Esta é a primeira matéria, de uma série de quatro, oriunda de uma pesquisa sobre processos disciplinantes que operaram no período pré e durante megaeventos no Rio, e que ainda operam em favelas no Rio. A série utiliza como caso de referência as favelas Babilônia e Chapéu Mangueira, e como categoria de análise aborda o tema da disciplina em três dimensões: física, econômica e simbólica. Esta série é baseada em um artigo científico publicado no periódico CITY, em dezembro de 2018. Leia o artigo na íntegra, em inglês, aqui.
A pesquisa utilizou como referência levantamentos de dados sobre políticas públicas no Rio de Janeiro e entrevistas levadas a cabo entre os anos de 2014 e 2019 nas favelas Babilônia e Chapéu Mangueira. Os nomes dos moradores não foram divulgados.
Introdução: A Transformação das Favelas Cariocas Através da Disciplina
Os anos que antecederam a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos foram cercados por otimismo em muitas cidades brasileiras: mais investimentos em infraestrutura urbana, habitação, serviços, empreendedorismo em todo lugar; um fluxo enorme de pessoas, dinheiro, novos projetos, esperança. O país parecia estar mudando, não só por conta dos eventos esportivos em si, mas, principalmente, devido a um senso geral de estabilidade e desenvolvimento que pairava no ar já há alguns anos.
Evidentemente, isso foi apenas um lado da moeda. Nos bairros e assentamentos mais vulneráveis, as remoções, a violência policial e a alta dos preços imobiliários foram algumas das formas pelas quais as reconfigurações socioespaciais coagiram e empurraram comunidades majoritariamente negras, migrantes e de baixa renda para longe das áreas mais desejadas das cidades. Este processo foi ainda mais peculiar nas favelas da Zona Sul, cujas localizações privilegiadas no tecido urbano foram um catalisador para impulsionar novos fenômenos urbanos.
E o que são esses novos fenômenos urbanos? Com a chegada de novos atores, interesses e investimentos nas grandes cidades brasileiras, as dinâmicas nos bairros de baixa renda e periféricos também começaram a modificar-se. Nos últimos anos, por exemplo, o termo “gentrificação”, que durante décadas foi associado a processos de “aburguesamento” e “expulsão branca” em bairros europeus e americanos, começou também a fazer parte do léxico das favelas brasileiras. O Rio de Janeiro não é propriamente pioneiro neste sentido, já que relatos sobre gentrificação apareceram nos anos 1990 em outras comunidades brasileiras, como é o caso do Pelourinho, em Salvador, na Bahia. Entretanto, o Rio parece ter sido um dos casos mais emblemáticos ao tratar-se de gentrificação em favelas. Especialmente na Zona Sul, comunidades como Santa Marta, Vidigal, Babilônia e Rocinha sofreram transformações bruscas, onde especulação imobiliária, turismo e controle policial se juntaram em um poderoso emaranhado de forças, cujas consequências ainda reverberam até os dias atuais.
Alguns dos emblemáticos eventos que afetaram as favelas do Rio e sua correlação com a flutuação dos preços imobiliários na cidade. Veja gráfico acima.
- Outubro de 2007: Brasil é confirmado sede da Copa do Mundo de 2014.
- Março de 2008: Começam as primeiras obras do PAC nas favelas do Alemão, Manguinhos e Rocinha.
- Novembro de 2008: Instalação da primeira UPP na Favela Santa Marta, Zona Sul do Rio.
- Outubro de 2009: Rio de Janeiro é confirmado sede das Olimpíadas de 2016.
- Julho de 2010: Lançamento do Programa Morar Carioca.
- Fevereiro de 2011: Início das obras do Morar Carioca nas favelas Babilônia e Chapéu Mangueira.
- Julho de 2011: Inauguração do teleférico no Complexo do Alemão.
- Março de 2013: Prefeitura entrega unidades de edifício habitacional sustentável, construído como parte do “Morar Carioca Verde” na Babilônia.
