Cidadania de Papel: A Economia da Fome em Pauta nas Eleições 2022

Com mais de 33 milhões de pessoas com fome crônica, o combate à fome deve ser prioridade entre os candidatos

Arte original por Estevão Ribeiro

Click Here for English

Mesmo o Brasil sendo um dos maiores produtores de alimentos do mundo, a economia política e social da fome, tornou-se um tema fundamental na disputa eleitoral de 2022. São milhões de pessoas passando fome, de acordo com o levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan)

Se antes da pandemia, era possível desviar o olhar da fome nas ruas ou nas notícias de jornais, agora, já não há mais como fugir dessa realidade. Tem gente com fome em todos os lugares das cidades, nos grandes centros ou nas periferias, dentro e fora das casas e até no campo, portanto é crucial conhecer as propostas dos candidatos a presidente do país frente a fome de 33,1 milhões de brasileiros—como mostra o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.

Gráfico com índices de fome e seus níveis no Brasil. Reprodução do relatório Olhe para a fome
Gráfico com índices de fome e seus níveis no Brasil. Reprodução: site Olhe para a Fome que publicou os dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.

A Volta ao Mapa da Fome

Segundo o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia, lançado em junho de 2022, apenas quatro em cada dez famílias brasileiras têm acesso pleno à alimentação. “O número de domicílios com moradores passando fome saltou de 9% (19,1 milhões de pessoas) para 15,5% (33,1 milhões de pessoas). São 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome em pouco mais de um ano”, revela o relatório.

Em 2022, o Brasil voltou ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU), após oito anos fora dele. O levantamento considera a falta de alimentos como crônica quando há uma média superior a 2,5% da população enfrentando a situação de fome. No Brasil, com 215 milhões de habitantes, a taxa estimada ficou em 4,1%.

O relatório global da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), agência parte da ONU, aponta que mais de 60 milhões de brasileiros enfrentam dificuldade para conseguir comida. A fome no Brasil regrediu para os patamares de 1990, tornando-se novamente estrutural (crônica). Mas o que esses números da fome significam? 

O Que É a Fome?

O RioOnWatch ao buscar depoimentos sobre o que é sentir fome teve o cuidado de entrevistar pessoas que já passaram fome, mas que hoje não estão em insegurança alimentar, uma vez que a fome causa um sofrimento psíquico às pessoas. Essa decisão se revelou acertada quando olhamos para o número de pessoas contatadas e o número de depoimentos colhidos. No total, 14 pessoas foram procuradas para a produção dessa matéria, mas somente três aceitaram enviar testemunho.

Uma moradora jovem de uma favela do Rioque nunca passou fomechegou a pedir à mãe que desse depoimento para a reportagem, mas ela disse para a filha que não conseguia sequer pensar em falar sobre a fome, “pois sentia o corpo doer e as carnes tremerem”.

Kananda Ferreira, 25 anos, moradora do Complexo da Maré, Zona Norte, descreve a fome como algo que “faz você esquecer que tem alma e que não é merecedor da dignidade [de comer]. É deixar de existir porque seu corpo não está bem, junto com outras agonias. É desumano, cruel e devastador”. 

Mãe solo e desempregada, ela conta que poucas vezes se viu em situação de fome, “com o filho reclamando de dores na barriga”. Além da fome já viveu a insegurança alimentar, tendo que decidir diante de uma balança de supermercado “entre comprar frango ou ovo para almoçar e jantar”. E conclui: “Me dói pensar que existem mulheres em situações piores que a minha, todas sofrendo de formas diferentes pela mesma causa”. 

Manifestante reivindicando ações contra a fome. Foto: Chokito/Sindijus-PR
Manifestante reivindicando ações contra a fome. Foto: Chokito/Sindijus-PR

Tassia Di Carvalho, editora do RioOnWatch, 36 anos, confidenciou que já passou fome na infância e vulnerabilidade extrema quando adulta. “Sentir fome para mim foi desesperador porque eu era criança e queria qualquer coisa que fosse para comer, mas não tinha. Eu tinha um vazio absurdo [na barriga] e sentia uma dor que era muito maior do que quando tive crise na vesícula. Passava dois, três dias sem nada para comer, bebendo água compulsivamente”.

Refeição escolar saudável, diversificada e com quantidade adequada. Agência Brasil
Refeição escolar saudável, diversificada e com quantidade adequada. Foto: Agência Brasil

Mulher negra, moradora do bairro do Riachuelo, ela conta que chegou uma vez a desmaiar na escola por estar com fome. A inspetora “linha dura” que a socorreu perguntou: “Você não tomou café hoje não?”.

“Fiquei mega sem graça e disse que saí atrasada. Ela percebeu que eu não tinha o que comer, então, me levou na cantina. Depois daquilo, ela conversou com a direção e liberaram o segundo lanche para os alunos, assim, chegávamos na escola e podíamos tomar um café lá, e depois, ir para a aula e lanchar na hora do lanche. Acho que eles nem tinham ideia da procura que aquilo ali teria, mas a fila ficava lotada todos os dias de crianças que não tinham o que comer em casa… É estranho porque hoje as pessoas me vêem relativamente bem-sucedida e tal e não imaginam tudo que já passei”, afirma Tassia.

