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Em março de 2020, o Presidente Jair Bolsonaro ordenou que o Exército fabricasse 2,8 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina para o suposto tratamento da Covid-19. A ordem, sem licitação e autorização do Ministério da Saúde, ocorreu a despeito de não haver comprovação de que a hidroxicloroquina seja eficaz contra o coronavírus.
Eu, Tássia di Carvalho, acometida cronicamente por lúpus, dermatomiosite e ceratocone, faço parte dos que dependem deste remédio para o tratamento para o qual ele foi devidamente desenvolvido e aprovado. Para ter acesso à hidroxicloroquina, tenho que passar por testes médicos e preciso ir ao oftalmologista fazer exames trimestralmente. Ainda assim, tive efeitos colaterais do remédio, como perdas consideráveis no meu campo visual, o que me obrigou a passar por uma cirurgia no ano passado. Esse não é o único efeito colateral do uso contínuo do remédio. É comum observar, por exemplo, hemorragias.
Mesmo que não tivesse eficácia comprovada contra o coronavírus, o aumento na produção do remédio me acendeu esperança: talvez, agora regularizassem as entregas, o que não acontecia há anos. Desde 2014, no Rio vivemos entregas irregulares do sulfato de hidroxicloroquina, distribuído para pacientes pela RioFarmes.
Porém, infelizmente, apesar das minhas esperanças, não tivemos o abastecimento regularizado e ainda tivemos uma corrida às farmácias, o que fez com que muitos doentes crônicos ficassem sem os remédios. No auge da pandemia e sem um comprimido, pedi para conhecidos de outros estados buscarem nas farmácias, desta forma recebendo uma caixa de São Paulo e outras duas de Pernambuco.
Portanto, a falta do composto assusta quem mais precisa e as entregas oscilantes fazem com que os doentes crônicos não consigam ter acesso ao medicamento de uso contínuo. Mesmo com a pandemia e parte dos 2,8 milhões de comprimidos fabricados pelo Exército estragando, nenhum desses comprimidos chegou ao Rio para doentes crônicos. Em 2021, foram ao menos seis meses sem receber o medicamento.
Em 2020, o Exército revelou que 400.000 comprimidos estavam “parados por falta de demanda”. Enquanto isso, o abastecimento de hidroxicloroquina para quem comprovadamente precisava continuava irregular. Neste ano, ao menos 83.000 comprimidos do remédio foram jogados no lixo.
A última vez que eu peguei a hidroxicloroquina com uma certa regularidade, foi em 2014. Depois disso, a resposta da RioFarmes é de que estariam licitando. Quem mais sofre é quem mais precisa, como Bianca Nunes, 29, moradora de Austin, em Nova Iguaçu.
Bianca Nunes
Bianca Nunes usa a hidroxicloroquina há oito anos, para lúpus e fibromialgia, e amarga não só à suspensão das entregas do medicamento que o presidente exibe aos montes, mas também do seu LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social), benefício pago pelo INSS para doentes crônicos, como lúpus:
“Ele (Presidente Bolsonaro) não entende a gravidade que é para um paciente de lúpus ficar sem tratamento. Os danos podem levar a falência renal, problemas graves a vários órgãos levando o paciente a internação, e danos irreversíveis por toda a vida do paciente, além dos danos psicológicos do paciente que passa o dia com medo de não sobreviver ao amanhã. A questão é que Bolsonaro não afetou só os que estavam com Covid-19. Afetou milhões.”
Ela é uma mulher preta que, com o valor do LOAS, comprava seus medicamentos quando estavam em falta na RioFarmes. “Estou conseguindo tomar meus remédios por doações, mas nem sempre eu consigo. Meu marido está desempregado e eu não tenho de onde tirar dinheiro. Já me endividei bastante, comprei o que consegui comprar com o cartão de crédito, mas já estourei todos os meus cartões e não consegui comprar”.
Para conseguir pegar a hidroxicloroquina que até o fechamento desta reportagem estava disponível na RioFarmes, Bianca tem que sair de Nova Iguaçu e ir até o Centro do Rio para buscar a medicação. “Eu não tenho vale social e nem condições de pagar a passagem. Como que eu faço para ir lá buscar sem dinheiro nenhum?”, questiona. “Já fui na Defensoria duas vezes, mas não recebi ajuda e nem auxílio, também já fui no CRAS e nada”.
Suellen Maia
Suellen Maia, 31, portadora de lúpus e moradora de Pilares, Zona Norte, foi além. Sozinha, em 2017, após mais de três anos sem o medicamento, mobilizou dezenas de meios de comunicação e instituições de classe em busca de visibilidade para o abandono dos portadores de lúpus. Enquanto outros estados recebem o remédio regularmente, no estado do Rio os pacientes sofrem.
Suellen conseguiu mais de 100.000 assinaturas em um abaixo-assinado que ganhou repercussão nacional e, ainda assim, o estado do Rio não regularizou o abastecimento. Suellen também luta com o INSS que suspendeu seu auxílio doença em fevereiro deste ano. Para garantir seus medicamentos, ela precisou entrar com uma ordem judicial e mesmo assim, a vitória foi parcial. “Não recebo todos os meus medicamentos, apenas hidroxicloroquina e topiramato”.
Somos cerca de 57 milhões de brasileiros portadores de doenças crônicas, segundo o IBGE, mais de 25% da população brasileira. Merecemos ter nosso direito à saúde garantido e fortalecido ao invés de ameaçado.
A Secretaria de Estado de Saúde foi procurada para essa reportagem. Contudo, até o momento de publicação desta matéria, não obtivemos resposta.