Apesar das chuvas torrenciais e dos alarmes meteorológicos, os caracteristicamente resilientes moradores e apoiadores da Vila Autódromo, no bairro da Zona Oeste saíram em massa no dia 1º de março, lotando a igreja São José Operário para a exibição oficial de três filmes sobre a comunidade. Conectada ao próprio Museu das Remoções da comunidade, a igreja católica da Vila Autódromo original ainda fica em um dos limites da atual Vila Autódromo, próximo do imponente Residence Inn da Marriot, construído ao lado da comunidade original para as Olimpíadas do Rio em 2016. Porém, nessa noite em particular, era a igreja e não o hotel, que estava cheia de pessoas.
Até 2013, a Vila Autódromo, localizada às margens da Lagoa de Jacarepaguá, na Zona Oeste, abrigava cerca de 700 famílias. A especulação imobiliária ameaçou pela primeira vez a comunidade de 50 anos quando a Barra da Tijuca começou a se expandir no início dos anos 1990. Os moradores se organizaram e responderam com uma, bem-sucedida, campanha de resistência da comunidade, liderada pela Associação de Moradores, Pescadores e Amigos da Vila Autódromo (AMPAVA), conquistando 99 anos de concessão de uso da terra pelo governo do Estado garantindo uma segurança temporária.
Em 2 de outubro de 2009, no entanto, a ameaça retornou. O Rio de Janeiro foi selecionado para sediar as Olimpíadas de 2016 e o então prefeito Eduardo Paes anunciou que a Vila Autódromo, localizada ao lado do futuro parque Olímpico (local onde seriam desenvolvidos condomínios de luxo após os Jogos), seria removida para uma outra área em construção. As justificativas fornecidas pela prefeitura para a remoção mudavam de um mês para o outro, enquanto a comunidade estava determinada em permanecer no local. A partir de 2010, a comunidade trabalhou com defensores públicos do Estado do Rio e parceiros de planejamento urbano da UFRJ e da UFF para combater a ameaça de remoção de forma legal e pragmática, desenvolvendo até um premiado Plano Popular que permitiria que a comunidade fosse totalmente urbanizada e que permanecesse no local durante e após os Jogos. A comunidade ficou conhecida internacionalmente por sua resistência nesse período. Apesar do direito nacional e internacionalmente reconhecido da Vila Autódromo de permanecer em suas terras e de diversos esforços criativos para permanecer, a prefeitura conseguiu, ao longo de um período de uns dois anos, realizar remoções e demolições, algumas violentas.
Das 700 famílias originais, restaram apenas 20 famílias, suas novas casas cercadas em 2016 por asfalto, onde ficavam suas casas antigas e as de seus vizinhos. Hoje o asfalto em torno já foi tomado por plantas, virando espaços verdes. Os moradores remanescentes da Vila Autódromo lembram diariamente a história violenta, motivando seu ativismo contínuo e compartilhando a resistência da comunidade. Isso, por sua vez, continua inspirando amigos e colaboradores de longa data a voltarem à comunidade para realizarem projetos como a exibição dos filmes em 1º de março.
Três Novos Filmes Sobre a Vila Autódromo
Entre junho e setembro de 2017, Cristina Ribas e Lucas S. Icó trabalharam com moradores da Vila Autódromo para escrever o livro vocabulários em movimento / \ vidas em resistência: singularidades na luta a partir de conversas na Vila Autódromo. Realizado em colaboração com o Goethe-Institut do Rio de Janeiro e o Museu das Remoções, o livro funciona como um mapa das palavras usadas pelos moradores para descrever a resistência da comunidade. Resumido por Cristina e Lucas como um “glossário de termos de resistência”, que serve para facilitar “uma articulação entre passado, presente e futuro”.
