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Esta é a segunda de uma matéria de duas partes sobre a história de doze anos de luta por moradia dos moradores da Favela Skol, que revela os bastidores da política no Rio de Janeiro. Com reflexos diretos e indiretos dos megaeventos esportivos no espaço social do Complexo do Alemão, nesta segunda parte ouvimos sobre as famílias que aguardam ainda a devolução de suas moradias derrubadas pelo Estado. Não deixa de ler a parte 1 aqui.
A história de luta por moradia dos moradores da Favelinha Skol se inicia em 2010, quando 600 famílias são removidas pelo Governo do Rio de Janeiro. À época, o Governador Sérgio Cabral foi reeleito em 1º turno, em uma votação histórica.
Ao longo de mais de doze anos, além do descaso do governo, as famílias também tiveram que lutar para provar que existiam. Tudo em meio ao declínio econômico e ao desmonte do Rio de Janeiro após os megaeventos: a Copa do Mundo de 2014 e Jogos Olímpicos de 2016. Processo aprofundado pela pandemia do coronavírus e por uma crise política. O Governo do Estado do Rio trocou de mão seis vezes, tendo cinco governadores em seis anos: Sérgio Cabral, Luiz Fernando Pezão, Francisco Dornelles, Wilson Witzel e Cláudio Castro. Excetuando-se Dornelles, todos foram investigados, denunciados ou presos por corrupção.
Dois desses governadores foram presos acusados de desvio de dinheiro e corrupção. Cabral (2007-2014) afastou-se do governo em março de 2014 para concorrer a uma vaga no Senado Federal. Com a renúncia, em 4 de abril de 2014, Pezão (2014-2019), então vice-governador, foi empossado.
No fim do mesmo ano, em 26 de outubro, Pezão foi reeleito governador. No entanto, o governador se afastou do cargo por motivos de saúde entre março de 2016 e outubro de 2016. Seu vice-governador, Francisco Dornelles (2016 e 2018-2019), assumiu a gestão do Poder Executivo estadual.
Restabelecido da condição de saúde, Luiz Fernando Pezão retomou o cargo de governador, mas em novembro de 2018, Pezão foi preso na Operação Boca de Lobo, em mais uma etapa da Operação Lava Jato no Rio. Desta forma, o vice-governador Francisco Dornelles, 83 anos à época, assumiu novamente o governo.
Essa bagunça no xadrez político, econômico e produtivo mexeu com todas as peças, especialmente as mais vulneráveis, como relembra Camila Moradia, uma das principais lideranças do movimento de moradia do Complexo do Alemão: “[À época], todas as dívidas do Estado eram pagas por arresto [judicial] e quem conseguia fazer primeiro recebia o pagamento. Então, embolou tudo no aluguel social. Tivemos pessoas com atraso de sete meses, passando fome e indo morar na rua, não tendo mais o que fazer… Ainda veio a pandemia, rasgando tudo, paralisando tudo”.
Segundo ela, a organização popular foi a única saída. “Em parte foi isso também que organizou a luta, porque o pessoal começou a sofrer muito e aí vieram para a luta. Viu que se nós não gritássemos por nós, ninguém escutaria”.
Dornelles governou essa crise fluminense até a posse de Wilson Witzel (2019-2021), eleito em 2018. Witzel tomou posse em 1 de janeiro de 2019. No entanto, em 28 de agosto de 2020, por determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi afastado do cargo por fortes indícios de participação em esquemas de corrupção. Sendo assim, assumiu o cargo o Vice-Governador Claudio Castro, como governador interino por oito meses.
Porém, por dez votos a zero, o Tribunal Especial Misto condenou Witzel à perda do cargo por crime de responsabilidade devido a irregularidades na Secretaria de Saúde em sua gestão, inclusive com a prisão do Secretário Edmar Santos, seguida de delação premiada, citando o governador. Assim, em 1 de maio de 2021, Claudio Castro (2020-2022) assumiu definitivamente a cadeira de governador.
