média e umidade, desde 1910. Embora uma pesquisa em seus mapas históricos de chuvas mostre pouca variação nos níveis de precipitação mensal, a localização do Rio o torna mais vulnerável a eventos de enchentes e deslizamentos de terra devido às diferentes características da região montanhosa e suas reações aos padrões climáticos.
Álvaro Ávila (et al.), em um artigo de 2016 sobre tendências de precipitação, enchentes e deslizamentos de terra no Brasil, mostrou que 49 deslizamentos de terra e 97 enchentes foram relatados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e 179 inundações em Santa Catarina, na região Sul do Brasil, somente de 1991 a 2012.
Nesse gráfico, Cx1dia é a precipitação total anual em um dia e Cx5dia é a precipitação anual máxima consecutiva em 5 dias registrada. O estudo utilizou essas informações, juntamente com outras características, como a precipitação total anual em dias chuvosos e a contagem anual de dias em que a precipitação diária é superior a 30mm, para estimar a significância dos padrões de precipitação na região.
O gráfico mostra um teste de correlação de Pearson, que testa se algumas variáveis dadas têm ou não relação com um determinado resultado. Um valor P igual a 0 significa que não há associação, enquanto algo maior que 0 indica uma correlação positiva, e qualquer valor acima de 0,1 é considerado significativo. Nesse caso, as variáveis são os padrões climáticos de um local e os resultados são enxurradas e deslizamento de terra. Para o Rio de Janeiro, o valor P entre os índices de precipitação e deslizamentos de terra foi de 0,49 para Cx1dia e 0,59 para Cx5dia, e entre os índices de precipitação e enchentes, 0,50 e 0,40, respectivamente (correlações positivas em todos os casos).
Embora existam causas sociais e técnicas para deslizamentos de terra, no Rio de Janeiro esses eventos ocorrem também devido à degradação do solo causada por chuvas intensas durante um curto período de tempo, podendo até ocorrer dias após a precipitação. Como resultado de uma combinação de mudanças climáticas globais crescentes, uma história de desmatamento e urbanização e uma falta geral de vontade política para enfrentar de forma proativa os desafios ambientais, a cidade do Rio está passando por um número crescente de desastres naturais com consequências drásticas.
Deslizamentos de terra e enchentes ocorrem com mais frequência no Rio durante a estação chuvosa, de dezembro a abril—correspondendo ao verão e início do outono no Hemisfério Sul, quando as temperaturas são consideravelmente mais altas que no restante do ano.
As favelas da cidade—algumas das quais estão situadas em encostas suscetíveis a risco de deslizamento de terra, enquanto outras estão localizadas em terras baixas e propensas a inundações—estão frequentemente entre as áreas mais afetadas por esses eventos, exacerbados pela provisão inadequada de infraestrutura pública, como obras de saneamento básico e investimentos em muros de contenção. Quando esses desastres ocorrem, autoridades do governo, como o Prefeito Marcelo Crivella e o Governador Wilson Witzel, tendem a culpar as favelas, ignorando a questão da negligência histórica e sistemática do governo.
Sem o investimento adequado em intervenções de mitigação de desastres e programas de resposta a emergências, muitas favelas permanecerão vulneráveis às consequências de desastres naturais. Além disso, sem reconhecer as favelas como soluções habitacionais acessíveis e, em vez disso, tratar mesmo as favelas estabelecidas há muito tempo como espaços problemáticos a serem erradicados, estigmas prejudiciais contra elas servirão apenas para perpetuar narrativas nocivas. Essas, por sua vez, as manterão em um estado precário, levando a ainda mais fatalidades e mais danos físicos, econômicos e ambientais.
Abaixo está uma linha do tempo dos principais eventos de enchentes e deslizamentos de terra que impactaram severamente as favelas do Grande Rio na última década.
Abril 2010
Em 5 de abril de 2010, várias estações meteorológicas do Rio registraram um recorde de 288mm de chuva em 24 horas, muito acima da quantidade média de chuvas no mês de abril (140mm). A quantidade de precipitação nesse período foi a mais alta registrada nos 30 anos anteriores. A Rede Globo comparou essa quantidade de chuva à quantidade de água necessária para encher 300.000 piscinas Olímpicas.
As chuvas torrenciais de 2010 levaram a Câmara Municipal e a Defesa Civil a realizar melhorias tecnológicas nos sistemas de alerta e mitigação de riscos de deslizamento de terra na cidade, após o caos causado nas comunidades do Grande Rio.
