Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre impactos climáticos e ação afirmativa nas favelas cariocas, e também faz parte do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.
Branquitude Epistêmica e Representatividade
“Infelizmente eu não tive contato com a literatura negra, nem com a produção negra das ciências sociais no currículo. Eu não pude me ver nem no quadro de professores e nem no currículo.” — Luciane de Oliveira Rocha
Falas como essa da professora Luciane de Oliveira Rocha, 42 anos, ecoam na cabeça de muitas pessoas, principalmente, das pessoas negras. Atualmente, professora no departamento de Estudos Interdisciplinares da Universidade Estadual de Kennesaw, nos Estados Unidos, Luciane se pergunta: “Onde estão as autoras e autores negros?” Essa inquietação que é primeiro vivenciada no espaço escolar e depois no acadêmico, torna-se um ato coletivo e político.
A ausência dessas referências negras também está presente nas faculdades de formação de professores, sendo reproduzido futuramente na sala de aula de quem se formou para formar pessoas. Logo, na educação os ditames da colonização são perpetuados através de um modelo eurocêntrico, sexista e classicista, que prioriza teóricos e literatos brancos e homens, seguidos das mulheres brancas, como nos lembra Luciane: “Clássicos são considerados os autores brancos. Eles têm super visibilidade nas áreas das ciências sociais. Produções clássicas como, por exemplo, as de Lélia Gonzalez, nunca me foram apresentadas durante quatro anos de curso de formação em ciências sociais. Uma antropóloga tão importante para entender a formação racial do Brasil.”
O arcabouço teórico e literário de autoria negra foi negligenciado. Essa também é a opinião da professora Valéria Lourenço, 39 anos, quando nos conta que, na escola, não sabia a cor do escritor Machado de Assis, enquanto lia e estudava seus trabalhos. A escola é negligente intelectualmente com pessoas negras e isso interfere nos programas e processos de ensino e aprendizagem.
“Estudei numa escola pública em Xerém, uma das melhores escolas estaduais da região, tive professores e professoras negros e negras, mas nunca ouvia falar, por exemplo, de Lima Barreto, de Conceição Evaristo, de uma Carolina Maria de Jesus, de Luiz Gama. Não me contaram que o Machado de Assis, que tínhamos que ler, era negro.” — Valéria Lourenço
A universidade é um espaço político por excelência. Todos que lá estão—professores, alunos e funcionários—exercem uma função política naquele espaço. Por essa razão se faz sempre importante questionar o que se pensa e o que se faz quando aplicamos um currículo escolar sem a contribuição de autoras e autores negras e negros. As educadoras Ana Helena Passos e Claudia Miranda nos dizem que nesse caminho da educação em direção à transformação é imprescindível estarmos atentos ao papel dos agentes de mudança, no grau de politização dos processos educacionais da escola e seu potencial transformativo para o aluno, sua família e para a sociedade como um todo.
Precisamos realizar um caminho não só de inserção das obras e de seus autores, mas também de formação mais plural de agentes formadores. É preciso analisar como estão recebendo e aplicando esse material nas salas de aula em que trabalham. É de suma importância criar práticas pedagógicas capazes de romper a reprodução da invisibilidade das literatas, literatos, teóricas e teóricos negras e negros.
Sucateamento Bibliográfico e a Cor do Poder no Currículo
Ricardo Pinheiro, 42 anos, professor de literatura, nos conta que sua caminhada escolar e de vida teria sido muito diferente se ele tivesse sido apresentado a autoras e autores negros. Isso teria feito a diferença para a sua autoestima, que foi enfraquecida—e embranquecida— ao longo de sua jornada na educação básica.
Entender a forma com a qual as universidades reproduzem discursos e mecanismos racistas, a partir do currículo, para formar futuros professores é fundamental para rever o espaço educacional. Transformar as bases e conteúdos destes currículos, certamente, diminuiria a evasão escolar. Como diz um provérbio africano “você só pode partir de onde você está”. Logo, trazer à tona o quanto a educação tem falhado em não rever as suas práticas é o primeiro passo para descobrir novos rumos.
O caminhar ainda é lento e cheio de atritos, mas a intenção é entender para transformar a constante invisibilidade e silenciamento da história africana e afro-brasileira nos espaços de formação de professores. O filósofo francês Michel Foucault, em seu livro A Ordem do Discurso, lembra que, em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada e organizada por um certo número de procedimentos de poder e controle. O discurso tem por função conjurar poderes e dar corpo aos perigos eleitos em tal sociedade. Discurso é dominar saberes, é poder.