Agora, nas eleições de 2022, Castro, ex-Partido Social Cristão (PSC), partido de Witzel, Edmar Santos e Pastor Everaldo, é candidato à reeleição pelo Partido Liberal (PL), mesmo partido do Presidente Jair Bolsonaro.
Na esfera federal, os moradores da Favela Skol também foram testemunhas de quatro trocas de poder que afetaram diretamente a situação deles.
Quando foram removidos, em 2010, o país tinha na presidência Luis Inácio Lula da Silva (2003-2010), em seu segundo mandato. Em 1 de janeiro de 2011, Dilma Rousseff (2011-2016) tomou posse como nova presidenta do Brasil, substituindo Lula, e mantendo o mandato do Partidos dos Trabalhadores (PT) para o cargo mais importante do país. Porém, Dilma sofreu impeachment em 31 de agosto de 2016.
É quando o então Vice-Presidente Michel Temer (2016-2018), do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), tomou posse, transicionando o Executivo de um governo de centro-esquerda para um governo de direita. E posteriormente, com a vitória de Jair Bolsonaro (2019-2022), o Brasil passou a ser governado pela extrema-direita.
Vulnerabilidade Social
É importante ressaltar que a construção de unidades habitacionais no Complexo do Alemão pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) trouxe ainda reflexos diretos na vida dos moradores. Não apenas pela remoção, mas pelo alto aumento do custo de vida no Complexo do Alemão de até 300% segundo o Extra.
Moradores removidos da Favela da Skol recebem aluguel social de R$400, preço muito abaixo do mercado imobiliário. É fundamental lembrar que o aluguel social não tem aumento desde 2010, ao contrário do preço dos imóveis, que sofreu altas recordes nas últimas décadas.
Em 2010, esse valor já era baixo, representava 78,4% do valor do salário mínimo que, até dezembro de 2010, estava no valor de R$510. Hoje, os mesmos R$400 representam somente 33% do salário mínimo de R$1.212, uma queda absurda no poder de compra do auxílio.
Segundo cálculos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o gasto de uma família com alimentos representa 48,51% do salário mínimo.
Segundo o Índice Geral de Preços de Mercado (IGP-M), calculado mensalmente pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), o valor do aluguel social deveria ter sofrido ao longo dos doze anos um aumento total de 156%, conforme aponta a calculadora do cidadão do Banco Central. Caso o valor fosse corrigido a partir do IGP-M, a assistência às famílias para pagamento do aluguel deveria ser hoje de R$1.024,39, ou seja, o aluguel social seria, ele próprio, quase que um salário mínimo.
Os impactos da falta de moradia ainda trazem outros reflexos sociais mais “invisíveis”. Uma vez que as famílias não conseguem comprovar endereço, seja por estarem hospedadas na casa de parentes ou amigos ou devido a constantes mudanças de endereço em decorrência do preço dos aluguéis, elas têm dificuldades em matricular seus filhos na escola, de arranjar empregos e terem um salário digno para se sustentar, de acessarem médicos das Clínicas da Família, cujas equipes são divididas territorialmente para o atendimento aos pacientes.
Para piorar, esse contexto expõe as famílias removidas da Favela Skol a uma situação de extrema vulnerabilidade social. Mais do que isso, sem casa essas famílias passaram a ser invisíveis à burocracia estatal, em um verdadeiro apagão de dados.
Excluídos
O valor previsto no Orçamento-Geral da União para as obras no Complexo do Alemão pelo PAC, segundo Correio Braziliense, era de R$832,9 milhões. As obras das unidades habitacionais estavam mais voltadas a abrigar moradores removidos para as obras do teleférico e de infraestrutura na comunidade.
