Quando começou a chover forte na terça-feira à noite, 28 de maio, cerca de 80 moradores da comunidade do Horto protestaram no portão do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde a abertura da última exposição mundial do famoso fotógrafo Sebastião Salgado estava ocorrendo. Sem se deixar abater pela chuva torrencial que se seguiu, os moradores e simpatizantes batiam tambores e seguravam no alto suas bandeiras. “Chamar como invasores as pessoas que construíram este parque é desumano”, lia-se na entrada da famosa atração de visitantes.
A comunidade do Horto pode traçar a sua história a partir do século 15 com as plantações de cana de açúcar que ocupavam a terra antes de ser desapropriada pelo rei D. João VI, em 1808, primeiro para a construção de uma fábrica de pólvora, e depois para estabelecer os jardins. Os trabalhadores vieram de áreas rurais do estado do Rio e receberam permissão para construir suas casas perto dos limites físicos do parque. Em sua comunidade, chamada Horto, os trabalhadores cultivaram mudas e espécies de plantas para os jardins e floresta do adjacente Parque Nacional Tijuca.
Apesar de sua história estar bem documentada, hoje a comunidade do Horto–onde muitos moradores são idosos e viveram lá todas as suas vidas–enfrenta a aproximação de uma remoção total após o anúncio feito pela Ministra Federal do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, em 07 de maio redefinindo os limites do Jardim Botânico. De acordo com esta nova delimitação, 520 das 619 famílias do Horto deverão ser removidas para que seja aumentada a área de pesquisa do Instituto Jardim Botânico. A decisão representa uma reviravolta do governo, que até o ano passado apoiava um projeto de desenvolvido em conjunto com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que iria garantir tanto a permanência e a regularização fundiária da comunidade, quanto à expansão da área do Jardim Botânico.
A decisão de 07 de maio tem indignado os moradores, comentaristas de direitos humanos e uma ampla rede de apoiadores da comunidade, tanto pela negação da importância histórica da comunidade e da contribuição dos moradores ao longo de décadas no cultivo e preservação do Jardim Botânico, uma propriedade federal e seus arredores, quanto pelo fato da decisão ser tomada sem qualquer participação ou diálogo com a comunidade.
Moacyr Paiva vive no Horto há vinte anos, após mudar-se para viver com sua esposa, cuja família está no local desde 1910. Ele é um membro apaixonado da resistência da comunidade, ele diz: “Quer dizer acabar com a comunidade, uma comunidade que tem origens históricas, em que o direito de moradia no local é inquestionável pela lei brasileira e pelos acordos internacionais. Então isso é uma coisa inteiramente inaceitável. Isso é um abuso de direitos humanos básicos que está sendo acobertado pela grande imprensa envolvida”.
Ele refere-se ao conglomerado de mídia Globo, cuja sede está baseada muito perto do Horto, no bairro Jardim Botânico. O magnata da Globo José Roberto Marinho está no Conselho Administrativo da Associação de Amigos do Jardim Botânico, que apresentaram queixas sobre o projeto da UFRJ de titulação de terras no Tribunal de Contas da União e conseguiu parar o seu prosseguimento. Enquanto o grupo foi bem sucedido em fazer lobby para a expansão do Instituto em detrimento da única comunidade de baixa renda da área, a maior influência dos seus apoiadores está na construção da narrativa em torno da questão. A Globo é o maior grupo de mídia de massa da América Latina, com a segunda maior receita anual de uma rede de televisão comercial em todo o mundo, dois dos maiores jornais diários do Brasil (O Globo e Extra), estações de rádio, revistas, sites, bem como empresas na indústria de alimentos, no mercado imobiliário e no mercado financeiro. A cobertura da Globo do caso do Horto persistentemente chama a comunidade de uma “invasão” e os moradores “invasores”, linguagem que deliberadamente pinta a comunidade, como uma comunidade imoral e como uma favela ilegal, na tentativa de negar a relação histórica da comunidade com a área e jardins e minar a sua legitimidade e direito de permanecer.
Emerson de Souza é morador do Horto, desde nascer, e coordenador do Museu do Horto, um museu comunitário a céu aberto que realizou uma extensa pesquisa para documentar a história social e ambiental da área. Durante a feijoada do último domingo, após uma reunião da comunidade na praça principal do Horto, ele diz: “Conseguimos levantar documentos históricos, registros, e todos esses comprovam a autenticidade para a cidade, das histórias das famílias aqui, o que fortalece também o nosso discurso que quebra esse discurso que tenta ser hegemônico que chama os moradores de invasores. Como que a pessoa que tem a família aqui há cem anos pode ser invasora de um local, mesmo porque ela foi convidada pelo governo da época para morar no Horto?”
Emerson passa a falar de como a cultura da comunidade de cuidado ecológico, tanto no local de trabalho no Jardim Botânico como na comunidade deles, mostra que eles procuram preservar a Mata Atlântica que se encontra o Horto. Ele diz: “É uma área que ajuda a proteção do Parque e não de invasores que veio pro Horto para destruir a natureza. São dois discursos bem diferentes. E um é comprovado cientificamente, o outro é especulação”.
