Jardim de Ervas Sagradas do Canal do Piaí: Um Espaço de Educação e Cura Comunitária em Guaratiba [IMAGENS]

Mãe Luizinha de Nanã visita barraca de produtos orgânicos da Teia de Solidariedade da Zona Oeste. Foto: Bárbara Dias | RioOnWatch
Mãe Luizinha de Nanã visita barraca de produtos orgânicos da Teia de Solidariedade da Zona Oeste. Foto: Bárbara Dias | RioOnWatch

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No dia 13 de agosto, aconteceu o 3° Encontro do Jardim das Ervas Sagradas, em Guaratiba, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. O evento foi organizado por Heloisa Helena Costa Berto, Iyalorixá Luizinha de Nanã e seu terreiro, que se situa no mesmo bairro. O encontro se realizou durante todo o sábado e foi marcado pela grande mobilização feita por lideranças religiosas e políticas, apoiadores e instituições públicas. Esta movimentação se deu através da ampla divulgação liderada por Luizinha, que se via cada dia mais impulsionada a transformar a rua de seu terreiro e sua casa. Para os praticantes de religiões de matriz africana, a natureza somos nós e tudo que está neste espaço. E é através da natureza que se dá a construção das relação em comunidade, não só religiosa ou espiritual, mas também se constroem relações educacionais, científicas e políticas. 

Roda de abertura das atividades do Terceiro Encontro do Jardim das Ervas Sagradas. Foto: Bárbara Dias/RioOnWatch
Roda de abertura das atividades do Terceiro Encontro do Jardim das Ervas Sagradas. Foto: Bárbara Dias | RioOnWatch

Luizinha é uma mulher engajada com o coletivo em sua essência. Para ela, tudo acontece melhor se for feito no coletivo e para o coletivo. Por isto, em muitas de suas falas, a matriarca fazia questão de enaltecer o poder da coletividade para que este evento acontecesse. O apoio veio de muitas frentes, o que a ajudou a ampliar sua voz. São eles chefes de terreiros de candomblé e umbanda da região, importantes lideranças de organizações da Zona Oeste e de outras partes da cidade, como a Teia de Solidariedade da Zona Oeste, Afrikerança, ONG Crioula, e Mulheres de Pedra, além do professor, escritor e Babalorixá Márcio de Jagun. Houve também a presença de órgãos públicos como Comlurb, Sub-prefeitura de Guaratiba, Região Administrativa de Guaratiba, “CRAS do Axé” e da vereadora Teresa Bergher, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro.

Mãe Luizinha de Nanã em frente ao Rio Piaí. Foto: Bárbara Dias/RioOnWatch
Mãe Luizinha de Nanã em frente ao Rio Piaí. Foto: Bárbara Dias | RioOnWatch

‘O Terreiro me Ensinou Tudo!’

O evento apresentou uma programação que visava ratificar a importância da cultura afro-brasileira para construir uma sociedade menos intolerante e racista. O encontro contou com a presença da roda de samba do grupo Vozes da Rua, Jongo da Eleda, balé de louvação a Nanã feito pela bailarina Ana Beatriz Moreira, um espaço para crianças organizado pela Alfazendo (organização socioambiental da Cidade de Deus), além de uma barraca da Teia da Solidariedade. A Iyalorixá fez questão de todo tempo frisar que não estávamos reunidos para festejar, mas sim como um ato político e educacional. A motivação deste encontro se tornou urgente logo depois de Luizinha passar por algumas situações graves de racismo religioso.

O balé de Louvação a Nanã (bailarina Ana Beatriz), foi uma das atrações artísticas que aconteceu no Terceiro Encontro do Jardim das Ervas Sagradas. Foto: Bárbara Dia/RioOnWatch
O balé de Louvação a Nanã (bailarina Ana Beatriz), foi uma das atrações artísticas que aconteceu no Terceiro Encontro do Jardim das Ervas Sagradas. Foto: Bárbara Dia | RioOnWatch

Luizinha vem de uma história de remoção na Vila Autódromo, perdendo além de sua casa, seu templo religioso nessa luta. Algum tempo depois de se mudar para um terreno em frente ao Canal do Jardim Piaí, em Guaratiba, sentiu a necessidade de ressignificar e reconstruir não só seu espaço particular, mas também o espaço comum. E assim foi. Luizinha mobilizou muitas pessoas, instituições, órgãos públicos e lideranças para, no dia 5 de março, começar o processo de recuperação da terra e das águas poluídas do Canal Piaí. Uma vez recuperadas as terras e as águas, Luizinha pretendia criar um jardim de ervas sagradas que fosse utilizado por todos do entorno. No entanto, dias depois do mutirão, que fez uma espécie de manta orgânica para recuperar o solo, Luizinha de Nanã encontrou o espaço incendiado.

