Em tempos de tristeza, ansiedade e incerteza, seis artistas diversos e multidisciplinares, oriundos de favelas do Complexo da Maré, têm sido um farol na escuridão. Em um projeto conhecido como Becos, esses jovens criativos mostraram o poder da arte para transformar realidades e suas capacidades em lidar com questões sérias e urgentes com lirismo e criatividade.
Becos é um audiodrama de quatro partes na forma de episódios de podcast divididos em quatro atos, disponíveis em todas as principais plataformas. Realizado em parceria com o People’s Palace Projects e a Redes de Desenvolvimento da Maré, Becos se encontra no cruzamento da ficção e realidade, poesia e prosa, pintando um quadro único da vida na Maré. Como ouvimos na introdução do podcast ao projeto: “[Becos] é uma peça sonora coletiva, com histórias dos becos, de denúncia e resistência, mas que também traz cura nos colos de mães, de avós, de madrastas e irmãs mais velhas que a cada conselho trazem os caminhos”. Em breve, Becos estará disponível também em inglês.
‘Dai a César, o Que é de César! O Que é de Xangô, Ele Mesmo Cobra!’
As seis vozes da história, interpretadas por MC Martina, Rodrigo Maré, Thais Ayomide, Matheus de Araújo, Thainá Iná e Jonathan Panta contam, cada uma, uma história de vida diferente, mas suas narrativas são entrelaçadas e é impossível separá-las. Juntos, eles personificam o poder do coletivo, tanto na resistência quanto na celebração. Arte em todo o seu poder. A mesma arte que os salva todos os dias, como afirmam em Becos: “O que me salva é minha arte! E hoje eu digo em voz alta, como uma profecia, como um ebó: hoje nenhum de nós vai morrer!”
Os quatro episódios, com duração combinada de 60 minutos, oferecem diálogos interseccionais sobre raça e racismo, ancestralidade, negritude, violência policial, coletividade e muito mais, tudo ambientado na Maré.
Como forma de discutir a pertinência social, cultural e política de Becos, todas as quintas-feiras desde 14 de janeiro, Pâmela Carvalho, da Redes da Maré, tem entrevistado as vozes do projeto em eventos transmitidos ao vivo na página do Instagram da Redes da Maré. No dia 4 de fevereiro, MC Martina veio discutir os temas Racialidade e Favela, tema que permeia todo o projeto.
Em um ambiente descontraído, mas extremamente educacional, as duas mulheres inspiradoras falaram por quase uma hora sobre suas experiências de vida, observações sociais, aspirações e frustrações. As mensagens mais poderosas surgiram da experiência compartilhada de serem mulheres negras de favelas no Rio de Janeiro.
“Nós nunca fomos considerados seres humanos, que dirá artista”, expressou MC Martina, cujo trabalho, segundo Pamela, busca “dar visibilidade às narrativas e à produção artística das mulheres negras das favelas em particular”.
Aos 22 anos, nascida e criada na Pedra do Sapo, no Complexo do Alemão (embora recentemente moradora da Maré), MC Martina é rapper, produtora cultural, poetisa de slam e criadora do Slam Laje, a primeira batalha de poesia no Complexo do Alemão. Ela explicou como sua introdução à poesia slam, e mais amplamente à expressão artística, deu-lhe uma plataforma que não lhe era oferecida anteriormente: “Tudo que eu falo [agora], eu sempre falei só que as pessoas nunca pararam para me escutar”.
Um tema crucial de discussão no evento foi a categorização da sociedade de negros e moradores de favelas, algo que só serve para perpetuar estereótipos racistas. “As pessoas não enxergam a nossa pluralidade… nós somos muito diversos… as pessoas acham que preto é tudo igual. Não é tudo igual não, mano”, disse MC Martina. Para reforçar, Pamela comentou sobre os dois estereótipos muito usados para mulheres negras: a mulata, cujo corpo é objetivado, ou a negra que está ali para servir aos outros, tipicamente acima do peso e de tonalidade mais escura.
“Se a sociedade não se comover pela tragédia, pela dor… eu tento comover pela arte.” — MC Martina
Sobre essa ideia de pluralidade, desta vez trazendo uma dinâmica geográfica, MC Martina comentou que sua experiência é a de um corpo negro, um corpo de mulher, no Rio de Janeiro, na região Sudeste do Brasil. Ela explicou que não poderia comentar como é ser negro no Nordeste ou no Sul. “São outras vivências”, acrescentou ela.
Para MC Martina, seu corpo se relaciona com uma série de movimentos diferentes: movimentos de mulheres, movimentos negros, movimentos de favela, movimentos LGBT. “Eu sou, portanto eu faço”, ela expressou, explicando como seu trabalho e seu corpo se relacionam com todos esses grupos. “Não é uma escolha de carreira, é a sua vida.”
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Elaborando sobre a questão dos corpos negros na sociedade, as duas mulheres falaram longamente sobre a normalização da violência contra negros, tornando-os meros números. “Eram 80, eram 11, eram números”, é uma frase de Becos que Pamela se baseou e que serviu como um rico ponto de partida para a parte seguinte do diálogo.
“Nosso corpo é muito banalizado. A morte do nosso povo é muito banalizada”, acrescentou MC Martina, aproveitando o exemplo de Ana Clara Machado, uma menina de 5 anos que foi baleada no dia 2 de fevereiro em Monan Pequeno, Pendotiba, em Niterói. Ela também citou os casos de Eduardo Jesus de Ferreira, Marcos Vinícius e Ágatha Félix.
Nesse sentido, num misto de louvor ao sagrado e grito de justiça, os poetas, em toda sua diversidade, cantam unidos em sua negritude: “Você já viu um navio negreiro dando ré? Eu conduzo um! Hoje ninguém vai voltar pra chibata! Hoje ninguém vai voltar pro banzo! Hoje ninguém vai voltar pra senzala! Hoje nenhum dos meus vai morrer! Todos os nossos vão viver!”