No projeto, supostamente, todos os moradores removidos estariam alocados nos conjuntos construídos localizados na Poesi (Estrada do Itararé, em Ramos) e na Área do Gás (Heliogás), no Entorno 1 (Avenida Itaóca, 1.174), no Entorno 2 (Avenida Itaóca, 1.833), no Morro do Adeus.
Porém, a “Favelinha Skol” estava localizada em outro trecho da Avenida Itaóca, próximo a fábrica do Café Capital, na altura do número 2.277, cerca de 400 metros depois da área das habitações de parte das pessoas removidas do Complexo.
Apesar da Favela Skol já existir neste período entre 2008 e 2010, a ocupação nunca fez parte do traçado do teleférico de cinco estações que ligam o Complexo do Alemão ao bairro de Bonsucesso. Por isso, não foi incluída como beneficiária das unidades construídas pelo PAC. Para a família de Camila Moradia e as demais removidas pelo Estado não havia um plano habitacional para incluí-los.
“A gente ficou esperando um ano e pouco para as novas casas serem entregues após sermos removidos, mas nada aconteceu. Eu não era ainda da associação de moradores e nós enxergávamos a associação como nossos representantes legítimos. No final de 2012, eu comecei a cobrar desses representantes que algo acontecesse. Eles sempre pediam calma e que esperássemos, mas veio 2013 e nada. No meio disso, tivemos novas eleições e tentamos buscar um comprometimento deles, mas isso não aconteceu”, relembra Camila.
Somente em 4 de maio de 2015, durante audiência pública para investigar as violações de direitos humanos ligadas às UPPs, no Complexo do Alemão, as famílias passaram a existir, ao menos para o Governo do Estado do Rio de Janeiro. Camila conta:
“Quando veio a audiência de segurança dentro do Complexo do Alemão, convocamos todas as famílias sem moradia e decidimos que, no meio da audiência, a gente ia entrar e falar, que alguém ia ter que atender a gente. A gente não conseguiu ter a oportunidade de falar [na audiência]. Mas, eu sempre digo que ali foi o primeiro dia de luta oficial nosso, porque a gente conseguiu visibilidade. O Voz das Comunidades foi com a gente lá [no terreno] e a gente conseguiu fazer a primeira matéria oficial de luta produzida por um jornal comunitário.”
Apesar de não ter conseguido direito à voz na audiência, Camila Moradia tomou conhecimento da existência de 392 famílias removidas pelo Estado do Rio e governo federal no Morro do Adeus, dentro do Complexo do Alemão, devido às obras do teleférico. Também conseguiram a atenção da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Em 23 de maio de 2015, todas as vítimas de promessas de habitação não cumpridas no Complexo do Alemão foram atendidas em um evento realizado na comunidade pelo órgão. Porém, nada foi resolvido quase um ano depois.
A situação da crise política e econômica se agravou ainda mais. Os aluguéis sociais começaram a atrasar todos os meses, chegando ao ápice dos moradores ficarem sem receber o benefício por sete meses. “Foi aí que a gente intensificou mesmo a luta. Começamos a participar de todas as reuniões que tinha em tudo quanto é lugar, e não contávamos mais só com a Associação para nos representar ou participar dessas reuniões. Inclusive, a gente ia nas reuniões e falava que nós não nos sentíamos representados pela associação”, conta Camila Moradia.
O período é destacado por ela e pelas famílias como “os piores anos da vida”, pois com a crise econômica e política do Estado do Rio, entre 2016 e 2017, eles só recebiam o aluguel social quando havia uma ordem de arresto.
O arresto é uma medida judicial preventiva, determinada por um juiz com a finalidade de apreender bens do devedor para garantir ao credor o recebimento de seu crédito. No caso do Rio de Janeiro, o dinheiro que entrava na conta do Estado era bloqueado da liberação de valores das contas administradas para atender demandas relativas a pagamento de salário de servidores ativos e inativos, além da falta de pagamento com prestadores de serviços, e tutelas provisórias definidoras de prioridades na aplicação de recursos públicos.