Bem como o discurso, currículo é poder. Sendo assim, o conteúdo curricular até hoje serview a quem detém mais poder neste jogo de forças. Para estes, não convêm outros olhares a não ser aqueles que condizem com o status quo de dominação. Por isso, entendemos que a escola funciona como instituição de manutenção das restrições de saberes e reprodução dos processos disciplinares e punitivos.
É possível perceber hoje evidências de como as escolas de formação de professores contribuem para uma colonialidade contemporânea na estrutura do ensino. Reproduzem práticas de violência simbólica, de apagamento da história do povo negro e de silenciamento de suas vozes, que contam, narram e constroem outros olhares, outra história. É importante ressaltar que a epistemologia branca da universidade, que ignora ou nega a existência e/ou a importância de uma intelectualidade negra, reforça uma relação eugênica. A supremacia branca na forma de ver e pensar tenta obstruir acesso e estigmatiza tudo o que não é eurocentrado. Esse sucateamento bibliográfico durante o período de formação de docentes é prejudicial para esses futuros professores e para seus futuros alunos, pois promove o distanciamento de diversas possibilidades de transformação educacional, cultural e social.
Aline Cristina do Carmo, 37 anos, pós-doutora em educação e doutora em filosofia, professora do Colégio Pedro II, aponta que seu primeiro contato com autores negros foi durante o seu curso de mestrado, quando leu a obra Na Casa de Meu Pai, de Kwame Anthony Appiah. Afirmou também que, durante o ensino médio e a graduação, leu Lima Barreto, Machado de Assis e Santo Agostinho de Hipona—que hoje fica na Argélia, país no norte da África— mas que nunca houve uma indicação com relação à negritude ou à africanidade desses autores, mais uma jornada marcada pelo apagamento racial no currículo.
“Ler uma mulher negra, só fora da faculdade mesmo: eu li Angela Davis, Kimberlé Crenshaw, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, todos esses nomes como indicação dos meus espaços de militância. Nunca foi uma leitura obrigatória na universidade, que eu me lembre, por exemplo, em termos de graduação, mestrado ou doutorado, tanto na filosofia como no direito. Mas é possível que eu tenha lido autores negros, sem essa indicação nas aulas. Thula Pires, por exemplo, foi uma indicação do meu orientador de mestrado.” — Aline Cristina do Carmo
Além da falta curricular do negro, o antropólogo brasileiro-congolês e professor da UFRJ Kabengele Munanga afirma que alguns professores, por falta de preparo ou por preconceito, não sabem lidar com situações flagrantes de discriminação no espaço escolar. O que deveria ser um momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e mostrar a importância e a riqueza que ela traz à nossa cultura e à nossa identidade nacional, vira um momento de repressão, sem discussão e sem aprendizado coletivo. Um momento às vezes até de sutil anuência, reprodutora de práticas sociais racistas.
O que é recorrente desde a escola à universidade e da universidade de volta à escola é a história da escravidão sendo contada e recontada sob a óptica branca, sem considerar todas as outras histórias que poderiam ser contadas a respeito do continente africano, a importância das mulheres e homens africanos que construíram a história do Brasil, seus grandes feitos e personagens antes do sequestro e da escravidão. Ignora-se o legado cultural afro-brasileiro e como o movimento negro sempre foi parte fundamental para a luta contra a escravidão e o racismo no Brasil.
Embora existam muitos atravessamentos no decorrer da desconstrução desses espaços da branquitude, é preciso reconhecer que há educadores que tentam incansavelmente redesenhar as sequelas e tensões raciais nos espaços de formação educacional. Porém, nem a obrigatoriedade da Lei 10.639/2003 fez com que a maioria dos profissionais de educação cumprissem os direcionamentos básicos exigidos por ela.
O professor Ricardo Pinheiro nos conta ainda que somente no curso de pós-graduação teve, pela primeira vez, contato com as histórias, culturas e literaturas africanas e afro-brasileiras. O curso em que Ricardo estava inserido, assim como tantos outros, surgiu para dar conta das demandas da Lei 10.639/2003. Contudo, sabe-se que nem todas as universidades seguem a lei. Algumas seguem só em datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra ou da Abolição, de forma pontual e simbólica. E assim as dinâmicas da escravidão e do açoite perduram.