- Junho/Julho de 2014: Copa do Mundo. Muitas das favelas da Zona Sul já encontram-se cheias de albergues e bares voltados para o turismo.
- Julho de 2016: Olimpíadas. Consolidação da maior parte das obra da temporada de megaeventos na cidade.
Agentes e Forças no Processo de Transformação de Favelas
Nesse sentido, é fundamental ressaltar que a política de pacificação, prévia aos megaeventos, foi um fator de peso para as transformações culturais e socioespaciais nas favelas. Sua implementação, abordagem e consequências foram diferentes nas diversas favelas. Além disso, a UPP parece ter entrado em um processo de decadência sem volta, principalmente após a nova retomada do tráfico a partir de 2017. Entretanto, no princípio, o projeto da UPP era vendido como uma presença permanente do Estado nas favelas, impondo a ordem e a força da lei.
A sensação de segurança e a imagem “exótica” que muitas favelas transmitiam para observadores externos impulsionou o turismo, que foi promovido tanto por agentes externos às favelas quanto pelos próprios moradores (turismo de base comunitária). Além disso, albergues, galerias de arte, restaurantes e bares da moda, além de trilhas ecológicas, se espalharam por diversas favelas do Rio, especialmente aquelas com as vistas mais privilegiadas.
Os projetos urbanos pavimentaram o caminho, literalmente, para que isto acontecesse. Parte de uma sucessão de políticas urbanas que já vinham ocorrendo desde o início da década de 1990—notadamente com o Favela-Bairro—programas como o PAC e o Morar Carioca tiveram algumas de suas intervenções focadas em atrair investimentos, visibilidade e turismo para as favelas. O exemplo emblemático destes processos são os teleféricos e mirantes instalados nas favelas, inspirados, em grande parte, no caso de sucesso de Medellín.
Finalmente, há a presença dos investimentos privados, sejam eles na forma de pequenos empreendedores que alavancaram seus negócios nas favelas, ou na forma das grandes empreiteiras e organizações internacionais que viram nas favelas terrenos férteis para novos empreendimentos.
Enfim, é este emaranhado de forças e interesses que se desenhou em algumas de nossas favelas contemporâneas. O legado destas iniciativas é incerto e volátil, mas deixou suas marcas. Para tornarem-se palatáveis e atraentes para o consumidor externo, foi preciso disciplinar os territórios. Afinal, durante longas décadas, a favela era percebida como um local de desordem e marginalidade. Mas como os moradores percebem estes processos com características disciplinadoras?
Para melhor compreender a ascensão e declínio destes fenômenos e seus efeitos nos moradores, utilizamos como caso emblemático alguns relatos vividos pelos moradores das favelas Babilônia e Chapéu Mangueira; favelas extremamente vulneráveis às pressões imobiliárias da cidade.
Nesta série composta por quatro matérias, trataremos das forças que operaram e ainda operam nas favelas da Zona Sul, utilizando como caso de referência as favelas Babilônia e Chapéu Mangueira. Como categoria de análise, abordamos o tema da “disciplina” em três importantes dimensões: (1) física, (2) econômica e (3) simbólica. Neste texto buscou-se embasar os processos disciplinantes e os fenômenos que impulsionaram transformações socioespaciais nas favelas da Zona Sul. Na próximo matéria, trataremos o tema da disciplina física, utilizando as vozes dos moradores e sua experiência como ponto de partida.
Eric Chu é professor de Planejamento e Geografia Humana na Escola de Geografia, Ciências da Terra e do Meio Ambiente da Universidade de Birmingham.
Isabelle Anguelovski é fundadora e diretora do Laboratório de Barcelona para Justiça e Sustentabilidade Ambiental Urbana e professora de pesquisa do ICREA na Universitat Autònoma de Barcelona, no Instituto de Ciência e Tecnologias Ambientais (ICTA) e no Instituto Hospital del Mar de Investigações Médicas (IMIM).
Thaisa Comelli é doutora em urbanismo e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ, e pesquisadora visitante na Unidade de Planejamento de Desenvolvimento da University College London.