Neste momento da luta, eles buscaram parceria com outros movimentos de luta por moradia do Rio de Janeiro e do Brasil. Com apoio do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), ocuparam a Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (EMOP), que é a responsável por obras realizadas pelo Estado. Ressalta Camila:
“Quando a gente organizou essa ocupação no EMOP, a gente chamou todo mundo que estava no aluguel social no Complexo do Alemão para vir. É quando a gente chama as pessoas para virem para luta que descobrimos que famílias que foram removidas para a construção do teleférico também estavam no mesmo processo que a gente da Favela Skol. O teleférico começou a ser construído em 2008. A gente tem famílias aqui no Complexo do Alemão que estão há 14 anos no aluguel social, porque foram removidas pelo Estado e estão sem casa até hoje. São 392 famílias.”
‘Vocês Existem?’
O MTST convidou a comissão de moradores na luta por moradia no Complexo do Alemão para ir até Brasília. O objetivo era tentar uma reunião com o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, do Ministério da Fazenda e da Casa Civil. À época, Camila Moradia tinha acabado de ser mãe novamente e estava de resguardo. Atualmente, ela tem três filhos, e lembrou: “Eu pensei: como é que eu vou contar isso tudo?”.
Foi quando ela teve a ideia de “escrever uma carta de próprio punho” para ser entregue em Brasília.”Eu fui relatando todas as situações de moradias e processos e pedindo especificamente por cada família de cada grupo”, enfatiza.
A estratégia deu certo, mas, revelou para surpresa e indignação de todos, que as pessoas removidas da Favela Skol não existiam no cadastro do governo federal. “A gente achava que tinha sido removido pelo PAC 1 para ser beneficiado no PAC 2, mas quando vamos à Brasília, descobrimos que a gente não estava alocado em nenhum programa habitacional a nível federal. Isso já era 2016!”, conta Camila.
Em Brasília, a comissão de moradores foi recebida pela Secretária de Habitação da época e pelo próprio Ministro da Cidade. A pasta insistia que não havia mais famílias a espera de unidades habitacionais no Complexo do Alemão: “Não, no Alemão, todas as famílias que precisavam de casa já tinham ganhado a casa”, conta a ativista. E perguntaram: “vocês existem?”, descreve ela.
A partir daí, começou a saga dos moradores removidos da Favela Skol e do Morro do Adeus (ainda devido às obras do teleférico) para apresentar diversos documentos que comprovassem que “sim, eles existiam!”. Explica Camila:
“Nós imprimimos uma foto do portal que existe do Aluguel Social. Lá aparece o nome de todo mundo que recebe aluguel social e mostramos ao Ministério e à Secretária. Até hoje eu tenho esse email. Mas, recebemos a resposta de novo de que nós não estávamos alocados em nenhum programa habitacional federal. E passamos a ter que provar nossa existência.”
Do Xadrez ao Banco Imobiliário
Camila relata ainda que os moradores enfrentaram meses de “empurra empurra”, pois o governo do Rio não passava as informações corretas para o governo federal que alegava só poder olhar o processo “‘se chegar aqui em Brasília”. Não havia qualquer dado da remoção da Favela Skol, do pedido de inclusão no programa de moradias do governo federal, de acordo com a ativista.
Foi quando os moradores pediram que fosse marcada entre as esferas do Poder Executivo uma reunião. Quando esta finalmente foi marcada, no Rio de Janeiro, ela foi impedida de entrar como representante do movimento pelo Governo do Estado do Rio:
“Quando eu cheguei na porta, eu não pude entrar. Liguei para a secretaria nacional da pasta de habitação. Eles [Estado do Rio de Janeiro] boicotaram nossa presença, mas quando ela chegou, pôs a gente para dentro dizendo que eu estava com ela [secretária]. E aí é que começou oficialmente para eles, digo, o Governo Federal, em novembro de 2016, a promessa oficial de devolverem nossas casas. Foi só ali que passamos a existir! Também foi quando finalmente nós passamos por um recadastramento, pois foi a primeira vez que a gente fez um cadastramento depois de seis anos. Só aí começamos a entrega de documentos, porque a gente foi removido só entregando uma identidade e recebendo um cheque de R$400. A gente não sabia nada, como funcionava. Foi então que a gente descobriu que o processo do Estado do Rio estava todo errado.”
