Táticas de Mitigação de Deslizamentos no Rio, Parte 1: História Técnica e Panorama Geral

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Nos primeiros meses de 2019, a cidade do Rio de Janeiro passou por duas chuvas fortes que mataram 17 pessoas e deixaram centenas desabrigadas. À medida que esses desastres se tornam mais comuns, o Rio de Janeiro mostra já sofrer com os impactos dramáticos das mudanças climáticas. Com a recorrência desses eventos, a mitigação adequada de deslizamentos de terra e enchentes tem se tornado um assunto urgente (embora a mesma urgência não se reflita nos orçamentos do governo).

Esta série de matérias sobre os riscos e a mitigação de desastres ambientais joga luz sobre a situação atual dos sistemas de prevenção de desastres naturais no Rio de Janeiro e seus efeitos em favelas da cidade. A presente matéria, primeira das três que compõem a série, foca na definição de risco e na história das estratégias de prevenção de deslizamentos de terra e enchentes atualmente em uso, em especial o Sistema de Alerta e Alarme Comunitário para Chuvas.

Medindo o Risco

No contexto das políticas para prevenção de desastres naturais, as favelas costumam estar localizadas em áreas consideradas “de alto risco”. Para saber mais sobre as desigualdades que as levam a ocupar tais áreas e sobre como elas frequentemente lutam para diminuir esse risco, clique aqui.

A expressão “alto risco” encontra-se associada às favelas em várias políticas municipais, incluindo o Plano de Contingência, que traz as funções e a localização do sistema de sirenes, e o Plano de Gestão de Risco da GEO-Rio. Esse último documento apresenta cinco etapas para “eliminar áreas de alto risco nas encostas mapeadas”:

  1. Conhecimento: Inclui o mapeamento de todas as áreas de risco (feito pela última vez em 2011) e a susceptibilidade a escorregamentos (utilizando mapas temáticos, fotos aéreas e lasers).
  2. Prevenção: Inclui a criação do Alerta Rio (rede telepluviométrica em uso desde 1996), a adição de um radar meteorológico em 1999, pontos de apoio, o treinamento de líderes comunitários, o Centro de Operações do Rio e a instalação do sistema de alarme sonoro em 2011.
  3. Diagnóstico: Inclui o desenvolvimento de projetos de mitigação de riscos em 117 comunidades mapeadas como áreas de alto risco e a divisão dessas comunidades em 10 setores regionais.
  4. Intervenção: Refere-se aos métodos e procedimentos para a contenção de encostas, com um orçamento declarado de R$83 milhões entre 2001 e 2008 e R$320 milhões entre 2009 e 2012.
  5. Monitoramento: Inclui drones, barômetros, pluviômetros, rastreamento por GPS e estações meteorológicas com dados de áudio e vídeo em tempo real.

A imagem abaixo mostra todas as áreas de risco, alto, médio ou baixo, segundo o mapeamento feito pela GEO-Rio em 2011. De acordo com essa avaliação, 117 comunidades estão em áreas de alto risco de desastres naturais.

As áreas de risco são as áreas consideradas as mais vulneráveis aos desastres naturais. Muitas das favelas do Rio estão situadas nas encostas do Maciço da Tijuca e, pelas suas condições geográficas, algumas delas são vulneráveis a deslizamentos. Condições sociais como a urbanização acelerada, a infraestrutura irregular das redes de esgoto e água, e o estigma que estimula o desinvestimento, podem criar, exacerbar ou perpetuar o risco frente a estas comunidades.

Mais Sobre Risco

Combinando dados demográficos e geográficos, o IBGE, junto com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, o CEMADEN, que monitora o risco de desastres naturais em 958 municípios brasileiros, desenvolveu um método de avaliação, baseado em condições geográficas e socioeconômicas, que cruza as características de áreas de risco com os dados de setores censitários. A Base Territorial Estatística de Áreas de Risco, conhecida como o método BATER, foi a ferramenta criada depois dos deslizamentos catastróficos de 2011 e é definido como um “sistema integrado de mapas, cadastros e banco de dados, construído segundo metodologia própria para dar organização e sustentação espacial às atividades de planejamento operacional, coleta e apuração de dados e divulgação de resultados do Censo Demográfico”. O BATER extrai dados do Censo e os cruza com o mapeamento de risco de 2011, tendo como resultado uma combinação dos aspectos tanto técnicos quanto sociais de uma comunidade. Aplicado pela última vez em 2018, o objetivo do método BATER é incluir as características das populações mais expostas ao risco de desastres no Censo de 2020. Seus dados são disponibilizados para que outros municípios os levem em conta ao desenvolver políticas de desastres ambientais, embora não sejam aproveitados em escala significativa na formulação de legislação.

