Essa é uma matéria de opinião, sobre os dez anos da “pacificação” do Complexo do Alemão, por um morador local.
No último sábado, dia 28 de novembro de 2020, a “pacificação” do Complexo do Alemão completou dez anos e uma inquietante pergunta nos perturba: O que mudou para a vida dos moradores?
Ao longo desse tempo um misto de incertezas e dúvidas pairou sobre nossas cabeças, nos levando a imaginar como seria ao chegar nesta data. O dia que tudo aconteceu ainda está bem fixo em nossas memórias, aquele dia fatídico, sem sabermos o que realmente tinha sido planejado. Nada foi passado aos maiores interessados naquilo tudo, nós os moradores.
A única coisa que a nós foi reservado foi o “direito” de ficar em casa em meio ao fogo cruzado junto com o barulho de tropas invadindo tudo por todos os lados da favela. Helicópteros no céu, tanques de guerra subindo o morro, marines e snipers e todas as demais forças de segurança presente. Para quem estava aqui como eu, é como se estivéssemos dentro daquela imagem televisiva da invasão do Iraque na caçada a Saddam Hussein. O impacto foi tão forte que até hoje há reflexos psicológicos da invasão em muitos aqui. Para nós a pacificação não foi mera informação de jornal.
Não quero muito me deter ao dia da invasão em si, o que quero é falar desses dez anos que já se passaram. Sobre esses dez anos sim! Tenho muitas coisas para falar.
No afã de impressionar, a grande e poderosa mídia que transmitiu ao vivo todos os passos das forças de segurança naquele dia, também alardeou os diversos serviços públicos e privados que vieram juntos: COMLURB, CEDAE, Light, antenas de TV, empresas de telefonia, atendimentos jurídicos, emissão de documentos, cadastramento de emprego, entre outras coisas mais… Pois bem, isso foi só lá no início, há anos, tudo se foi…
Lembram de Serra Pelada ou mesmo a promessa do Eldorado? Foi assim aqui. Uma invasão de ONGs das mais diversas. Pessoas de várias partes da cidade vieram com as mais “lindas intenções” ajudar os “miseráveis da favela”. Centenas de pseudos pesquisadores faziam filas para estudar o comportamento dos favelados. Turistas vinham aos montes! Subindo os morros e querendo entender como é aqui, em um safari suspenso desenfreado a procura de saciar as mais ávidas curiosidades intrínsecas do ser humano: como eles conseguem viver aqui assim?
Os membros dos governos em reuniões constantes faziam inúmeras promessas de melhoria, colhendo assinaturas e mais assinaturas em encontros para validar os seus planos de arrecadação de verbas para ajudar “os pobres miseráveis da favela”. Às vezes, eram de cinco a seis reuniões por dia com o intuito de juntar as ditas “lideranças” locais, os articuladores de território, os mecenas, os investidores…. e nessas reuniões, o destino das verbas eram “designadas” para serem aplicadas no além, menos aqui.
Foi um período exaustivo e de muitas expectativas, pois se colocava o doce na mesa da reunião para depois ser levado embora… não era distribuído, se é que me entendem. Muitos foram os que passaram por aqui…. Muitos foram cooptados pelos que passaram por aqui, fazendo-se de aliados do opressor, fingindo-se de amigos dos moradores, mas, na verdade, não gostavam de nós.
Por um período de mais de dois anos houve paz. Muitos “investidores” resolveram colocar alguns trocados aqui em troca de favores. Foi um período de tranquilidade sim aqui. Não havia tiroteios e perseguições aos moradores. Havia espaços para cultura local e o lazer de todos nós. Foi um período bom. A favela acreditava que haveria investimentos em áreas de saúde, saneamento básico, educação…
Nesse período, todos chegaram a pensar que esse processo seria bom para os moradores. Fui testemunha! Vi vários comerciantes locais procurando se formalizar, indo atrás de mudanças estruturais em seus comércios, pois existia uma promessa vindoura de melhorias e muitos iriam se beneficiar disso Mas foi mero engodo, fomos enganados.
Passados os dois anos iniciais, a coisa foi ficando séria. Nada do que se havia apresentado como transformação local foi feito, com exceção de algumas obras eleitoreiras para o benefício do pleito municipal daquele período. Foi então que começamos a ver um declínio de tudo. Tudo estava descendo ladeira abaixo.
