Esta matéria faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.
A ideia do Movimento Negro de fundar cursos pré-vestibulares para grupos socialmente desfavorecidos remonta, pelo menos, à década de 1970. Na década de 1980, foram criados mais alguns cursos, mas foi só na década seguinte que ocorreu uma difusão massiva dessa iniciativa. A expressão mais considerável desse processo foi o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC), devido ao número de núcleos que criou e por seu caráter seminal. De acordo com o professor Renato Emerson (IPPUR/UFRJ), o PVNC constituiu uma rede que chegou a articular mais de 70 cursos pela Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Os PVNCs foram criados e estruturados através de laços de pertencimento e da participação popular. Em ampla medida, os núcleos são motivados pela solidariedade e pelo voluntariado, criando espaços de canalização das potências dos sujeitos. Segundo Renato, tais espaços deram lugar a novas formas de confrontar a construção desigual e hierárquica do tecido social.
Quando inaugurado, em 1993, o PVNC teve como um dos seus principais mentores as figuras de Frei David Raimundo dos Santos e Alexandre do Nascimento. O primeiro núcleo foi criado na cidade de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Logo de início, a rede de pré-vestibulares no Rio de Janeiro chegou a articular mais de 70 cursos. Em 1996, os pesquisadores da UFRJ, Luiz Carlos Sant’ana e Marcia Contins, publicaram um artigo afirmando que essa iniciativa foi consolidada como a primeira experiência efetiva de ação afirmativa. Em pouco tempo, os cursos já se espalharam por outras unidades da federação e a medida já atingia de imediato um número considerável de negros.
Frei David é frade franciscano e há 40 anos luta pelos direitos do povo negro. Atualmente, canaliza a sua luta como diretor nacional da Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro). “A primeira experiência, na verdade, foi a do Pré-Vestibular para Negros—ainda não tinha o ‘C’ da sigla de carentes. Contudo, na cidade de Salvador já havia uma outra experiência, o Pré-vestibular Steve Biko, no entanto, o alto custo de sua mensalidade, de um salário mínimo, não alcançava a maior parte da população negra do país. O Pré-Vestibular para Negros (PVN) foi a primeira experiência ampla, pois tinha uma mensalidade com valor mais acessível (2% do salário mínimo) e esse montante era usado na compra de materiais de trabalho e de higiene básica para serem usados em sala de aula e nos banheiros do curso”.
Frei David relata que o PVNC é fruto de um encontro de jovens da Igreja Católica, onde ele foi o responsável por assessorar uma reunião com aproximadamente 100 pessoas, em sua maioria negras. Neste encontro, Frei David perguntou quantos iriam fazer faculdade e tomou um susto ao perceber que só dois iriam fazer faculdade. A partir daí, surgiu a intuição de que deveriam ser organizados pré-vestibulares que dessem ao povo negro ferramentas para lutar por um mundo melhor. Inicialmente, o projeto teve o nome de Pré-Vestibular para Negros (PVN), já tendo no primeiro ano resultados com a aprovação de alguns jovens na PUC-Rio.
“O PVN foi formatado por uma pedagogia e uma metodologia leve e dinâmica, e por isso fácil de replicar. Quando chegou a mais ou menos 20 núcleos começaram as reuniões mensais, as chamadas assembleias mensais. Ali então, Alexandre Nascimento, um professor negro, e outros professores brancos fizeram um complô exigindo tirar o nome ‘negro’ do pré-vestibular, eles tinham uma visão muito frágil do que era ser negro no Brasil. Eles queriam que fosse pré-vestibular para carentes, coisa assim, mas jamais para negros. E eu defendi com unhas e dentes, nessa assembleia, que deveria ser pré-vestibular para negros e dava todos os argumentos de que era uma estratégia para balançar, provocar a realidade da sociedade racista brasileira. Depois de muitos vai e vens, eu apresentei um alternativa com a inserção da palavra ‘carente’ junto com a palavra ‘negro’. O Alexandre queria colocar a palavra ‘social’ e excluir de vez a palavra ‘negro’. Depois de muito debate e votação, ganhou a ideia de Pré-Vestibular para Negros e Carentes”, afirmou o Frei David.
A partir dos núcleos de pré-vestibular, o Movimento Negro não só se institucionalizou, mas inaugurou uma forma embrionária de agir que comporta envolvimentos múltiplos, tendo como legado a materialização do debate antirracista nos territórios de favela. Este objetivo foi alcançado, sobretudo, através da disciplina de Cultura e Cidadania. Ofertada em caráter seminal, a disciplina envolvia diversos professores com especialidades temáticas diferentes e era ministrada aos alunos junto a disciplinas como português, matemática e outras. Ela surgiu como consequência das discussões de militantes que tinham como objetivo difundir o debate antirracista. Portanto, o intuito destes cursos de pré-vestibular não era apenas preparar os alunos para o vestibular—o equivalente ao ENEM hoje em dia—mas para uma vida de luta pela emancipação e pela promoção social e política de negros e carentes.