Literatura Negra Brasileira Como Pedagogia Política
Na literatura é um tanto estarrecedor perceber o rechaço especialmente contra as mulheres negras acadêmicas. Um exemplo recente foi quando a consagrada escritora mineira Conceição Evaristo perdeu a eleição a uma cadeira de imortal na Academia Brasileira de Letras, em 2018, apesar do clamor popular. O cineasta branco Cacá Diegues ganhou o pleito. Em entrevista, a literata—branca—e ex-presidenta da Academia Nélida Piñon disse que Conceição teria cometido um “erro de condução de campanha” por não seguir alguns trâmites burocráticos tradicionais da candidatura como, por exemplo, enviar telegramas, visitar todos os imortais para um café e presenteá-los com seus livros. A premiada autora negra não foi sequer reconhecida como candidata por alguns acadêmicos.
Enquanto Conceição Evaristo não foi eleita por “erro de condução de campanha”, Fernanda Montenegro havia sido eleita imortal da Academia antes mesmo de se candidatar. É importante notar que, enquanto Conceição Evaristo é escritora há mais de 30 anos, premiada internacionalmente, com dezenas de romances, contos e poesias publicados e traduzidos, Fernanda Montenegro é uma atriz com somente duas autobiografias publicadas em 2018 e 2019.
Para alguns professores brancos da área, não existe distinção entre literatura brasileira e literatura negra brasileira. Eles ressaltam que a segregação dos movimentos literários pode ser prejudicial na construção da identidade da escrita no Brasil. Mas como é essa identidade quando a imagem do negro está associada à violência, à marginalidade, à ignorância, aos estigmas sexuais, estéticos e sociais? Se torna essencial destacar a literatura negra em um país que faz tudo para que ela não apareça. Maria Firmina dos Reis, negra e maranhense, foi a primeira mulher a publicar um romance no Brasil. É autora do romance Úrsula, considerado o primeiro livro abolicionista do Brasil. Já ouvimos falar sobre ela?
Compor uma escrita que busca a insurgência de autoras e autores negros é necessário. Isso traz a certeza de que um dia será possível que tenhamos muitas outras obras teóricas e literárias de negras e negros nas estantes das livrarias, salas de leitura de escolas, universidades e sendo instrumento de estudos para estudantes negros e não-negros. Se a sociedade brasileira continuar excluindo essas produções, teremos cada vez mais o reforço dos estereótipos e estigmas, reproduzidos por histórias contadas através do olhar branco.
“A literatura negra, especificamente a afro-brasileira, tem um caráter político e pedagógico irrefutável.” — Semog, poeta negro de Nova Iguaçu
Visando a transformação, profissionais negras e negros da educação vêm tentando inserir leituras não-hegemônicas nas aulas, um trabalho para reparar o apagão de autoras e autores negros, indígenas e LGBTQIA+. Somente desconstruir muitas vezes não gera efeitos. É preciso criar outras referências no âmbito educacional. É necessário fazer valer o lugar de fala, conceito criado pela autora indiana Gayatri Spivak e popularizado no Brasil por Djamila Ribeiro, que nos mostra a importância de ouvir os sujeitos de sua própria história, que por muito tempo foram limados de sua própria fala.
Conclusão
Propor outro caminhar, em que os profissionais possam pluralizar seus olhares, e reconhecer a produção de conhecimento da população negra, é urgente. É preciso romper com a romantização dos conteúdos e teorias vindas da Europa, que só nos tornam ainda mais subalternizados e colonizados.
“No fim da década de 1980, ainda persistia a visão de que tanto Cruz e Souza quanto Lima Barreto seriam autores menores, ou de pouca relevância, ou de existência tão conturbada que seu valor literário seria proporcionalmente inferior, ou que sua excelência ficou mais no jornalismo e menos na literatura.” — Ricardo Pinheiro
Referências vindas do continente europeu embalam as escritas em busca de um ideal estético e teórico. Existe um ideal que não condiz com a realidade nacional, onde nós, negras e negros, estamos ausentes. Mesmo para referências negras ou africanas, como no caso de Santo Agostinho, a raça é um referencial apagado. Esse é um fenômeno racista batizado pelo movimento negro americano de color blindness, algo como “cegueira para a cor”, em português. Uma velha estratégia racista de invisibilização do negro e de seus feitos.
