Me chamo Flávio da Silva França Alves, mais conhecido como Mestre Flavinho, sou batuqueiro, jongueiro, imperiano e fundador do Projeto Herdeiros. Nascido e criado no Morro da Serrinha, desde as primeiras horas de vida recebi de Olorun uma visão das minhas origens ancestrais.
A História do Morro da Serrinha
A comunidade do Morro da Serrinha tem mais de 100 anos de existência. Está localizada em Madureira, Zona Norte do Rio. Sua história começa logo no início do século XX. Após a abolição da escravidão por lei e da proclamação da república, as pessoas escravizadas não receberam nenhum tipo de indenização. Os trabalhos que realizavam no campo de forma escrava foram substituídos por mão-de-obra de imigrantes europeus, que diferente deles recebiam por seu trabalho. A falta de perspectivas no campo forçou a migração dos negros para a então capital, o Rio de Janeiro.
Nessa época, a região do Centro da cidade fervia de pessoas de distintas raças e classes, o que não agradava a burguesia. Com isso, o então Prefeito Pereira Passos pôs em prática o famoso bota-baixo dos cortiços da região para a construção do que é hoje a Avenida Rio Branco.
Para quê voltar tanto atrás? Porque para entender a Serrinha é preciso estar em contato com nosso passado. Os primeiros moradores da Serrinha vieram justamente das fazendas da Região do Vale do Paraíba e do Centro do Rio após o bota-baixo. Cada um deles trouxe um conhecimento, ou muitos.
A Minha História na Serrinha
Quando mais novo, eu sempre ficava muito vidrado nas conversas e assuntos que os mais velhos nos passavam, as informações que nos traziam desde a época da escravidão no Brasil. Meu vô Guaracy Rosa, portuário de profissão e de origem do Congo, era batuqueiro e jongueiro. Trouxe com ele os ensinamentos do pai e, assim, me repassava o que havia aprendido. O que ele dizia muito era que “tudo era um mistério e que crianças não podiam se envolver muito com essas coisas”. Daí é que vêm as minhas indagações, porque sempre foi assim: mantendo a tradição do jeitinho que o vô ensinou, tudo era na base do cafezinho e do bom e velho bate papo.
Quando eu pegava a panela da minha mãe, desde muito cedo já batucava. O velho me dizia: “Bate assim? Patum patum papa tacaticatá”, valorizando a cultura da oralidade e a continuidade do samba. Foi dessa maneira que eu aprendi e repassei nossa musicalidade para os meus filhos.
A cada dia nós crianças criávamos uma nova brincadeira, desde brincadeiras de pique até montar uma bateria de latas e baldes velhos e fingir ser casal de mestre sala e porta bandeira. A nossa favela tem um ritmo contagiante.
A partir dos anos 1990, o funk—também de origem rítmica africana—tomou conta do nosso astral e da nossa casa, fazendo qualquer um mexer o popozão e requebrar o corpinho. Minha mãe dançava funk enquanto lavava a louça. Eu, muito ativo e já crescidinho nos anos 2000, juntei a galera da minha geração e criei um grupo de dançarinos de funk, o Bonde dos Neguinhos. Foi um momento histórico e marcante em nossas vidas.
A Serrinha como Grande Aula de História
O jongo e o samba chegaram na Serrinha como resultado de políticas públicas excludentes. Nós consideramos o jongo o pai do samba. Há quem diga que ele é o avô. É um ritmo de um grupo étnico africano que foi traficado de sua terra natal para a realização de trabalho escravo no Brasil e que sobreviveu em meio aos sofrimentos das plantações. Nos canaviais e cafezais, os negros utilizavam do ponto do jongo para se comunicarem, uma vez que ele se utiliza de metáforas, podendo apenas ser entendido por quem é jongueiro.
Já o samba nasce após a abolição, com forte viés político—e é assim até hoje. Durante o período de políticas de segregação, os negros não podiam participar da grande festa do carnaval e então criaram sua própria festa, que tinha por base o samba. Não era apenas uma festa, mas sim um ato de resistência. No início do século XX, o samba era um ritmo marginalizado e criminalizado devido a essas origens africanas. Aliás, toda e qualquer expressão cultural de origem africana foi marginalizada ao longo da história—o samba de ontem é o funk de hoje.
Assim como o samba, eram criminalizadas as práticas religiosas de matriz africana. A Serrinha não teria suas origens musicais se não fossem os terreiros que fincaram as tendas no morro. Foram dias e noites de encruzilhadas sonoras, nos quais terreiros de umbanda e candomblé acendiam suas fogueiras melódicas em harmonia com o território.
Tudo isso transformou a Serrinha em um polo cultural. Andar pela Serrinha hoje é como uma aula de história. Passeando por suas ruas e becos, vemos presentes os artistas serranos que ali viveram. Entrando pela Rua Compositor Silas de Oliveira (o poeta por detrás de Aquarela Brasileira), chegamos à Casa do Jongo, que por sua vez está ao lado da Creche Vó Maria Joana, grande matriarca do Jongo. Um pouco acima, passamos pela Rua Mestre Darcy do Jongo e à frente, à esquerda, está a famosa Rua da Balaiada—que agora se chama Rua Tia Eulália. Assim como a Tia Ciata, Tia Eulália organizava os famosos pagodes com sambistas e jongueiros. E foi em sua casa que nasceu o Império Serrano. Não nos esqueçamos também do saudoso Mano Décio da Viola, que nomeia a rua paralela à Compositor Silas de Oliveira—os dois se uniram a Manoel de Ferreira para compor o hino Heróis da Liberdade para o carnaval de 1969 do Império Serrano.