Em geral, os cursos voltados para a educação popular procuram fornecer, em primeira instância, processos de socialização, onde o estudante pode desenvolver e exercer, em seu território, seus direitos civis, políticos e sociais, ao invés de somente priorizar o resultado no vestibular, que é geralmente o foco dos cursos comerciais. Seu método de avaliação de alunos é qualitativo, foca na formação cidadã e não busca classificar hierarquicamente os alunos como vencedores e perdedores. Há o fortalecimento de uma consciência crítica que valoriza uma cultura de participação em que mesmo aqueles que negam a política ou o debate racial passam a travar um diálogo com estas dimensões.
Portanto, o efeito que o PVNC trouxe, logo de cara, foi a adesão de uma quantidade razoável de indivíduos que sempre experimentaram a assimetria das relações raciais e que, pela primeira vez, foram conduzidos a discuti-la no seu cotidiano, um ideal que até pouco tempo era limitado a círculos acadêmicos e de militância dos movimentos negros.
O PVNC foi criado e organizado por Frei David, Alexandre do Nascimento, Antonio Dourado e Luciano Dias. No entanto, ao romper com as demais lideranças, Frei David continuou esse trabalho fundando a Educafro, em 1997. Segundo o frei, a ruptura ocorreu por dois motivos. O primeiro foi o conflito em torno do pedido de bolsas em universidades particulares. Enquanto os demais fundadores defendiam que os estudantes do PVNC somente pudessem concorrer às universidades públicas, o frade franciscano defendia que fossem solicitadas bolsas em universidades particulares, sobretudo, na PUC-Rio por acreditar que a alta qualidade desta universidade não deveria ser limitada aos brancos e ricos, mas, deveria ser compartilhada com o povo negro e pobre. O segundo e principal motivo de embate, ainda segundo o frei, se deu em torno dos mandados de segurança pela isenção do pagamento da taxa de inscrição nos vestibulares. Para o frade franciscano, as universidades deveriam isentar negros e pobres de pagar a taxa de inscrição nos vestibulares, enquanto os outros organizadores pensaram que o pedido soaria como uma crítica às universidades públicas.
Ao perder a disputa dentro do PVNC sobre o tema dos processos de isenção da taxa do vestibular para negros e carentes, Frei David disse em assembleia que “enquanto membro do PVNC iria respeitar a decisão, mas além de ser um frei compromissado com essa luta, eu também sou um cidadão e como cidadão vou abrir um mandado de segurança coletivo, em meu nome, e quem quiser se beneficiar da vitória pode vir. Com isso consegui um advogado muito bom, muito guerreiro, o Doutor Cleto, e com o apoio dele abrimos os primeiros mandados de segurança contra as universidades públicas e a vitória foi fantástica”. A partir disso, “vários daqueles jovens que votaram contra, correram para a Educafro e via Educafro eles conseguiam a isenção da taxa do vestibular nas universidades públicas, e assim nasceu nos quatro cantos do Brasil a luta pela isenção da taxa dos vestibulares que hoje é uma política pública. Pouca gente sabe disso: foi uma luta ferrenha e corajosa, que serve para entendermos que a causa e a luta deve ser repensada e trabalhada de uma forma mais holística, mais plena”.
Após a ruptura, o PVNC seguiu com seus núcleos na região metropolitana e no Rio de Janeiro, enquanto os núcleos de pré-vestibulares da Educafro têm abrangência nacional. A organização ainda conta com cinco sedes regionais: Rio de Janeiro, Minas Gerais, Brasília, Baixada Santista, e Bragantina. E sua sede nacional está na cidade de São Paulo.
O engenheiro de produção Samuel Emílio relatou ter conhecido o Frei David em uma palestra ministrada pelo frei em um curso sobre formação de lideranças. Lá, percebeu que o trabalho da Educafro estava transformando vidas pelo Brasil. Ao ser convidado pelo frei a ser voluntário, desde 2016 contribui com a entidade de várias maneiras. Atualmente, como membro da coordenação geral da Educafro, Samuel aponta que “a Educafro ainda é uma das poucas organizações que conseguem entrar em territórios periféricos e ter uma discussão profunda. Muitas vezes na sociedade a gente tem uma ilusão de que toda periferia é absolutamente conscientizada em relação à raça, classe e gênero, mas o que a gente observa é que muitas pessoas ainda precisam de discernimento em relação a esses temas e ainda precisam entrar em contato com referências que podem ajudá-las a desenvolver melhores visões de mundo, que sejam menos preconceituosas. Muitas vezes a Educafro proporciona o primeiro contato dessas pessoas com essas questões e com as referências nestes assuntos, e a gente faz isso com muito amor, muita alegria porque a gente entende que as pessoas passaram, especialmente na periferia, pela ideologia do embranquecimento e acabaram por consumir conteúdos que as impediam de se conectar com as suas raízes”.
A questão racial é a principal bandeira fundadora e de luta que dá visibilidade social não somente ao PVNC, mas aos pré-vestibulares populares de um modo geral. Os pré-vestibulares são, portanto, instrumentos de capitalização social da luta antirracista, fundamentais para legitimar a construção de políticas de ações afirmativas, em específico, e antirracista, em geral.