Os dois autores explicaram que o livro foi o ponto de partida para um projeto de audiovisual para a produção de três filmes apoiados pelo Le 19 Centre régional d’Art Contemporain. Os dois autores trabalharam com outro cineasta, Sol Archer, para envolver muitos dos atuais moradores da Vila Autódromo para falarem das suas experiências de continuidade da resistência. Esses três filmes foram o foco da exibição do dia.
O primeiro filme, Caminhar ao Redor, foca nos modelos contrastantes do que é uma cidade, apresentando a Vila Autódromo como é hoje e os projetos Olímpicos de construções, como também são hoje. Imagens dinâmicas retratam a paisagem verde da comunidade, cheia de árvores. Cristina explicou o objetivo de demonstrar que essa conexão entre a Vila Autódromo e a natureza desempenha um papel central na maneira como a comunidade cuida do espaço natural, como fez na comunidade original. Essas imagens são interrompidas pelos projetos conflitantes de construção Olímpica, a saber, o ruído do tráfego na rodovia do BRT e o mega-hotel vizinho. Cristina explicou que a interrupção visual e sonora visava demonstrar como esses projetos de construção poluem a área. O filme não apresenta pessoas, optando por descrever os espaços em que habitavam e dos quais agora estão excluídos.
O segundo filme, Caminhar Pra Longe, segue a moradora da Vila Autódromo, Denise Costa dos Santos, uma das que resistiram com sucesso até o final e foi alojada em uma das 20 unidades idênticas fornecidas pela prefeitura nas terras originais da comunidade. No filme, Denise caminha de sua casa para a favela vizinha Asa Branca e para as colinas mais além. Denise guia os cineastas por estradas movimentadas e por condomínios exclusivos, os quais atuam como um obstáculo aos espaços naturais que Denise—desbravadamente—está tentando acessar.
A caminhada tem dois propósitos especiais para Denise. A primeira é terapêutica: Denise explica que não quer ficar presa em sua casa e acha revigorante andar. Ela diz que faz essa caminhada por causa da história da Vila Autódromo e que é uma terapia para os “horrores das remoções”. Denise diz que “não pode esquecer o passado”, mas que o “sofrimento deu a [ela] força”, força para se reconectar com o espaço em que vive e a terra pela qual lutou. A segunda é funcional: Denise pega materiais recicláveis que as pessoas jogam no chão, principalmente latas de alumínio e garrafas plásticas. Ela explica que está preocupada com a reciclagem desde antes das remoções e está preocupada com as pessoas que jogam lixo no ambiente. Denise viveu na antiga Vila Autódromo por 26 anos e agora vive na nova Vila Autódromo há três. Ela diz que travou uma guerra para ficar até o fim e encontrar uma solução.
O terceiro filme, Memória do Teatro na Vila Autódromo, concentra-se em um projeto de teatro que envolve moradores e cineastas. O filme mostra os moradores, alguns dos quais estudaram teatro anteriormente e ensaiaram na comunidade, atuando e interagindo através de várias sequências improvisadas em vários encontros. Luiz Claudio Silva, morador de longa data da comunidade original e líder da atual Vila Autódromo, disse que é importante lembrar as pessoas “dos talentos das comunidades abandonadas nas periferias“. Cristina explicou que o principal objetivo dos encontros era atuar e apreciar as coisas maravilhosas que o corpo pode fazer. Ele também destacou sua preferência por explorar a história coletiva dos moradores da Vila Autódromo através do trabalho de corpo na atuação após o trabalho realizado com vocabulários em movimento / \ vidas em resistência.
Os filmes do dia são uma prova do sucesso da Vila Autódromo, que, apesar de perder mais de 97% de seus moradores originais, continua sendo um dos casos mais resilientes na história de resistência às remoções Olímpicas no mundo. Ao preservar a memória daqueles que moravam lá e a luta da comunidade, fundar seu próprio museu e manter uma cultura artística vibrante em torno de sua resiliência anos depois, a comunidade continua a servir como modelo internacional para comunidades que lutam contra remoções que antecedem a chegada dos megaeventos.