Cinquenta e duas pessoas morreram na cidade do Rio de Janeiro (dentre elas, 30 no Morro dos Prazeres; três na Rocinha, na Zona Sul, especificamente na parte superior, do Laboriaux; e cinco no Morro dos Macacos, na Zona Norte), enquanto a contagem total de mortes no estado do Rio foi bem acima de 200—incluindo uma devastação grave em Niterói, onde 99 pessoas morreram (48 somente na comunidade do Morro do Bumba). O número de mortos foi maior do que nas enchentes de Santa Catarina em 2008, que causaram a morte de 130 pessoas.
Aproximadamente outras 160 pessoas ficaram feridas e 15.000 foram forçadas a deixar suas casas em todo o estado. Quando a chuva parou alguns dias depois, 12.000 estavam desabrigadas. Com vários deslizamentos de terra distintos atingindo a área, a estátua do Cristo Redentor teve seu acesso fechado pela primeira vez em sua história.
Janeiro de 2011
As chuvas provenientes da Região Serrana ao norte do Rio causaram morte e destruição em cinco cidades próximas: Teresópolis, Petrópolis, Nova Friburgo, Sumidouro e São José do Vale do Rio Preto. Com mais de 260mm de água em menos de 24 horas, a chuva provocou uma série de deslizamentos de terra em toda a região montanhosa. Nova Friburgo e Teresópolis contaram mais de 250 mortos, com o número final de mortos em mais de 1.000, incluindo 13 de São Paulo. Somente em Teresópolis, 1.000 pessoas ficaram sem casa.
Durante as inundações, a maior parte da área do Rio ficou sem eletricidade ou serviço telefônico, e 60% de Teresópolis e 35% dos cidadãos de Nova Friburgo ainda não tinham acesso à água potável dias após a tempestade ter passado.
A tempestade de janeiro de 2011 causou um dos maiores desastres naturais da área nos últimos cinquenta anos e chamou mais atenção para questões de urbanização acelerada, infraestrutura e direito à moradia no contexto de desastres naturais no Rio. A intempérie também revelou a falta de preparação geral para desastres naturais do Rio: embora helicópteros do exército tenham sido enviados para resgatar feridos e pessoas presas em destroços, estradas e pontes em ruínas dificultaram o trabalho de base para sobreviventes e voluntários que trabalharam na área afetada.
O desastre resultou em uma política governamental de atualização de mapas de deslizamentos de terra e de risco de inundação (que não haviam sido tocados desde 1994), de desenvolvimento de um Sistema Piloto de Monitoramento de Crescimento Urbano, orientando as cidades a incluir o gerenciamento de risco de desastre em suas políticas de expansão urbana, e um sistema de alerta de deslizamentos de terra e enchentes, diretamente ligado à Defesa Civil do Rio.
Março de 2013
Em 18 de março de 2013, em Petrópolis, 64km ao norte do Rio, um rio transbordou e inundou o centro da cidade após fortes chuvas. Vinte e sete pessoas morreram, incluindo uma criança e dois trabalhadores de emergência. Algumas áreas da cidade viram até 390mm de chuva em 24 horas, onde a média mensal normal é de 270mm. Isso aconteceu apenas dois anos após o desastre natural mais devastador do Rio. O número de pessoas deslocadas foi calculado em cerca de 1.500.
Como uma reforma estadual da estratégia de mitigação de desastres naturais foi realizada apenas dois anos antes, a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff, afirmou que “todo o sistema de prevenção de desastre que nós temos está sendo mobilizado para atender àquela região… Eu acho que vão ter que ser tomadas medidas um pouco mais drásticas para que as pessoas não fiquem na região onde não podem ficar [em áreas identificadas como de alto risco]”.
Dezembro de 2013
As fortes chuvas que começaram em 11 de dezembro de 2013 causaram a morte de pelo menos quatro pessoas e deixaram cerca de 6.000 sem suas casas. Isso incluiu 400 famílias apenas no Complexo do Alemão. Muitos edifícios também desabaram como resultado das inundações, como capturado neste vídeo. Na ausência de uma resposta efetiva do governo, muitas pessoas no Complexo do Alemão e outras favelas formaram redes para ajudar aqueles que perderam seus pertences nas chuvas e ajudar a distribuir doações. Redes online e offline foram desenvolvidas, como o Juntos Pelo Complexo do Alemão e o Ocupa Alemão.
Fevereiro 2018
As fortes chuvas que começaram no dia 14 de fevereiro e continuaram durante a noite exigiram que a cidade declarasse estado de emergência. O aeroporto do Galeão foi forçado a interromper as operações e as estações meteorológicas de Piedade, Méier e Madureira registraram uma média de 33,96mm de chuva entre a declaração de emergência às 1h25 e 1h45. Na Barra da Tijuca, 123mm de chuva foram registradas em uma hora.
