Criado em maio de 2019, o Só Cria, um curso pré-vestibular comunitário da Rocinha, é gratuito e atende moradores de diversas favelas, principalmente da Rocinha, Vidigal e arredores. As aulas acontecem no CIEP Ayrton Senna e contam com professores voluntários das principais disciplinas exigidas nas provas.
O projeto surgiu a partir das inquietações de um grupo de jovens acerca da forma como os moradores de favela eram incluídos no espaço acadêmico e sobre como era possível desenvolver uma consciência de classe dentre esses grupo de pessoas. A partir de então, eles se reuniram com membros do Movimenta Rocinha, das Brigadas Populares e com os diretores do CIEP Ayrton Senna e o grêmio da escola para debaterem a importância da representatividade e quais tipos de ferramentas eram necessárias para a educação que eles queriam no futuro. Assim nasceu o Só Cria.
Em sua cerimônia de abertura, o grupo realizou um debate sobre educação, cultura e favela com a presença de Seimour Souza, do Núcleo Independente Comunitário de Aprendizagem (N.I.C.A.) do Jacarezinho, de Antônio Firminio, do Museu Sankofa da Rocinha, e Mariana Reis, pedagoga do Só Cria. Além disso, houve apresentações de poesia do grupo Slam das Minas e uma oficina de lambes para que os alunos ressignificassem as paredes da escola com imagens importantes da história brasileira.
No fim do ano passado, o Só Cria recebeu a homenagem Carolina Maria de Jesus na ALERJ no Dia Internacional dos Direitos Humanos. A homenagem é uma iniciativa do mandato da Deputada Estadual Renata Souza para reconhecer o trabalho de iniciativas comprometidas com a defesa dos direitos humanos.
O pré-vestibular teve a sua primeira aluna aprovada numa universidade já em 2019: Korê Canela. De origem indígena, Korê, também conhecida por seu nome em português Noêmia, está cursando Licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Moradora do morro dos Tabajaras, em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro, a jovem acreana mudou-se para o Rio há dois anos por conta de um relacionamento. Nesse meio tempo, começou a trabalhar na praia de Copacabana para se manter na cidade.
Korê, de 29 anos, é a primeira da família a ingressar na faculdade. Para ela, poder estar num ambiente universitário é um sonho realizado. “Conheci o pré-vestibular por meio de uma amiga que mora na Rocinha. Desde então, quando conheci os professores me identifiquei com as aulas e minha amiga também me ajudou e incentivou a continuar estudando. Acredito que isso também ajudou a me dedicar e conseguir finalmente entrar na faculdade. Foi então que no meio do ano passado decidi fazer a prova da Rural. No momento em que vi a grade do meu curso de interesse, eu gostei e quis ir para lá”, conta ela.
A opção pelo curso de Educação no Campo, voltado para formação de professores de escolas do campo e quilombolas, para ela é uma oportunidade de conhecer mais suas próprias raízes e poder, no futuro, ser professora e contribuir para a educação dos povos indígenas. O seu povo, Canela, encontra-se disperso após sucessivos massacres, mas sonha em resgatar a sua cultura.
Ela hoje vive no município de Seropédica, na Região Metropolitana do Rio, próximo à universidade. Korê, que ainda tem alguns anos de estudo pela frente, já pensa no que irá fazer após a formatura. “No momento estou recebendo ajuda do meu pai e da minha avó, que estão no Acre e muito felizes com a minha conquista. Quando eu finalizar minha graduação quero voltar para o meu estado e poder compartilhar com o meu povo tudo o que aprendi durante esse período, como forma de agradecimento também. É muito importante essa interação e troca de conhecimentos”.
Morador da Rocinha e engenheiro, Lucas Almeida, de 26 anos, é um dos criadores do pré-vestibular. Para ele, a iniciativa é de extrema importância para a comunidade. “É uma grande alegria participar de um pré-comunitário e nossa primeira aluna aprovada ser uma indígena com o sonho de retornar às suas raízes e poder ser professora. É indescritível a satisfação de ter uma aluna como a Korê, muito empenhada e solícita a aprender”, conta ele.
Ele também fala sobre o projeto ser um pontapé inicial para os moradores continuarem os estudos por meio de uma graduação. “Nós estamos falando de uma comunidade com mais de 120.000 pessoas. Quantos talentos temos aqui? Com certeza inúmeros. O Só Cria se torna mais uma oportunidade de alcançar uma vida melhor e mais digna. Sabemos que a verdadeira mudança devia ser no ensino básico e médio, mas seguimos fortes construindo com os alunos a esperança e o caminho para os seus sonhos. O vestibular não é nada fácil, mas a possibilidade de ter mais pessoas nas universidades pensando coletivamente em como melhorar a vida da favela e da periferia é extraordinário”.
Professora de sociologia e uma das principais incentivadoras de Korê, Amanda Trojahn, de 22 anos, sente-se grata por ter feito essa ponte para a nova universitária. “Assim que começamos com o curso ela se inscreveu. É uma conquista significativa, principalmente por ela ser indígena, de origem popular, que aqui no Rio morava na favela. E esse curso que ela escolheu também simboliza resistência. Eu fui aluna da Rural e esse gostinho de ter ajudado é muito bom. Agora nós do Só Cria estamos mais motivados em continuar com o projeto e ajudar outras pessoas a estudar e ocupar essas universidades”, diz ela.
Para a edição de 2020, as inscrições para professores voluntários e alunos já se encerraram. Aqueles que se inscreveram para as aulas devem ficar atentos aos seus e-mails, por meio do qual receberão a chamada para as entrevistas.