Especulação, especialmente a especulação imobiliária, é o que os moradores do Horto acreditam seja a verdadeira motivação por trás da remoção. Eles sentem que os seus vizinhos ricos das mansões vizinhas do Horto, preferem que não haja uma comunidade de baixa renda em uma das áreas mais caras da cidade, e a remoção irá significar um aumento nos valores dos imóveis. Embora o motivo declarado seja a expansão do Instituto do Jardim Botânico, Demétrio Martins, 36 anos, jornalista e morador do Horto ao longo da vida, pode imaginar empreendimentos imobiliários tendo precedência. Ele diz: “Acredito que é balela, que realmente querem fazer uma higienização social, querem tirar o pobre para que eles possam futuramente vir com uma outra falácia de mansões ecológicas, ou resort ecológico…eu consigo enxergar”.
Na verdade, esta não é a primeira tentativa de remover a comunidade. Na década de 60, um condomínio foi planejado para a área, e depois um cemitério. Ambos teriam exigido a retirada das famílias do Horto, mas os moradores resistiram e venceram. Então, em 1985, ações judiciais sobre os terrenos foram feitas contra os moradores, com muitos processos em curso até hoje.
Sob a ameaça por tanto tempo, porém seguros sobre seus direitos históricos, morais e legais para permanecer, a comunidade montou uma resistência exemplar. Depois da esmagadora decepção de ter, de acordo com Emerson, o “super lindo, maravilhoso projeto”, desenvolvido com a UFRJ abandonado, eles se mobilizaram realizando inúmeras reuniões na comunidade e manifestações, chegando a contar com profissionais em áreas estratégicas trabalhando incessantemente para contar sua história e combater a narrativa da Globo. Eles estão lutando pela participação no processo de definição de seu futuro e convocando para uma reversão da decisão recente.
Além do apoio político em Brasília, essencial na representação da comunidade e em mantê-los informados dos desenvolvimentos, eles também contam com o apoio de políticos em nível estadual e municipal. Eles desenvolveram um manifesto endereçado à Presidente Dilma Rousseff pedindo a participação com os signatários, incluindo organizações da sociedade civil brasileira e internacionais, sindicatos e acadêmicos, que foi entregue por uma jovem do Horto, Larissa Rodrigues ao Governador do Estado Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, em uma manifestação na última segunda-feira, 27 de maio. Após o anúncio de 07 de maio, a Relatora Especial da ONU para o Direito de Moradia Adequada, Raquel Rolnik, escreveu uma carta para o chefe da Suprema Corte expressando sua profunda preocupação com os possíveis abusos de direitos humanos no caso do Horto.
Apesar de seus esforços nas esferas política e judicial serem essenciais, as suas estratégias de resistência mais eficazes têm sido a comunicação e as redes. Combinando a presença física nas ruas em eventos de protesto regulares, com a presença nas mídias sociais publicando as histórias dos moradores, vídeos e detalhes dos eventos no Facebook, a comunidade do Horto construiu uma estratégia de comunicação organizada com o objetivo de alcançar o maior número de pessoas possível, com a proposta até de chegar a canais de notícias do Vaticano na preparação para a visita do Papa ao Rio de Janeiro em julho. Fazer conexões com outros ativistas, como o cartunista político Carlos Latuff, que postou um vídeo de protesto na quarta-feira no Facebook, a fala do comentarista André Constantino no movimento Favela não se Cala, e a participação no lançamento do Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, levou que a notícia da causa se espalhasse mais ainda. E mais, no ano passado, uma autora de 17 anos, usando o pseudônimo ‘Flávia’, cuja história familiar no Horto remonta a cinco gerações, publicou um livro sobre as histórias, memórias e angústias da comunidade, atrevidamente intitulado Diário de uma Invasora.
Dentro do próprio Horto, placas nas casas com mensagens escritas em português e inglês contra a remoção se direcionam aos transeuntes, e a comunicação interna também é impressionante. Um carro com um alto-falante atravessa a comunidade com atualizações e detalhes de manifestações. Moradores se comunicam uns com os outros, publicando, online, através da página de Facebook. É importante ressaltar que reuniões comunitárias são inclusivas e participativas. Na reunião de domingo, 19 de maio, aonde cerca de 300 moradores chegaram a discutir e decidir sobre se eles iriam cumprir com o processo de registro do governo, muitas pessoas falaram em uma longa reunião de uma hora, o que foi descrito por um pesquisadora internacional presente como o melhor exemplo de tomada de decisão coletiva e participativa que ela já havia visto.
Moradores votaram não cumprir com o registro, o que eles identificam como uma forma do governo iniciar o processo de remoção. Cartas foram entregues esta semana na comunidade pressionando os moradores a se inscreverem, dizendo que: “é importante para a elaboração das alternativas habitacionais”. Moradores do Horto rejeitam completamente a possibilidade de sair, dado que a decisão de erradicar a comunidade foi tomada sem qualquer consulta, diálogo ou a participação por parte deles.
É notável que, enquanto a Globo usa uma linguagem de invasão e poluição para descrever o Horto, pessoas da própria comunidade falam em termos distintamente ecológicos. Eles falam de “cultivar” as suas famílias e a cultura, vivendo em “total integração com a natureza”, que removê-los seria “arrancar do solo”. Com essas conexões profundas com a sua comunidade e a terra, as palavras de Ana Beatriz Biazo, 19 anos, da quarta geração de moradores do Horto, não são surpreendentes: “Vamos resistir sempre e lutar sempre porque a gente nasceu aqui então nossa raiz é daqui. Não tem como a gente sair daqui”.