As sirenes de alerta foram ativadas em 77 favelas e muitas estradas (assim como a Linha 4 do metrô do Rio) foram fechadas devido à queda de árvores e outros detritos. Estima-se que quatro pessoas foram mortas e 2.000 ficaram desabrigadas, a maioria nas favelas do Complexo do Alemão. O prefeito Crivella disse que estava “respondendo à situação” de longe, enquanto viajava para a Europa, e novamente os afetados receberam ajuda urgente de outros moradores de favelas e organizações de caridade, como o jornal comunitário Voz das Comunidades e a ONG de mobilização Meu Rio, enquanto os governos da cidade e do estado fizeram pouco.
Esse evento também foi uma das últimas questões levantadas pela vereadora e defensora de direitos humanos Marielle Franco em seu discurso final na Câmara Municipal do Rio antes de seu assassinato, que ocorreu um mês depois, exigindo maior atenção ao aumento de enchentes e deslizamentos de terra e seu impacto sobre a cidade.
Fevereiro 2019
Quase exatamente um ano depois, várias inundações e deslizamentos de terra foram registrados de 6 a 8 de fevereiro. Em uma hora, a cidade recebeu o equivalente à precipitação de um mês. Entre as áreas mais atingidas estavam as favelas do Vidigal e Rocinha, respectivamente registrando 161,2 e 164mm de chuva em apenas seis horas. Os ventos sopraram em até 100km por hora, causando a queda de várias árvores. Seis pessoas, incluindo uma criança, foram mortas—uma no Vidigal, uma na Rocinha, duas em Barra de Guaratiba e duas na Avenida Niemeyer. As postagens nas redes sociais revelaram os graves danos causados pela tempestade, como este vídeo compartilhado pelo jornalista da Rocinha Michel Silva.
Apesar dos repetidos deslizamentos de terra e inundações e subsequentes pedidos de mais ações governamentais, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre enchentes, lançada pela Câmara Municipal do Rio, revelou que as agências municipais responsáveis pelas medidas de prevenção e controle de enchentes sofreram severos cortes no orçamento nos últimos anos: até abril, a cidade não havia gastado um único centavo em obras de contenção ou drenagem urbana em 2019. Da mesma forma, a CPI constatou que a Defesa Civil do Rio está passando por um orçamento decrescente e seus programas de treinamento para redução do risco de desastres para líderes comunitários das favelas foram descontinuados.
Abril de 2019
A cidade foi atingida novamente por enchentes e deslizamentos de terra, começando em 8 de abril e continuando ao longo da noite. Algumas partes da cidade viram mais de 310mm de chuva em um único dia, quebrando o recorde de chuva mais forte registrado no Rio em mais de três décadas (anteriormente estabelecido pelas chuvas de 2010). Inundações repentinas e deslizamentos de terra mataram dez pessoas e deixaram dezenas de desabrigados. O dano foi consideravelmente mais difícil de mitigar, especialmente nas favelas, dado que essas chuvas torrenciais vieram menos de um mês após as tragédias de fevereiro—das quais muitas comunidades ainda estavam lutando para se recuperar.
Enquanto o Vidigal recebeu visitas da Defesa Civil, no geral a resposta do governo esteve novamente em falta e grande parte da limpeza foi feita pelos próprios moradores, como resultado dos esforços de mobilização da comunidade.
Os padrões climáticos globais indicam que a cidade do Rio de Janeiro continuará a experimentar eventos climáticos extremos. E se a atual tendência de inação continuar, as consequências continuarão a piorar. As favelas merecem menos culpa e mais atenção das autoridades públicas competentes. Embora os esforços de resposta a emergências organizados por moradores e organizações comunitárias devam ser aplaudidos, pois incorporam um espírito de resiliência que é entre as características das favelas do Rio, o governo não deve se eximir de sua responsabilidade de mitigar o risco de desastres previsíveis e evitáveis. Se trata de uma responsabilidade claramente do Estado. Deslizamentos de terra e enchentes são problemas ambientais, mas são exacerbados pelo estigma político e social em torno das favelas—o que, por sua vez, leva a que comunidades inteiras sejam ignoradas em tempos de crise.
A história mostra que os impactos negativos desses desastres naturais e os esforços de prevenção do governo estão negativamente correlacionados: o primeiro está aumentando à medida que o segundo diminui. Em face da mudança climática global, mais ações do governo devem ser tomadas para prevenir e mitigar esses desastres. Na ausência de uma iniciativa política coordenada para atender a essa necessidade, toda a cidade do Rio está sujeita a uma catástrofe ambiental irreversível.