Começamos a ver que os órgãos que estavam por trás da pacificação, só chegava aqui cada vez mais com somas maiores de forças militares. As reuniões que eram pautadas para soluções de problemas foram extintas e o dialogo acabou. Ao mesmo tempo que chegavam mais forças militares, mais armas, e mais munições, mais verbas eram destinas à construção de bases e bunkers de guerra no meio de nossas casas. E foi aí que começaram a voltar os tiroteios, de forma ainda que tímida, mas começaram a acontecer…
A grande quantidade de homens da lei aqui era assustadora. Acredito que eles sempre olharam para a favela e viam não vidas, mas cifras e mais cifras, pois os olhos deles brilhavam… Foi então que se acirrou cada vez mais os intensos tiroteios, causando a morte de vários moradores, que por sua vez não tinham como se defender, e sempre ficavam no meio do fogo cruzado. Foram muitos que nunca saíram das nossas mentes. Caio de Moraes, seu Antônio França, Dona Dalva, Eduardo de Jesus, Dona Beth…. são alguns deles.
A cada dia mais se intensificaram os conflitos. A percepção era de uma disputa de território onde um lado atacava e outro se defendia e vice-versa e, no meio disso tudo, nós, os moradores. Mas o pior de tudo foi ver o governo—o grande responsável por tudo isso—lá do Palácio da Guanabara, inerte e apático a tudo, somente assistindo e contabilizando as mortes e as funestas notícias televisivas.
Ficou muito claro para todos nós que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) foram criadas com o intuito de dar proteção e garantias aos grandes eventos que o Rio estava recebendo. Foi justamente no período da Copa do Mundo que houve um tempo de trégua. Cessaram os tiros! Foi um mês em que vivemos uma plena paz enganadora, pois um dia depois do término da Copa, a guerra voltou com força total e se arrasta até os dias atuais.
Em seguida, uma forte crise financeira abateu o país e o governo federal e estadual não estavam mais dispondo de grandes volumes de verbas. Então, passamos (e estamos ainda) assistindo a uma derrocada das UPPs aqui: carros sucateados, policiais cada dia mais estressados e sem estruturação física. Tudo demonstra que o fim está próximo. Logo no início, tinha uma empresa que cuidava da manutenção das várias viaturas novas e bem equipadas. Agora, o que vejo aqui é o retrato de antes da pacificação. Vejo policiais trocando pneus, empurrando viaturas, e outras coisas mais… A impressão é que a torneira está apenas gotejando e vai secar.
O panorama atual é de um fracasso total, um descaso absoluto, em todos os aspectos. O símbolo máximo da pacificação, que é o teleférico, encontra-se em total abandono. A promessa de ser um transporte ligando a favela a outros meios de transportes modal da cidade foi esquecida. Os investidores se foram, as ONGs milagrosas gastaram todas as verbas, e nada ficou como legado delas. A esperança áurea agora se encontra turva e o os órgãos governamentais deixaram aqui apenas a força policial armada sem nada mais: todo o restante se foi.
Não temos mais esperança que venha um dia o que foi prometido: mais espaços públicos dignos para lazer, escolas dentro da favela, espaços culturais e fomentação de atores locais e potencialização dos que aqui moram.
Estamos diante de uma grande pandemia mundial mergulhados no caos da corrupção, com políticos influentes presos… Uma maré de falta de esperança nos abate, demonstrando que a luz se apagou no fim do túnel. O mundo, por um tempo, quis ver a favela do alto, por telas de cinemas e novelas, mas agora nos colocaram novamente na bolha.
Com o Estado falido, mergulhado nas incertezas e perante a essas crises, não temos nada a comemorar nesses dez anos que se passaram. Dói a alma ver e conviver com tudo que estamos vendo aqui no Complexo do Alemão.
Mas, a favela sempre sobreviveu sem pacificação. Há anos vivíamos aqui sem essa nomenclatura e vamos continuar a viver sem ela. Esse modelo falhou. É hora de rever tudo! Está na hora de dizer que erraram e não só: peçam-nos desculpas e se vão.
Fotos por Bruno Itan
Cleber Araújo é morador do Complexo do Alemão e comunicador comunitário.