Pluviômetros e Sirenes

Em 1996, uma série de deslizamentos fortes atingiram o Rio de Janeiro, vários ocorrendo no Maciço da Tijuca, um conjunto de morros no meio da cidade que separam a Zona Sul da Zona Oeste. Depois de 350 milímetros de chuva em 48 horas, os deslizamentos resultantes mataram 44 pessoas e destruíram 222 casas. Em resposta, a GEO-Rio instalou um sistema de observação chamado de Alerta Rio. Nascido do SIGRA, um programa piloto de mitigação de deslizamentos na década de 1980, o Alerta Rio começou com a instalação de 30 pluviômetros pela cidade (fotos ao lado) e a instalação de diversos instrumentos de medição automática em uma encosta no Itanhangá. Já que o custo de instalar os instrumentos em vários morros seria alto demais e os dados variados demais para uma área tão grande quanto o Rio de Janeiro, o programa utilizou apenas uma encosta. Os pluviômetros, por sua vez, medem a causa, mas não o efeito de deslizamentos.

A partir de 1996, os pluviômetros passaram a ser distribuídos de acordo com as áreas de risco da cidade, medindo níveis de precipitação nas diferentes zonas e transmitindo os dados a cada 15 minutos a uma estação central computadorizada. Abaixo encontra-se um mapa de 2001 mostrando a localização dos 30 pluviômetros.

Para estabelecer os limiares dos pluviômetros—ou seja, os níveis de precipitação em que um deslizamento se torna possível—a GEO-Rio valeu-se de um estudo de 1997 por D’Orsi et al (publicado no segundo volume do Simpósio Panamericano de Deslizamentos), que determinava a relação entre os deslizamentos e a chuva no Rio com base em 65 deslizamentos e cinco pluviômetros. Em 2001, o limiar era de 180 milímetros de água em 24 horas e, de acordo com os dados mais recentes, agora é de 125 milímetros em 24 horas. O Alerta Rio contém quatro níveis de alerta para o risco de deslizamentos: baixo, médio, alto e muito alto. Um estudo de 2014 sobre a eficiência do sistema produziu a seguinte tabela, que descreve os diferentes níveis e as ações emergenciais a serem tomadas.

Em 1999, a GEO-Rio aprimorou seu sistema de alerta com a adição de um radar Doppler, de satélites meteorológicos para ter dados contínuos ao longo do dia e de um time de meteorologistas que analisava os dados em três fases: a análise regional (dados da internet), a análise em mesoescala (dados dos pluviômetros e da internet) e, finalmente, uma comparação entre os níveis de chuva previstos e os níveis reais em toda a rede pluviométrica.

Nos primeiros anos do sistema de observação, a informação dos pluviômetros só era transmitida a meteorologistas ou engenheiros da GEO-Rio. No entanto, em 1999, o Plano de Emergência para Chuvas Fortes foi introduzido como uma política municipal para determinar os critérios variados para medir os limiares de precipitação pela cidade e o Alerta-Rio foi atualizado para ser um sistema de alerta de chuvas intensas que compartilha seus dados meteorológicos com o público e com outras organizações. A abertura desse acesso acarretou mudanças na gestão do sistema e no seu foco, de uma abordagem mais técnica a uma mais social. Enquanto em 2010 somente os presidentes capacitados de associações de moradores de favela podiam receber mensagens SMS da Defesa Civil de alerta (página 5), atualmente o site da Prefeitura do Rio divulga um serviço gratuito que permite que qualquer pessoa receba alertas de chuva forte via SMS (última atualização em 2019).

O mesmo site inclui uma lista mais recente de áreas de alto risco, atualizada em 2013, mapas de todas as 117 áreas, um Plano de Contingência de protocolos para ação diante de desastres naturais, junto com uma explicação acerca do funcionamento do Alerta Rio e de um arquivo em PDF que pode ser baixado. O mapa abaixo mostra a avaliação de uma seção do Complexo do Alemão na Zona Norte do Rio. A cor verde significa risco baixo, enquanto amarela significa risco médio e vermelho, risco alto. Há duas sirenes (indicadas no mapa pelos ícones S1 e S2) e quatro pontos de apoio (indicadas pelos ícones P1, P2, P3 e P4).

O Alerta Rio também tem seu próprio site, que disponibiliza condições meteorológicas em tempo real, a probabilidade de deslizamentos e um resumo dos diferentes níveis de risco, assim como a divisão da cidade em quatro bacias hidrográficas (a Baía de Guanabara, a Baía de Sepetiba, a Bacia de Jacarepaguá e a Bacia da Zona Sul).