O processo de recadastramento das famílias foi longo e durou meses, pois muitas famílias não tinham mais os principais documentos como certidão de nascimento, casamento, etc. Ainda, com o impeachment de Dilma Rousseff e a posse do Michel Temer, todo o processo foi paralisado. Camila detalha:
“A gente consegue se encaixar no programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), o que eles chamam de ‘enquadramento’. Então, a gente não estava no PAC 1, nem no PAC 2, e fomos parar no MCMV 3, só que já não tinha mais dinheiro, né? Chegam as eleições de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro é eleito à presidência. Em 28 de dezembro, o processo de liberação de verba pelo governo federal para a construção das unidades habitacionais para os moradores do Complexo do Alemão, finalmente, foi aprovado. Mas… o calvário das famílias continuou.
A gente toma outro golpe com o Bolsonaro eleito. Ele mandou auditar todo o processo [de programas sociais de habitação em curso] e suspender tudo com o argumento de que ‘foi feito no apagar das luzes’. Ele cancela tudo. Aí mais uma vez, a gente inicia um processo de troca de governo com o Bolsonaro no Executivo Federal e o Wilson Witzel como governador do Estado do Rio.”
A partir daí o jogo de tabuleiro muda de novo. Elas passaram a ter que convencer o Estado da obrigatoriedade do direito delas receberem de volta as casas por terem sido removidas pelo Estado do governo do Rio de Janeiro com anuência do governo federal.
Segundo Camila Moradia, o governo de Wilson Witzel nunca aceitou receber a comissão de moradores do Complexo do Alemão, mesmo tendo sido eleito como governador do Rio de Janeiro com apoio do Presidente Jair Bolsonaro e com votação expressiva em favelas. “A gente passa 2019 inteiro tentando diálogo, tentando contato de novo para ver como estava nosso processo, mas a gente não consegue!”.
Mais um velho ano ‘novo’ chegou para os moradores do Complexo do Alemão, que vêm lutando por mais de dez anos para receberem de volta seu teto. Em março de 2020, veio a pandemia global da Covid-19. “A pandemia chegou rasgando e parou tudo. Não tinha atendimento, ficou tudo travado”, ressaltou.
Enquanto esteve à frente do Governo do Estado, Cláudio Castro também não atendeu os moradores durante um ano. Apenas em julho de 2021 a Comissão de Moradores do Complexo do Alemão (formada por seis mulheres, sendo cinco negras) finalmente conseguiu abrir uma linha de diálogo com o Governo do Estado.
“Ai eu abro um parêntese para dizer que: a gente está num tabuleiro e pode ser que esse tabuleiro esteja sendo movimentado justamente nessa hora, porque este ano [2022] seria um ano político. Eu tenho muito essa visão”, analisa Camila.
O Começo do Fim?
Ao chegar à sede do Governo do Estado do Rio, Camila conta que se surpreendeu. Ao invés de uma reunião, ela e várias lideranças do Complexo do Alemão foram recebidas com um almoço. “A impressão é que eles já sabiam de tudo que íamos falar, porque estava presente o secretário de obra e infraestrutura, o secretário de transporte, o de ciência e tecnologia que cuida da Faetec, etc”.
Como ativista e liderança comunitária do movimento popular de moradia, Camila diz que não acredita que a liberação da verba e início das obras para o começo da construção das unidades habitacionais para as famílias removidas possam ser usadas como capital político nas eleições de 2022.