Outro tema central é a glamorização dos corpos negros. Pamela destacou que uma das lutas de ser artista negro no Brasil é a tendência do público à romantização, sem realmente considerar a realidade de ser negro no Brasil. “Nunca se perder de quem a gente é, porque hoje a gente pode estar no palco do Rock in Rio e amanhã a gente pode estar no [hospital] Getúlio Vargas”, ela destacou.
“As pessoas glamorizam tudo: glamorizam o racismo, glamorizam o nosso corpo, glamorizam uma realidade que não tem nada de romântico nisso… você ser acordada por tiro, perder pessoas da sua família… e basicamente resumir tudo que você faz à sobrevivência”, comentou MC Martina.
“Nenhum roteiro adaptado, de Netflix ou de novela, conseguiria descrever como é ser um corpo preto nessa década”, é uma frase impactante de um episódio de Becos, ou ato, como são chamados no projeto. Sobre a cisão entre as representações no cinema e na televisão e a experiência vivida, MC Martina lamentou que os atores negros de Malhação ou de outras novelas brasileiras são sempre escalados como policiais ou criminosos. “Isso é muito grave. É muito importante falar sobre isso, porque acaba com a mente das pessoas”, expressou ela.
Com os problemas de saúde mental afetando a vida de tantas pessoas, Becos percorre um longo caminho para tratar de questões relacionadas à saúde mental na Maré. Becos foi produzido em conjunto com o projeto internacional de pesquisa Construindo Pontes, que tem por objetivo investigar a saúde mental e o bem-estar dos moradores da Maré, demonstrando, como escreveu Thaís Cavalcante em uma matéria para a Maré de Notícias, que “a arte também é um instrumento de pesquisa”.
A arte é, de fato, uma ferramenta de pesquisa poderosa que está universalmente disponível para todos nós. Quando questionada por Pamela o que significa uma frase de Becos, “Poeta oco não faz eco”, para Martina, suas palavras foram profundas: “Todo mundo é um artista em potencial… só tem que despertar… às vezes você desperta vendo um jogo de futebol do Flamengo, às vezes você desperta vendo uma novela… às vezes você desperta vendo o palhaço no sinal fazendo malabarismo. Cada uma [destas coisas] desperta, só basta você se permitir”.
‘E Tem Como Se Acostumar? Não Há Vitória Quando a Vida Não É Justa!’
A certa altura, durante o Ato IV de Becos, uma chuva torrencial, típica dos verões do Rio de Janeiro, inunda a favela. Os vizinhos ajudam uns aos outros, mas um sentimento de impotência não pode deixar de surgir, e então eles gritam: “O que eu posso fazer? Nada! Nada! Nada! Nada!” Em meio à tempestade, essa cena apresenta ao ouvinte a experiência de muitos moradores das favelas cariocas que, apesar de morarem no Rio de Janeiro, cidade mundialmente conhecida por suas praias, nunca viram o mar.
Em uma Maré inundada, após fortes tempestades tropicais, uma criança chamada Martim vai atrás de sua bola sozinho, na água, e alguns garotos que sua mãe costuma dizer para ele manter distância, o resgata da chuva. Em conversa com as pessoas que o acolheram, Martim pergunta, enquanto a chuva torrencial cai à sua volta: “Qual o tamanho do mar?” Alguns já haviam ido à praia várias vezes, outros apenas uma, décadas antes, quando eram crianças. E, no entanto, todos compartilhavam as mesmas opiniões sobre a experiência multissensorial e avassaladora de testemunhar o infinito do mar: uma experiência que despertou ainda mais a curiosidade da criança que nunca teve a oportunidade de sentir aquelas coisas.
Permeando todo o podcast estão cenas que narram experiências cotidianas: vida familiar, religião, compreensão de si mesmo através do ambiente, reivindicações da ancestralidade, recriando o Complexo da Maré por meio da poesia—todas as coisas baseadas em experiências de vida. Em certos pontos, ao longo dos quatro podcasts, nomes de ruas e locais nas muitas favelas da Maré são inseridos nos poemas, fazendo com que a própria Maré pavimente o caminho para a poesia. É fascinante como a poesia e o espaço se entrelaçam; em certa medida, o território é (re)construído por meio da construção do poema.
Há também versos que retratam relatos muito poderosos e emocionantes da violência armada nas favelas. Ouvimos histórias de violência contra crianças, sobre os riscos que enfrentam nas favelas devido ao descaso do Estado. Há também o conto de Dona Drica, personagem presente em todo o podcast. Ela é mãe do poeta Emmanuel, professor de matemática, morador da favela, assassinado pela polícia. A personagem de Dona Drica vai de dona de casa e mãe a vítima de um crime de Estado; ela se torna um pilar de resiliência e resistência em sua localidade. A favela inteira chora sua perda, a abraça, para que mesmo em um momento impensável como este, ela não se sinta sozinha. No aniversário de Emmanuel, amigos da família dão uma festa em memória do falecido professor, lendo em uníssono uma das obras inéditas do poeta morto—uma cena do Ato IV, que é tão bela quanto fascinante e única. Este é um de muitos e, de fato, um dos exemplos mais claros da máxima filosófica exposta no Ato I: “Nenhum roteiro adaptado, de Netflix ou de novela, conseguiria descrever como é ser um corpo preto nessa década”.
Só uma obra feita por artistas negros e moradores de favelas seria capaz de criar uma imagem de tanto nuance, tão rica em emoções e sensações.
“Poetas ocos não têm eco. Espírito opaco. O que eu faço é consequência do que eu sou.” — MC Martina