Essa matéria oriunda do Vidigal, é a quarta de uma série sobre o impacto da pandemia do coronavírus no dia a dia das favelas, em parceria com o Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego.
Estamos por conta própria! É assim que a gente que mora na favela se sente frente a mais esse desafio de sobrevivência. Quem mora em favela no Rio de Janeiro já enfrenta cotidianamente o medo de perder a própria vida ou a de algum familiar, por causa das operações policiais. Agora, com essa nova realidade da pandemia, nos sentimos mais desassistidos do que nunca.
Do dia para noite perdemos a rua, de onde grande parte da população informal e moradora de favela tira o seu sustento. Nós fomos obrigados a nos isolar em nossas casas e aguardar quais medidas de segurança social os governantes irão nos destinar. Mas o que podemos esperar dos mesmos governantes que até ontem brincavam de tiro ao alvo contra moradores de favelas, desmontavam o SUS e atentavam contra a CLT? É neles que devemos depositar nossas esperanças de receber um bote salva vidas?
O Dia a Dia no Vidigal
Moro no Vidigal, na Zona Sul, e desde dos primeiros dias da quarentena, tenho visto que muitos moradores não estão cumprindo o isolamento. É como se o perigo estivesse lá fora, no asfalto, aonde o Estado concentra seus esforços para isolar as pessoas socialmente. O comércio tem funcionado, pessoas se encontram nas ruas ou nas lajes para socializar e muitos que trabalham dentro da comunidade continuam a vida normalmente. Por outro lado, também tenho testemunhado lideranças se esforçando para conscientizar os moradores sobre a necessidade de cumprir a quarentena, os alarmes da Defesa Civil que tocam a todo momento lembrando às pessoas da importância do isolamento e os agentes da Clínica da Família levando informações sobre os cuidados de higiene. Nós estamos entre o Leblon e a Barra da Tijuca, os bairros com mais casos de Covid-19 e já há um caso confirmado aqui. Acho que isso está fazendo as pessoas se tocarem que o risco é sério e entenderem a necessidade da proteção.
Agora já são mais de vinte dias da indicação de isolamento e o estresse psicológico bate na cabeça de quem precisa sustentar sua família. Aqui no Vidigal, uma cena inédita que se repete, é ver os corredores do supermercado vazios com as prateleiras abastecidas, mas o povo já está sem dinheiro no bolso para comprar mantimentos. Enquanto isso, aguardamos angustiados o voucher de R$600 para auxiliar a população mais pobre que vive na informalidade. Um dia a mais sem comer é um dia de desespero para quem precisa alimentar os filhos. As pessoas sabem que, se não morrerem de coronavírus, morrerão de fome.
Solidariedade Comunitária e Esperança
Ao ver essa situação, diferentes setores da sociedade começaram a se mobilizar de forma independente para ajudar os mais vulneráveis, organizando vaquinhas ou recolhendo doações. É o caso da Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência, que organizou a campanha Doando Esperança, com uma vaquinha para arrecadar recursos e auxiliar mães e familiares de vítimas de violência policial, de pessoas privadas de liberdade e moradores de favelas. Trata-se, em geral, de famílias chefiadas por mulheres, que em muitos casos estão desempregadas, vivem de bicos ou são autônomas e estão impossibilitadas de trabalharem por conta da pandemia do coronavírus.
Iniciativas como essa precisam ganhar visibilidade, porque é um corre que salva a vida das pessoas. Doando Esperança já levou cestas básicas e kits de higiene para mais de 150 famílias em diferentes favelas da cidade. A campanha espera que mais pessoas se juntem a essa iniciativa porque há famílias na fila aguardando ajuda.
Quem sente na pele é quem sabe. Em sua grande maioria, quem está no front, da iniciativa da Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência, são familiares de vítimas da violência do Estado, mulheres negras, moradoras de favelas e bairros periféricos. Além de organizarem campanhas para doação de cestas básicas para quem mais precisa, essas mulheres estão vinculadas às comunidades e são peças fundamentais para orientar as famílias sobre as recomendações de isolamento e higiene para conter a pandemia.
No dia 30 de março, uma cesta da campanha Doando Esperança chegou na minha casa e foi recebida com alento. Nesses tempos tão sombrios, essa rede de solidariedade comunitária não nos alimenta apenas materialmente, mas também nos alimenta espiritualmente. É reconfortante saber que, mesmo isolados, não estamos sozinhos. Desde do início da quarentena muitas iniciativas estão surgindo para arrecadar doações para famílias que precisam. Aqui no Vidigal um supermercado está pedindo ajuda aos clientes para doar alimentos às famílias mais necessitadas.
É em meio ao horror que vemos florescer demonstrações tão bonitas de amor ao próximo e respeito à vida. Eu acredito que o Brasil vai enfrentar o coronavírus, eu acredito na força dos moradores de favela. É o melhor que nós temos!
Clique para fazer uma doação para a campanha Doando Esperança que está distribuindo doações para inúmeras favelas do Rio.
Rachel Gepp, 36, é trabalhadora autônoma, mãe, comunicadora, e moradora do Vidigal. Rachel é defensora de direitos humanos e militante contra violência do Estado nos territórios de favela, no Rio de Janeiro. Ela usa a fotografia e a comunicação como ferramentas para divulgar uma narrativa pela ótica de quem vivencia o que acontece dentro do território.