Esta é a última matéria, de uma série de quatro, oriunda de uma pesquisa sobre processos disciplinantes que operaram no período pré e durante megaeventos no Rio, e que ainda operam em favelas no Rio. A série utiliza como caso de referência as favelas Babilônia e Chapéu Mangueira, e como categoria de análise aborda o tema da disciplina em três dimensões: física, econômica e simbólica. Esta série é baseada em um artigo científico publicado no periódico CITY, em dezembro de 2018. Leia o artigo na íntegra, em inglês, aqui. Leia a série completa aqui.
A pesquisa utilizou como referência levantamentos de dados sobre políticas públicas no Rio de Janeiro e entrevistas levadas a cabo entre os anos de 2014 e 2019 nas favelas Babilônia e Chapéu Mangueira. Os nomes dos moradores não foram divulgados. A parte 4, abaixo, analisa o processo de disciplina simbólica.
Cultura, Identidade e Repressão
A Parte 1 desta série tratou dos condicionantes e catalisadores de alguns fenômenos que marcaram as favelas da Zona Sul do Rio ao longo dos últimos anos, culminando no emblemático período dos megaeventos e da subsequente crise política e econômica. Já as partes 2 e 3 trataram de duas importantes formas de disciplina exercidas nestes territórios: a física e a econômica.
Entretanto, há forças disciplinadoras cuja influência ocorre na dimensão sociocultural da cidade. Trata-se da disciplina simbólica, que está ligada a um conjunto de valores, imaginários e identidades construídas em torno dos territórios marginalizados do Rio de Janeiro. São ações que ora reproduzem os estereótipos das favelas, ora se apropriam deles para criar novas demandas e novas formas de entender espaço e cultura.
E como são muitas as favelas, são também muitas as histórias, tradições e elementos identitários que compõem esses territórios. Mas durante as transformações que precederam os megaeventos, o Baile Funk apareceu como um dos grandes estandartes simbólicos da favela, e elemento e território de disputa entre grupos.
O Baile Funk é ao mesmo tempo um local, uma manifestação, um símbolo e um processo de construção identitário. Sua presença na cidade e na favela divide opiniões: para alguns, é um evento e um local propício para tráfico de drogas, vulgaridade e violência; é a definição do submundo. Para outros, é uma manifestação de cultura legítima e autêntica, que possui valor em parte também por não seguir determinadas regras comportamentais e estéticas. E finalmente para alguns, o funk contemporâneo é somente mais um mecanismo para a apropriação cultural e econômica da favela com um posterior uso no mercado nacional e internacional da música.
Mas como moradores, representantes do Estado e empreendimentos privados comerciais interagem na disputa pelos territórios culturais das favelas, produzindo e contestando essas manifestações de disciplina simbólica?
A UPP como Agente Disciplinador do Lazer e da Cultura
As Unidades de Polícia Pacificadora simbolizam para o público geral a presença física do Estado nas favelas. Isso significou, especialmente no início, um trabalho de contenção e diminuição do crime e da violência. Essas ações, como já vimos anteriormente, foram alvo de polêmicas tanto por suas estratégias, quanto por sua efetividade nos resultados. Entretanto, a UPP (e outros representantes do Estado) atuaram em áreas que fogem do escopo da disciplina física e do combate direto ao crime, afetando o dia-a-dia e os padrões comportamentais de moradores locais.
Especialmente nas favelas da Zona Sul, a presença da UPP também significou um reforço das leis que, em tese, deveriam vigorar na cidade como um todo. Isso significou a regulação das atividades de moradores dos espaços públicos, sejam elas um churrasquinho na praça, uma festa de aniversário ou um baile funk. Nas residências e empreendimentos privados, também passou-se a reforçar normas como a Lei do Silêncio, onde são regulados o volume e o horário de reuniões e festas.
Visões Conflitantes Sobre a Regulamentação do Lazer
A forma como essa disciplina foi posta em prática foi amplamente questionada pelos moradores locais. Enquanto alguns defendiam a necessidade de organizar e regular as práticas coletivas, outros enfatizaram a perda da liberdade e da espontaneidade trazidas pelas novas regras.
Você tem a Lei do Silêncio. Você pode escutar a sua música, mas baixo. Se você der uma festa, tem um horário pra cumprir, tem um horário pra baixar a música, pra terminar a sua festa. Antes nós não tínhamos isso. A qualquer hora você podia ligar seu som e fazer sua festa, sabe? Mas eu acho que isso é bom, porque reeducou a gente. Nós aprendemos a viver como a sociedade vive.” – moradora local, 2015
Eu pessoalmente acho que isso é bom. Eu acordo cedo todo dia. Daí meu vizinho, por exemplo, faz uma festa e seis horas da manhã ainda tá rolando. E essa festa é do lado da minha casa, e a música é alta, e não tem organização… Então, isso me atrapalharia. Eu preciso descansar.” – morador local, 2018
Antes a gente podia escutar música, um morador podia dar uma festa na rua, todo mundo se juntava… Agora é proibido, sabe? Eles [governo] fizeram uma praça ali embaixo. Pra fazer uma festa lá eu precisei pedir pra UPP, e eles vetaram meu evento.” – moradora local, 2015
Questionou-se também quem são os reais alvos destas proibições: as práticas em si ou os próprios moradores? Durante os megaeventos, houve relatos de que mesmo as festas não ligadas ao funk (como rodas de samba e pagode em bares locais) eram proibidas pelos oficiais da UPP. Em outras palavras, moradores denunciaram que, enquanto festas destinadas aos turistas eram autorizadas pela UPP, o funk e qualquer outra prática voltada para os locais eram proibidas.