Placa onde se lê Proibido jogar lixo ou Entulho às margens do Rio Piaí que passa em Frente a Casa de Nanã. Foto: Bárbara Dias/RioOnWatch
Placa onde se lê Proibido jogar lixo ou Entulho às margens do Rio Piaí que passa em Frente a Casa de Nanã. Foto: Bárbara Dias | RioOnWatch

Luizinha analisa:

“Este evento é para afirmar sobre a luta que nós travamos em relação ao racismo religioso e ao racismo ambiental. Ele é muito profundo no país inteiro, embora lá fora haja uma outra imagem. As pessoas não são informadas da amplitude da cultura afro-brasileira e por isso eles não aceitam a religião de Candomblé. Nossa religião e todas as religiões de matrizes afro-brasileiras, são as mais discriminadas por fazerem parte das religiões do povo negro. Toda essa carga de preconceito que nós sofremos, acabam levando as pessoas ao extremo, como foi o incêndio no terreno do projeto, mesmo sendo um projeto que visava estabelecer uma melhoria para a rua, para a comunidade.”

Luizinha de Nanã a frente de seu terreiro, segura placa da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, que reconhece o Jardim das Ervas Sagradas como local de benefício prestado à sociedade. Foto: Bárbara Dias/RioOnWatch
Luizinha de Nanã a frente de seu terreiro, segura placa da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, que reconhece o Jardim das Ervas Sagradas como local de benefício prestado à sociedade. Foto: Bárbara Dias | RioOnWatch

Por trás do racismo religioso, há um país que ainda alimenta, no seu imaginário coletivo, uma herança colonial e escravagista, e, por conta disso, simplesmente não consegue olhar para qualquer movimento do povo preto, sem relacioná-lo a algo ameaçador. Quando há essas movimentações, logo encontra-se um jeito de serem paradas, seja pela via judicial, econômica, social, educacional ou através da aplicação da força física. O nome intolerância religiosa às vezes soa como um eufemismo, pois esses atos deveriam ser chamado pelo que são: racismo religioso. Contudo, os dados apontam que a intolerância religiosa têm um alvo predileto: as religiões pretas.

Como no trecho do livro Intolerância Religiosa, escrito pelo Professor Doutor e Babalorixá Sidnei Nogueira:

Ouve-se muito que é ‘preciso tolerar a diversidade’. A expressão aparentemente, progressista e bem-intencionada, desperta a indignação de alguns tolerados. Não, não é preciso tolerar ninguém. ‘Tolerar’ significa algo como ‘suportar com indulgência’, ou seja, deixar passar com resignação, ainda que sem consentir expressamente com tal conduta. Quem tolera não respeita, não quer compreender, não quer conhecer. É algo feito de olhos vendados e de forma obrigatória. ‘Tolerar’ o que é diferente consiste, antes de qualquer coisa, em atribuir a ‘quem tolera’ um poder sobre ‘o que se tolera’. Como se este dependesse do consentimento do tolerador para poder existir.”

De acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), apenas entre 1 de janeiro e 16 de março deste ano, foram recebidas 111 denúncias de violação à liberdade de crença. Isso significa que o país registra, oficialmente, em média, três denúncias de intolerância religiosa a cada dois dias. Em 2021, foram 581 denúncias, com o maior número (138) registrado no estado do Rio. As denúncias, no entanto, evidenciam um caráter racial nos ataques religiosos no país, onde a maior parte das vítimas são pessoas e comunidades vinculadas às religiões de matriz africana. Portanto, a violação à liberdade de crença no Brasil tem bastante relação com a raça e o racismo religioso

Há 500 anos o povo preto, que veio sequestrado do continente africano para enriquecer as colônias européias em terras brasileiras, resiste e mantém vivas as suas tradições através do poder da palavra, da memória coletiva, e da certeza de que a ancestralidade e o poder não abandonam os seus. Luizinha é um exemplo vivo de que ainda é preciso contar com a força da oralidade para que não se apague a história verdadeira do povo africano na diáspora.

Placas com nomes das ervas que serão instaladas no Jardim de mãe Luizinha. Foto: Bárbara Dias/RioOnWatch
Placas com nomes das ervas que serão instaladas no Jardim de mãe Luizinha. Foto: Bárbara Dias | RioOnWatch

E é através de ações como esta, de uma mulher preta do Axé, que a comunidade negra deste país vem exigindo políticas de reparação das diversas camadas do racismo estrutural em nossa sociedade. Políticas de ações afirmativas são pleiteadas há muitos anos por movimentos importantes, desde os quilombos até o Movimento Negro Unificado (MNU) e tantos outros que abriram caminhos. 