A ativista conta que ao longo desses doze anos, quase 100 moradores removidos pelo Estado no Complexo do Alemão morreram sem receber suas casas e pondera que sua luta é real e urgente:
“Eu tinha 25 anos. Hoje eu tenho 37. Eu tinha uma filha. Hoje ela tem 13 anos e eu tenho dois outros filhos. As pessoas não entendem nada do nosso processo! Estamos sem casa e independente de ser ano político ou não, eu não posso embarreirar o cara de fazer obra dizendo: ‘Ah, agora não vai fazer porque é ano eleitoral e tu não vai usar isso para ter voto’. Eu estou há doze anos sem casa! Tem gente que está há 14 anos! Por mais que seja um ano político e ele esteja querendo ganhar voto, nosso processo é muito antigo. É assustador algumas pessoas acharem que têm como embarreirar isso politicamente… Porque isso não é uma luta política interesseira… É uma luta real! A gente está falando de 1.300 famílias sem casa.
Têm pessoas que brigam e compram a luta de outras pessoas, mas esse não é nosso caso. A briga é nossa mesmo. É a gente que está sem casa. Não tem como eu falar ‘não vai fazer’. Eu não sou o Cláudio Castro e não sou uma pessoa de direita, mas eu não posso falar para ele não fazer uma obra que é de ordem urgente porque é ano de eleição. Eu estou sem casa.”
Até o ex-Presidente Lula (PT) não escapou de críticas. “Quando estive com ele, compartilhei que ele não fiscalizou no mandato dele”, disse Camila, sem esconder que apesar disso, votará no petista. “Eu vou votar pela possibilidade de diálogo e acreditando que se a gente tiver esse diálogo podemos conseguir participar e melhorar o que ele conseguiu fazer antes. Ao longo dessa trajetória ficou visível que o problema foi o Estado do Rio de Janeiro”.
Ao todo, Camila e seus filhos já se mudaram 14 vezes nos últimos doze anos. Já ficou seis meses sem pagar aluguel, tendo que viver da generosidade e compreensão do dono da casa. Descreve:
“Alguns entendem, conseguem ajudar. Porque o aluguel também é a renda deles. Então, quando você não paga um aluguel, você se desespera porque pode estar tirando da boca de alguém o que comer. Mas não tem lógica eu pagar o aluguel e não ter o que dar de comer aos meus filhos. É uma situação de humilhação e vergonha. É isso que a gente sente mesmo. Você fica sem pagar e vai pagando como pode ou você se mata trabalhando em três empregos e só vegeta. Já trabalhei de telemarketing pegando das 8h às 14h e depois de novo das 17h40 até meia noite. Eu dormia para trabalhar.”
No Complexo do Alemão, os movimentos populares de moradia, educação, juventude e cultura, conjuntamente, vêm construindo o Plano Popular do Complexo do Alemão, entregue a todos os candidatos à presidência do Brasil e ao Estado do Rio que compareceram em campanha eleitoral ao bairro. Disse Camila:
“O que eu espero dos candidatos à presidência e, principalmente, governador e deputados do Rio de Janeiro é o compromisso com as favelas. Todas as favelas. Compromisso com a vida porque quem mora em favela está cansado de só sobreviver. A gente quer viver.”
Camila Moradia é filha de uma mulher negra que também lutava por direitos para a comunidade. Cresceu vendo a mãe e outras mulheres negras lutando por direitos. Hoje, é defensora de direitos humanos e trabalha no grupo de acolhimento a mulheres no Complexo do Alemão: o Mulheres em Ação no Alemão (MEAA). Ela contou que não sabe o que fazer primeiro quando sua unidade de habitação no condomínio popular estiver entregue e pronta. Ela só tem certeza de duas coisas: “Eu só quero entrar! Não precisa ter nada. Eu só quero entrar e dar uma parede para cada um dos meus filhos. São dois quartos. Eles são três. Então, eu prometi que cada um vai ter uma parede para decorar, enfeitar e usar como quiser”.