As pessoas não têm o direito de ir e vir e se divertir. Eu acho que os policiais querem que, pouco a pouco, a gente saia da comunidade pra ir se divertir em outros lugares, pra esse lugar virar turístico. Eles querem turistas aqui. Tanto que no bar do estrangeiro todo fim de semana eles têm tudo, enquanto eu não posso. Os moradores me pedem pra organizar [festas], mas eu não posso. Eu tento, tento, mas não posso.” – ex-proprietária de bar local, 2015
“Se eu quero ir para um baile funk, eu tenho que ir para outra comunidade e me arriscar. Porque quando você vai pra um baile funk você não volta cedo. E você tem uma comunidade dividida, então é perigoso.” – Moradora local, 2015
O Funk e a Criminalização da Favela e da Periferia
Quando entrevistados em fevereiro de 2015, oficiais da UPP alegaram que não havia discriminação entre os tipos de eventos organizados pelos moradores. Se estivesse de acordo com as normas, o evento era permitido. O funk, entretanto, permanecia como prática proibida até então.
“O critério [para autorizar um evento] é de acordo com o que é descrito. Na semana passada nós tivemos um chá de bebê. Não tem como negar isso. Por exemplo, nós temos uma galeria de arte aqui. Se você tá organizando uma vernissage lá, não tem como negar isso. Mas se na mesma galeria você me disser que você está organizando um baile funk… Baile funk não precisa só da nossa autorização, precisa da autorização da Secretaria de Segurança… Antigamente, antes da UPP, os bailes funk eram um enorme mercado de drogas. Todo mundo sabe disso, drogas, orgia, tudo… Então a presença do governo é ativa aqui.” – Policial da UPP, 2015
A própria existência da UPP possui íntima ligação com a criminalização do funk. Enquanto a primeira unidade no morro Santa Marta foi inaugurada em novembro de 2008, a lei estadual nº 5.265, que criava uma série de estritos requisitos para a realização de um baile funk, foi aprovada apenas seis meses antes, em maio de 2008.
“Não vamos perseguir os eventos como aconteceu no passado com o samba. O objetivo é disciplinar e não proibir.” – Álvaro Lins, então deputado pelo PMDB em entrevista ao G1, 2008
Ainda em 2015, o cenário cultural nas favelas Babilônia e Chapéu Mangueira sofreu algumas transformações. Pela primeira vez em anos, os moradores assistiram novas edições do Baile do Chapéu Mangueira, que atraiu moradores locais, moradores de outros bairros e turistas.
Hoje, mais de 10 anos depois do início das UPPs e 3 anos depois dos megaeventos, o funk continua produzindo imagens polêmicas sobre as favelas. Em 2017, uma proposta de criminalização do funk chegou até o Senado, sendo derrubada posteriormente. Apesar de amplamente popular e até comercializado por grandes nomes da música, o funk ainda é associado ao crime, à violência e a vadiagem, mostrando que algumas narrativas sobre as favelas e seus moradores persistem e se renovam.
Há aqueles que aleguem que, na realidade, a intenção não é criminalizar o funk, mas as práticas periféricas como um todo, especialmente aquelas realizadas pela população negra. A disciplina simbólica, portanto, diferente de outros processos disciplinadores, pode encontrar mecanismos menos explícitos para perpetuar narrativas hegemônicas e, inclusive, ganhar apoio dos próprios moradores das favelas. A vontade de ser tratado como cidadão estimula alguns moradores a apoiar sem maiores questionamentos um reforço de normas que, pouco a pouco, corroem formas alternativas de existir com legitimidade na cidade. Nesse sentido, o funk tem sido não só manifestação cultural e território em disputa, mas também um possível instrumento de luta urbana.
Eric Chu é professor de Planejamento e Geografia Humana na Escola de Geografia, Ciências da Terra e do Meio Ambiente da Universidade de Birmingham.
Isabelle Anguelovski é fundadora e diretora do Laboratório de Barcelona para Justiça e Sustentabilidade Ambiental Urbana e professora de pesquisa do ICREA na Universitat Autònoma de Barcelona, no Instituto de Ciência e Tecnologias Ambientais (ICTA) e no Instituto Hospital del Mar de Investigações Médicas (IMIM).
Thaisa Comelli é doutora em urbanismo e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ, e pesquisadora visitante na Unidade de Planejamento de Desenvolvimento da University College London.
Esta é a última matéria, de uma série de quatro, oriunda de uma pesquisa sobre processos disciplinantes que operaram no período pré e durante megaeventos no Rio, e que ainda operam em favelas no Rio.