A educação dos mais novos em comunidade e através da natureza é uma das principais faces da filosofia africana e é uma base das religiões com esta matriz. A iyalorixá Luizinha de Nanã, ao plantar um jardim de ervas sagradas às margens do Canal do Piaí, apenas quis prosseguir com ações de suas ancestrais e educar sua comunidade a cuidar de um bem natural. De forma similar, refletiu o professor, escritor e babalorixá, Márcio de Jagun, no evento:

“A Luizinha traz à tona reflexões e ações muito importantes para a gente entender a nossa diversidade. Todas as vezes que a gente pronuncia educação com (a palavra) ciência no singular a gente invisibiliza outras possibilidades de ciências, outras possibilidades de religiões, de educação. As religiões de matriz africana, por exemplo, têm na natureza, no verde a sua inspiração sagrada, assim como tem na terra, na água, no fogo, no ar a verdadeira possibilidade de dobramento Divino, e o que (Luizinha de Nanã) está proporcionando é isso. Não só para os adeptos dessas religiões, mas para as outras pessoas entenderem que é possível encontrar Deus também através das folhas, do vento, da água, da terra e do ar.”

Babalorixá Marcio de Jagun. Foto: Bárbara Dias/RioOnWatch
Babalorixá Marcio de Jagun. Foto: Bárbara Dias | RioOnWatch

A educação nos espaços ditos não convencionais é uma forte marca da resistência da comunidade negra no Brasil. Sobretudo levando em conta que o povo negro teve seu acesso negado a espaços de educação desde a fundação do país. Eram nas rodas de samba, de capoeira, jongo e nos terreiros que os mais velhos ensinavam e falavam de sua cultura, festas, cerimônias e cultos. Estes ainda são espaços de ensino. E é isso que Luizinha quer perpetuar em seu terreiro e no entorno. Uma educação comunitária e ancestral através da Natureza.

“Todo terreiro é um local de política intensa. Terreiro é uma comunidade. Terreiro é um quilombo que tem políticas educacionais, de comportamento, sociais. Eu sei disso porque eu fui educada durante a semana pela minha família e nos fins de semana nos terreiros. Então, eu também fui educada num terreiro. A educação dentro do terreiro foi muito importante na minha vida porque eu sou filha única e o terreiro me ensinou a compartilhar e socializar, a ter respeito aos mais velhos. Por isso o terreiro é um espaço político muito profundo. O respeito aos mais velhos, administrar os seus valores, ter cuidado com o que é seu e com o que é dos outros. Então, existe o cargo mais superior de yalorixá, a mãe de santo, como eu sou, depois vão vindo outros cargos, que são seguidos. E as pessoas têm que respeitar tanto os mais velhos, quanto os mais novos.” — Luizinha de Nanã

A organização da festa fez questão de colocar um pouco destes espaços diversos em que o povo preto ensina e aprende. Por isso, apesar de parecer uma festa por ter roda de samba, jongo e comida, todos estes elementos estavam ali para lembrar que a educação pode acontecer de várias formas. A coordenadora regional do projeto Afrikerança, Iyalorixá Marcia Ávila D’Osun complementou:

“Temos uma preocupação de começar a ser uma pedagogia de sustentabilidade, um trabalho com o meio ambiente, pois nós fazemos parte dele. A gente não fala só para o ser humano de dentro do Axé, mas também para o ser humano do entorno (dos terreiros). Nós temos que lembrar que fazemos parte dessa sustentabilidade, que é a natureza, e sem isso não existe o nosso corpo, sem isso não existe o alimento. Nisso daí já está a pedagogia de Axé.”

Da esquerda para direita: Ìyálode Ojéwunmi Rosângela D’Yewa, Iyakekere Penha D'Yewa, Iya Marcia Ávila D'Osun e sentada a frente a Iyalorixá Luizinha de Nanã, matriarcas do Coletivo Afrikerança. Foto: Bárbara Dias/RioOnWatch
Da esquerda para direita: Ìyálode Ojéwunmi Rosângela D’Yewa, Iyakekere Penha D’Yewa, Iya Marcia Ávila D’Osun e sentada a frente a Iyalorixá Luizinha de Nanã, matriarcas do Coletivo Afrikerança. Foto: Bárbara Dias | RioOnWatch

“Nós sofremos muito racismo religioso e esse trabalho que (Luizinha) faz é muito bacana em prol das crianças, ensinando a plantação e que mostra para o povo que o nosso trabalho, nosso culto é sagrado. Dentro do Candomblé existe educação de várias formas. Esse ato que ela fez aqui, no Jardim das Ervas Sagradas, é muito importante para comunidade”, afirmou a fundadora do projeto de matriarcas do candomblé, Afrikerança, Ìyálode Ojéwunmi Rosângela D’Yewa.

Tudo que aconteceu neste dia foi uma grande aula. Uma comunidade inteira reunida para mostrar que há infinitas possibilidades de fazer política e educação através não só da natureza, mas do corpo, música, alimentos e oralidade.

Obrigada Mãe Luizinha de Nanã.

Carla Souza é pedagoga por formação e professora de educação infantil apaixonada pela profissão. Cria da Rocinha, entende sua existência em ser negra e favelada, como um foco de luta e de resistência no mundo.


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