Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria do RioOnWatch com o Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da UFF, para produzir matérias que serão utilizadas como recursos pedagógicos em escolas públicas de Niterói.
O mundo virtual, em especial as redes sociais, tem aproximado distâncias, e tem criado facilidades e conexões que há pouco mais de uma década não seriam possíveis. Na pandemia da Covid-19—com a necessidade do isolamento social—o trabalho remoto, o home office, reuniões e encontros virtuais foram essenciais como alternativa de manutenção da vida. Não fossem as lives (embora um tanto saturadas) talvez morreríamos de tédio.
Quem sabe, por meio dessa vida virtual algumas injustiças da vida possam ser corrigidas e até não mais acontecer. À exemplo da prisão injusta do jovem Luiz Justino, morador da Grota, uma comunidade de Niterói, que foi considerado o perfil suspeito padrão da polícia e acabou indo parar em uma unidade prisional. Graças a enorme mobilização virtual e presencial e a repercussão na mídia, a arbitrariedade da prisão foi revertida e Luiz foi solto. É importante lembrar que Luiz é um jovem negro, violoncelista da Orquestra da Grota, o que ajudou muito para a mobilização.
O caso dele, que teve sua foto arquivada num banco de dados da Polícia Civil coletada a partir de suas redes sociais, suscitou questionamentos sobre como e porque a polícia mantém um álbum de fotos de jovens negros para integrar como suspeitos. E mais, por que esses “suspeitos” são, na maioria dos casos, todos negros?
A partir deste caso outros casos com as mesmas características—jovem negro andando pelas ruas de Niterói, é abordado e, tendo sua foto já no banco de dados da polícia, muitas vezes coletada a partir das redes sociais, tem prisão arbitrariamente decretada—começaram a vir a tona. Vale lembrar que Niterói é uma das cidades que tem a maior população branca do país, de acordo com pesquisa do jornal Nexo, sendo uma das mais segregadas racialmente do mundo. Segundo o Mapa da Desigualdade da Casa Fluminense, 88% das mortes efetuadas pela polícia em Niterói, em 2019, foram de pessoas negras.
Após o caso de Luiz Justino, aconteceu o de Danilo Félix, 25 anos, que foi abordado por policiais à paisana, e logo conduzido à 76ª Delegacia de Polícia, em Niterói, sendo acusado de assalto à mão armada e preso, devido a um reconhecimento por foto mostrada a vítima do assalto. A advogada que acompanha o caso afirma que as fotos de Danilo para reconhecimento usadas pela polícia foram retirados do perfil de Danilo no Facebook. O jovem passou 58 dias na cadeia. No dia de seu julgamento, 28 de setembro, uma grande mobilização com o movimento negro e de artistas de Niterói foi realizada em frente ao Fórum de Niterói. Por volta das 18h saiu a notícia da soltura de Danilo e a comoção foi geral.
Mas os casos não tiveram fim. Outro caso semelhante é o do jovem Carlos Henrique de Santana Moreira, preso enquanto trabalhava em um ponto de mototáxi, em Niterói, em uma abordagem policial que o identificou por um roubo em 2017, no qual foi reconhecido por foto. Motivados pelo resultado positivo, do ato anterior pela liberdade de Danilo, familiares de três jovens com casos com as mesmas características—sendo eles Danilo Félix, Carlos Henrique e Jefferson Ribeiro—juntamente com o movimento negro, realizaram um ato no dia 15 de outubro no Fórum de Alcântara, no bairro de Colubandê, em São Gonçalo, na ocasião do julgamento de Carlos Henrique. Mas infelizmente, a suposta vítima não apareceu, o que poderia garantir a soltura do jovem. Contudo, o juiz do caso remarcou um novo julgamento para 3 de dezembro. Familiares e movimento sociais negros remarcaram o ato para o mesmo dia.
Logo em seguida, no dia 17 de novembro, no Fórum de Niterói, aconteceu outro ato devido a mais um caso da mesma natureza. Dessa vez, trata-se do jovem Jefferson Ribeiro, 21. Jefferson saiu para trabalhar, no dia 01 de setembro, quando foi abordado por agentes da Niterói Presente por volta das 18h, em Charitas. Os policiais afirmaram que haviam três mandados de prisão por roubo a mão armada abertos contra ele, e Jefferson foi preso sem provas.