A Serrinha Hoje
Tanta história e cultura fortalecem as ações locais atuais. Exemplo vivo disso é a Casa do Jongo da Serrinha, que acolhe crianças locais com aulas de dança, instrumentos e cultura popular, além de abrigar o Projeto Herdeiros, do qual sou fundador e que reúne jovens que dão continuidade ao legado do samba, presente desde a fundação do morro, por meio de aulas de instrumentos musicais. Assim viabilizamos o treinamento de futuros ritmistas da nossa Sinfônica do Samba. O filme documental Herdeiros, em processo de finalização, retrata essa tentativa de ocupação do espaço e apropriação das narrativas para lançar um novo olhar sobre a cultura local e retomar nomes esquecidos na história da música, além de empoderar as futuras gerações, numa tentativa de criação de um sistema sustentável.
Outros bons exemplos das ações culturais locais são o Samba na Serrinha, tradicional roda de samba semi-acústica que também acontece na Casa do Jongo e aproxima a comunidade de suas raízes musicais, a Império do Futuro, a primeira escola de carnaval mirim do Rio e criada pelo Mestre Careca (Mestre que é uma escola de samba por si só e inclusive formou musicalmente os fundadores do Projeto Herdeiros), e o webshow “Fala Serrinha!“, pensado e dirigido pelo grandioso João da Serrinha e que transforma cada morador em protagonista da sua própria história.
As Lutas Não Terminam Nunca
“Nossa favela tem mais noite do que dia”, disse o grande poeta, griô e jongueiro Celso Marinho. A frase reflete uma dura realidade—nos dias atuais é tamanha a opressão que precisamos estarmos atentos e fortes o tempo todo.
O grupo Jongo da Serrinha sempre teve o sonho de ter um espaço físico dentro do território onde nasceu. Nossa matriarca Tia Maria do Jongo fez acontecer. Ela foi à sala do então prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, e fez o pedido, embora muitos digam que tenha sido na verdade uma ordem. Até hoje, a Casa mantém-se aberta para receber e acolher a todos com bastante luta e suor e nenhuma ajuda governamental. Somos apoiados pelas redes de amigos que nos mantém de pé e por uma vaquinha online, que fortalece financeiramente a manutenção da Casa. São muitos braços e pernas que juntos realizam uma grande caminhada.
O Projeto Herdeiros, por sua vez, é mantido totalmente por trabalho voluntário. A fim de fortalecer os ensinamentos de nossos ancestrais, que nos foram passados de forma oral, e atrair os mais novos para essas tradições, nós oferecemos aulas de ritmos populares brasileiros, fortalecendo sua autoestima e lhes dando novas perspectivas de um futuro melhor. Projetos como esse e como os outros que ocorrem na Casa são de fundamental importância para o fortalecimento da cultura brasileira e seu entendimento histórico-social, como também para a capacitação profissional dos jovens.
Enquanto os moradores lutam para manter viva a memória do jongo e do samba na Serrinha, os governantes fazem vista grossa a problemas sérios, que vão desde o saneamento básico até o direito de ir e vir. Moradores da comunidade sempre sofreram com a precariedade dos serviços públicos oferecidos e com o desemprego e o descaso na manutenção das escolas. A precariedade do serviço sanitário e abastecimento da água tornam ainda mais complicada a sobrevivência na comunidade.
Chegada do Coronavírus e Pedido de Ajuda
Com a falta de oportunidades e as restrições de acesso às que existem, os moradores da Serrinha embarcaram em grande número no trabalho informal: ajudando em obras, catando latinhas, reciclando materiais, vendendo comida para fora, entre outros. Viravam-se como dava, mas ainda assim faltava. A chegada do coronavírus agravou ainda mais a situação. Se antes sobrava pouco, agora não sobra nada. Multiplicaram-se os trabalhadores informais com o aumento do desemprego e assim aumentou a competição pelas parcas oportunidades. O atual “desgoverno” não tem empatia e provoca desespero na população.
Diante desse cenário, o verdadeiro quilombo da Serrinha permanece unido, tentando ajudar uns aos outros e pedindo forças aos orixás, com fé e certeza de que essa tempestade não nos derrubará. E assim como foi para nossos ancestrais, o ponto do jongo se torna um ato de resistência…
…e parem de nos matar!
Asé.
Para Ajudar
A Serrinha, assim como outras comunidades, está ilhada e precisando de apoio. A associação dos moradores está recebendo doações de comida, água e recursos financeiros. Entre em contato com a associação pelo e-mail: mestreflavinho@gmail.com.
A campanha Avante Serrinha, puxada pela Companhia de Aruanda, um coletivo artístico e cultural da Serrinha e arredores, está arrecadando alimentos e material de limpeza e de higiene pessoal para moradores do Morro da Serrinha. Doe aqui!