Do ponto de vista da filósofa Sueli Carneiro, é urgente “agir pela construção de uma sociedade multirracial e pluricultural, onde a diferença seja vivida como equivalência e não mais como inferioridade”. Nessa perspectiva, é preciso rever o currículo dos cursos de formação de professores para inserir toda uma produção intelectual que está posta à margem das grades dos cursos.
Insisto que a Lei 10.639 precisa ser revista, porque não adianta ter uma diretriz que precisa ser cumprida se não existem profissionais preparados para tal ação e sem que se possa garantir a representatividade em sala de aula. Por fim, cabe ressaltar a necessidade de inserir na escola obras não-hegemônicas que contemplem as características de nosso povo, que possam narrar outras histórias, mais diversas com relação à raça, classe, gênero, orientação sexual e território.
Lista de Leitura de Educadores Antirracistas
- Aline Cristina do Carmo, “O Que Podemos Aprender com os Quilombos”
- Éle Semog, “Poetas Negros, Movimento Negro e Alguma Vida”
- Eliane Cavalleiro, Do Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar: Racismo, Preconceito e Discriminação na Educação Infantil”
- Elizabeth Maria da Silva, “O Papel da Mídia e da Escola na Formação da Identidade do Aluno Jovem e Adulto Negro: Ponto de Encontro e Desencontro”
- Joana Gorjão Henriques, “Racismo em Português: O Lado Esquecido do Colonialismo”
- Kabengele Munanga, “Superando o Racismo na Escola”
- Luciane de Oliveira Rocha, “Judicialização do Sofrimento Negro]: Maternidade Negra e Fluxo do Sistema de Justiça Criminal no Rio de Janeiro”
- Maria Alice Rezende Gonçalves, “Educação, Arte e Literatura Africana de Língua Portuguesa: Contribuições para a Discussão da Questão Racial na Escola”
- Maria Vieira Silva, “O Enfoque do Negro no Currículo Escolar: Algumas Possibilidades de Ressignificação”. REVISTA DE EDUCAÇÃO POPULAR, Uberlândia, n.3, set 2004.
- Marinalva Dias dos Santos, “Os Desafios da Escola Pública Paraense na Perspectiva do Professor”. A Literatura e o Tema da Negritude em Sala de Aula”
- Rosemere Ferreira da Silva, “Entre o Literário e o Existencial, a Escrevivência de Conceição Evaristo na Criação de um Protagonismo Feminino Negro no Romance de Ponciá Vicêncio”
- Sueli Carneiro, “Enegrecer Feminismo: a Situação da Mulher Negra na América Latina a Partir de uma Perspectiva de Gênero”
- Valéria Lourenço, “Autoria e Autorrepresentação em Comunidades Quilombolas da Baixada Maranhense Como Formas de Luta: um Diálogo entre a Antropologia e a Literatura Brasileira”, “Aya’ba”, “O Ruído da Escrita de Outras Penas—Narrativa e Autorrepresentação em Comunidades Quilombolas da Baixada Maranhense”, e “Resenha do livro Nice Guerreira: Mulher, Quilombola e Extrativista”
Sobre o autora: Cynthia Rachel Pereira Lima, carioca, moradora da Zona Norte, é mestranda em Cultura e Territorialidades pela UFF. Atualmente, Cynthia integra o Coletivo @encruzilhadafeminina, onde escreveu e dirige a peça “Encruzilhada Feminina” (2018); “O menino Omulu” (2019), “Até o fim – Mulheres, Memórias e Afins” (2020) encenada em Salvador/BA. Compõe o projeto @pretonopalco que registra a cena negra.
Editor do podcast: Júlio Coelho, cria da Pavuna, é operador de som e atua com produção, edição de áudio e vídeo.
Sobre a artista: Raquel Batista é artista visual e trabalha como fotógrafa e ilustradora. É estudante na Escola de Belas Artes da UFRJ, mulher negra e moradora da Zona Oeste do Rio.
Esta matéria faz parte do projeto antirracista do RioOnWatch. Conheça o nosso projeto que trouxe conteúdos midiáticos semanais ao longo de 2021: Enraizando o Antirracismo nas Favelas.