O ato do dia 17 de novembro—que foi organizado pela mãe e as irmãs de Jefferson, movimentos sociais e negros—começou no mesmo horário do julgamento, às 15h. Assim como o julgamento de Danilo Félix, esperava-se que a sentença fosse sair às 18h. Contudo, por volta das 15:30 o advogado dá a notícia para a família que “ele foi solto, mas que a juíza pede para que o ato seja dispersado”. Num misto de alegria e revolta a família agradece a presença dos manifestantes e pede para que se encerre a manifestação. Emocionada, a mãe de Jefferson, dona Adriana Ribeiro do Nascimento, falou um pouco de como foi e tem sido esse processo:
“A vida fica dura. Abala toda a família. Principalmente a da mãe que não deseja isso para seus filhos. É muito difícil, é muito doloroso. Agradeço muito a colaboração, e todos que estão sempre aqui dando apoio, ajudando. É muito importante saber que têm pessoas que gostam da gente. Por ser negro é difícil alguém abraçar, acreditar, apoiar. Eu tenho que agradecer a todos que aqui estão. Temos de continuar fazendo essa mobilização e as mães têm que acreditar nos seus filhos e lutar, não se calar! Não podem sozinhas, gritem. Peçam ajuda a alguém, como fez a minha filha.”
Casos do Luiz, do Danilo, do Jefferson foram revertidos, muito provavelmente por conta da mobilização popular nas redes e presencialmente. Há ainda outros, já mapeados pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Niterói, como o do Carlos Henrique, o dos irmãos Everton e Jefferson de Azevedo Barcellos, do Laudei Oliveira da Silva, do Nathan Nunes Lopes Batista, do Carlos Eduardo de Oliveira, do Rafael Santos Maciel e de tantos outros que ainda não vieram à tona; e de tantos outros que ainda não aconteceram, mas que suas fotos de seus perfis no Facebook, Instagram e afins já estão no álbum virtual da polícia.
Para denunciar esses abusos, cometidos contra jovens negros pela polícia em Niterói, o vereador Renatinho do PSOL, Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Niterói, junto com um grupo de entidades dos movimentos sociais, enviou a Organização das Nações Unidas (ONU), uma carta denunciado essas violações de direitos humanos e o racismo.
Além da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Niterói, a carta é assinada pela Justiça Global, Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH, e Deputada Estadual Renata Souza, Presidenta da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), além do Deputado Estadual Flavio Alves Serafini, também membro da Comissão de Direitos Humanos da Alerj. Veja o documento enviado a ONU, aqui.
Em 30 de novembro, às 18h, houve uma Audiência Pública da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Niterói sobre o Encarceramento Arbitrário da Juventude Negra em Niterói. A audiência foi transmitida ao vivo pela TV Câmara.
A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Niterói mapeou nove casos, ocorridos nos últimos meses em Niterói, de jovens negros inocentes privados de sua liberdade após terem passado por um falho processo de “reconhecimento” fotográfico nas delegacias da cidade, por meio de fotos retiradas de suas redes sociais e ilegalmente incluídas em álbuns de fotografias nas delegacias da cidade.
Em grande parte dos casos há um padrão de conduta: jovens, todos negros, são abordados de modo arbitrário por agentes policiais nas ruas da cidade de Niterói. A audiência foi conduzida pelo Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara o Vereador Renatinho do PSOL, que já denunciou essa política racista de Estado à ONU. Vítimas de familiares dos abusos policiais e representantes de instituições em defesa dos direitos humanos participaram da audiência.
Hoje dia 03 de dezembro, às 15:30, haverá um ato pela liberdade de Carlos Henrique no Fórum de Alcântara.
Assista ao Vídeo da “Audiência Pública, Encarceramento Arbitrário da Juventude Negra em Niterói”, Aqui:
Alessandro Conceição é morador do Morro da União, jornalista e Mestre em Relações Étnico-Raciais. Artivista negro, Alessandro é curinga do Centro de Teatro do Oprimido. Sua caminhada com o Teatro do Oprimido vem de 2001 com o GTO Pirei na Cenna, projetos em Saúde Mental, Pontos de Cultura e de formação de grupos populares, além de experiências na Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Estados Unidos, Guatemala, Nicarágua, Espanha, Moçambique, Zâmbia, Senegal e Uruguai. Na luta antirracista é artista-ativista do grupo Cor do Brasil e do coletivo Siyanda Cinema Experimental do Negro. Nas artes da vida Alessandro já foi camelô, jovem aprendiz de banco, atendente em loja de chocolate e educador social.