Após as enchentes e deslizamentos de 2010 e 2011 e um mapeamento inédito das áreas de risco em 2011, a GEO-Rio fez sua atualização mais recente do sistema de alertas: um sistema sonoro chamado Sistema de Alerta e Alarme Comunitário para Chuvas Fortes (A2C2). Dentro do A2C2, há dois níveis de alerta. Um é “Alerta”, acionado quando um pluviômetro alcança seu limiar, que informa os agentes da Defesa Civil sobre potenciais ameaças meteorológicas. Os agentes então transmitem essa informação a líderes comunitários e voluntários capacitados pelos programas de prevenção de desastres da Prefeitura. Esse nível não envolve as sirenes e sim a transmissão direta de informações entre a Defesa Civil e o Centro de Operações Rio (COR) e líderes comunitários via SMS. O segundo nível é “Alarme”, que informa a Defesa Civil via SMS da iminência de ameaças meteorológicas e que requer a comunicação entre o sub-secretário da Defesa Civil (atualmente Marcel Jabre Rocha) e o coordenador do COR. Se os dois órgãos acharem que a tempestade iminente levará a deslizamentos ou enchentes grandes o suficiente para justificar a evacuação, as sirenes serão acionadas e os moradores serão obrigados a se deslocarem aos pontos de apoio emergenciais.Esse sistema de dois níveis foi acionado no final de 2011 e no começo de 2012 em 103 áreas de risco do Rio de Janeiro. Para além do novo sistema sonoro, 194 pontos de apoio e 165 sirenes, das quais 83 possuem pluviômetros automáticos, foram instalados em 103 comunidades (desde março de 2019).

É importante ressaltar que as sirenes não são controladas ou monitoradas pelos moradores de favelas e sim pela prefeitura. Mariluce Mariá Souza, uma liderança comunitária do Complexo do Alemão, é pessimista em relação à comunicação entre a prefeitura e os moradores sobre enchentes e deslizamentos. Embora o site da prefeitura e vários documentos afirmem que líderes comunitários das favelas vêm sendo treinados para uma prevenção de desastres naturais e capacitados nas técnicas de mitigação, evacuação e no sistema A2C2, audiências públicas sobre as enchentes com a Defesa Civil em junho de 2018 revelaram que muitos dos programas têm sido suspensos, dado o corte de orçamento nos últimos anos. Mariluce afirma que os moradores frequentemente só ouvem as sirenes quando é tarde demais, depois de horas de chuva. A Defesa Civil não respondeu a pedidos de comentários para esta matéria.

Mesmo assim, as descritas táticas ainda estão sendo postas em prática. Em 2018, um simulado de desocupação foi realizado no Itanhangá, na comunidade do Sítio Pai João. Foi apenas um de vários realizados no estado, que se passaram em 11 municípios, com a participação de 17 agências públicas, 500 agentes e voluntários e 2.300 famílias. O procedimento de evacuação, que obteve sucesso, foi realizado com mensagens SMS, sirenes, 30 agentes comunitários de saúde e líderes comunitários para 520 casas.

Motivo para Preocupação

A avaliação de risco de 2011, atualizada em 2013, é o mapeamento mais recente até hoje, embora vários eventos meteorológicos tenham significantemente alterado a paisagem das áreas de risco nos últimos nove anos, mudança intensificada—especialmente nas favelas da cidade—pela urbanização acelerada, saneamento e esgoto precários e orçamentos diminuídos. De fato, quando um deslizamento na favela da Babilônia na Zona Sul deixou dois mortos em abril do ano passado, a prefeitura admitiu que as sirenes locais não foram acionadas porque os limiares dos pluviômetros não tinham sido atingidos. O Prefeito Marcelo Crivella depois prometeu rever os limiares de acionamento.

Além disso, enquanto as autoridades municipais tentam garantir o acionamento dos alarmes, os critérios em vigor para a mitigação de deslizamentos tendem a gerar um número relativamente alto de alarmes falsos, fazendo com que as comunidades em risco desconfiem do sistema.

Isso dificulta a avaliação do risco de deslizamentos. O mapeamento impreciso torna confusa a mitigação de riscos geográficos e a prevenção de desastres naturais e a desconfiança no sistema pode prejudicar ainda mais as relações entre as comunidades e o governo, alongando o processo de mitigação e prevenção adequadas.

Na medida em que tanto fatores ambientais quanto políticos fazem parte do debate sobre a prevenção de desastres naturais, especialmente nas favelas cariocas, é cada vez mais importante olhar não só para os sistemas em vigor de redução de risco, mas, mais urgentemente, para quem os controla—ainda mais quando parece que as comunidades mais suscetíveis aos desastres são justamente aquelas que não podem medir seu próprio grau de vulnerabilidade.

Esta matéria é a primeira de uma série de três partes que analisará as táticas de mitigação de deslizamentos e enchentes atualmente usadas no Rio de Janeiro, além de descrever sistemas de alarme comunitários já sendo testados em outros países suscetíveis a desastres naturais causados pelas chuvas.