EducafroTech: Uma Força Negra no Mundo da Tecnologia
Atualmente, iniciativas como o PVNC e a Educafro voltadas à educação popular ficaram mais conhecidas como Pré-Vestibular Comunitário (PVC) ou Pré-Vestibular Social (PVS). Além da nomenclatura, outras reconfigurações podem ser notadas. Contudo, os núcleos de pré-vestibular da Educafro, por exemplo, continuam tomando como base fundadora a ideia de inclusão social e o debate sobre raça e racismo.
Além do já estabelecido debate sobre direitos humanos, cidadania e antirracismo, a Educafro notou que o desenvolvimento de novas tecnologias continuou a reproduzir antigas e persistentes desigualdades sociais. Com o objetivo de combater esse desequilíbrio social, em 2018, a Educafro iniciou o projeto EducafroTech. Este programa dá oportunidade aos jovens negros e periféricos de acessar essas novas linguagens e ferramentas de informática, desenvolvendo profissionais da área tecnológica de forma antirracista, para uma atuação profissional antirracista no mercado da tecnologia.
No projeto supracitado, a entidade oferece cursos em Tecnologia da Informação (TI), com o intuito de que seus associados possam acessar o mercado de trabalho da área. Essa é uma proposta de formação em TI voltada para a comunidade negra. O seu primeiro resultado foi a construção de uma turma de TI com 32 pessoas, sendo 29 negras e três brancas. O grupo respeitou o princípio da diversidade, tendo levado em conta paridade de gênero e a presença de lésbicas, gays e transsexuais.
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A EducafroTech está disponível para jovens e adultos das cinco regiões do Brasil. Lá os alunos recebem conteúdos ministrados em função das necessidades do mercado de trabalho. Recebem também aulas de cidadania e de direito constitucional, fazendo a diferença nas áreas onde atuam. Ao final do curso, a Educafro conecta os alunos com empresas parceiras que buscam profissionais da área de TI com formação de altíssima qualidade, como é o perfil dos alunos da Educafro.
Outra singularidade emergiu, sobretudo na conjuntura pandêmica: os pré-vestibulares online. A Educafro assumiu uma parceria com uma plataforma de cursinho online especializada em preparar alunos para o Enem e outros concursos. Desta forma, todos os associados têm acesso gratuito ao aplicativo.
Leonardo Marcilino, aluno do EducafroTech, relata que, “durante o início da pandemia, estava cursando um curso pré-vestibular à distância, no formato EaD. No entanto, não me adaptei. Foi aí que meu pai me mostrou um vídeo do Lázaro Ramos falando sobre a Educafrotech. Eu sempre gostei de tecnologia e sempre quis me aprofundar, mas todo curso que eu procurava tinha que pagar alguma coisa e a Educafro foi o único curso que me ofereceu tudo inteiramente gratuito. Foi muito bom! É uma excelente experiência para quem quer aprender sobre tecnologia e ter uma noção básica ou mesmo para quem quiser se aprofundar e se tornar profissional”.
Podemos perceber que as estratégias da Educafrotech e dos pré-vestibulares online foram fundamentais, tendo em vista que aproximam o debate antirracista da realidade dos jovens negros, de favela e periféricos que tiveram seu direito à educação negado durante grande parte da pandemia. Contudo, com esses dois novos projetos, impôs-se uma nova configuração à entidade, porque tanto o pré-vestibular online, quanto a EducafroTech, podem ser acessados a partir de qualquer um que tenha acesso a um celular e à internet, aumentando exponencialmente seu número de alunos formados através dessas metodologias educacionais e tecnológicas antirracistas.
Desta forma, a organização se adapta a uma nova linguagem e a um público ampliado. Eu, Felipe Bellido, como professor de Cidadania na Educafro desde 2018 e como membro da coordenação-geral da Educafro regional Rio de Janeiro desde 2019, percebo um movimento maior das associações de moradores de favela e de territórios periféricos atrás, justamente, do pré-vestibular online para os moradores, tendo em vista que muitas vezes a própria associação têm acesso à internet. Isso permitiu o contato plural e produtivo entre a Educafro e o seu público em diversos territórios, e ainda deu continuidade ao trabalho de oferecer oportunidades que visem a inserção destes indivíduos ao ensino superior e ao mercado de trabalho, sem perder de vista o compromisso com debates sociais de extrema relevância e com a prática profissional antirracista.
Sobre o autor: Felipe Bellido possui graduação em Ciência Política pela UNIRIO (2015), mestrado em Ciências Sociais pela UFRRJ (2018) e especialização em Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade pela Clacso (2020). É vice-coordenador voluntário da Educafro Rio, doutorando em Ciências Sociais na PUC Rio e participa do Grupo de Pesquisa Direitos, Reconhecimento e Desigualdade (GEDRED). Felipe pesquisa políticas públicas, desigualdade, ação afirmativa e movimentos sociais.
Sobre o artista: David Amen é cria do Complexo do Alemão, co-fundador e produtor de comunicação do Instituto Raízes em Movimento, jornalista, grafiteiro e ilustrador.
Esta matéria faz parte da série do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.