O testemunho de Tassia revela mais do que a fome. Mostra como a escola pública no Brasil é um ator de combate à fome. Porém, com a pandemia do coronavírus, as escolas foram fechadas. Só na capital fluminense, somadas as duas redes, municipal e estadual, são 818.800 estudantes que ficaram por dois anos letivos sem ensino presencial.

“Eu costumo dizer que a escola pública mata diferentes fomes: ela mata a fome da comida, do conhecimento e da cultura. Por isso, ela é muito necessária enquanto um direito no país, com diversidade e pluralidade. Especialmente nas favelas. Com as escolas fechadas devido à pandemia, foi ameaçado o direito à educação e à segurança alimentar, tanto de crianças, quanto de adultos, pois há também o turno da educação para jovens e adultos. Ninguém aprende nada com fome”, avalia a professora Pollyana da Silva*, das redes de educação do Rio de Janeiro. 

E completa: “Não são poucos os relatos de famílias que não estão tendo o que comer em casa. Não é fácil lidar com isso, pois a escola abre de segunda a sexta, mas no final de semana não. Os alunos têm repetido mais vezes as refeições, porque eles estão com fome. Muitas vezes o único café que eles vão tomar e a refeição que vão fazer é na escola. Nesse momento a escola precisa matar essa fome: a fome de comida. Sobretudo, em espaços como a favela, é o único aparelho do estado que se mantém firme dentro desses territórios.

Mais um dia de ação da cozinha solidária da Frente Maré
Mais um dia de ação da cozinha solidária da Frente Maré

Gizele Martins, 36 anos, comunicadora popular e jornalista, também revela que passou fome quando a mãe morreu:

“Ela deixou cinco crianças pequenas. Foi uma época muito difícil. Minha família foi enormemente impactada… Sentir fome é sem dúvida um momento que você se questiona sobre sua própria dignidade, você sente o abandono do Estado na própria pele.”

Gizele atua na Frente Maré, uma das ações comunitárias das favelas cariocas no combate à fome durante e depois da pandemia do coronavírus. Infelizmente, a Frente, assim como as outras iniciativas emergenciais de moradores de favela em resposta à fome, não conta com nenhum tipo de apoio do poder público. Gizele finaliza, falando que a fome mostra como a violação de direitos e o desconhecimento da dignidade humana são processos comuns para um “determinado povo que, no caso, é sempre o mesmo a passar por estas situações: os favelados, negros, população do campo”. A jornalista relembra que, no Brasil, a fome tem cor e classe social.

É importante também lembrar que a fome também tem gênero: atinge desproporcionalmente mais as mulheres. Logo, não se pode esquecer que quando se fala de fome, deve-se pensar em políticas voltadas sobretudo para mulheres negras em situação de vulnerabilidade socioeconômica.

Cidadão de Papel 

A escritora Carolina Maria de Jesus, em Quarto de Despejo, é categórica ao afirmar: “Quem inventou a fome são os que comem”. A fome, que Carolina e os filhos sentem ao longo de todo o livro, é a protagonista (ou seria antagonista) do cotidiano relatado por ela em seus diários, publicado pela primeira vez em 1960. 

Garipo da fome, reportagem histórica de O Extra sobre o estado de fome da população brasileira nos últimos anos. Reprodução Extra
Garimpo da fome, reportagem histórica de O Extra sobre o estado de fome da população brasileira nos últimos anos. Reprodução: O Extra

Agora, mais de 60 anos após a denúncia da escritora, a dura realidade da fome estrutural retorna como sujeito político às manchetes dos principais veículos de imprensa do país. Em 29 de setembro de 2021, o jornal Extra publicou a matéria Garimpo contra a fome e estampou na capa a imagem de um caminhão, com ossos e restos de carne que são descartados por supermercado, sendo “distribuídos” às pessoas necessitadas, no bairro da Glória, na Zona Sul

Segundo o estudo da Rede Penssan, a fome crônica ocorre quando a disponibilidade de comida não é regular e está dividida em três níveis: leve (incerteza quanto ao acesso num futuro próximo), moderada (quantidade insuficiente de alimentos) e grave (privação do consumo).

A fome estrutural, grave ou crônica, é um estado de subnutrição de longa duração e constante. Nessa situação, muitas vezes se vive apenas para garantir a próxima refeição. Por ser permanente, o indivíduo não tem energia suficiente para a manutenção do seu organismo e para o desempenho de atividades cotidianas.

Portanto, ao se olhar para a fome, “é importante entender que cada número absoluto representa a vida de uma pessoa. Cada uma das mudanças em percentuais da insegurança alimentar—ainda que pareçam pequenas—significa, na prática, que milhões de pessoas exatamente agora estão convivendo cotidianamente com a fome”, ressalta o site Olhe Para a Fome.

Cartaz 'Osso R$4 o quilo. Osso é vendido, não é dado' em mercado de Santa Catarina. Reprodução redes sociais
Cartaz ‘Osso R$4 o quilo. Osso é vendido, não é dado’ em mercado de Santa Catarina. Reprodução: redes sociais

A fome ainda impulsiona de forma direta uma “economia da fome”. Durante a pandemia, supermercados brasileiros, com a estratégia de “baratear custos” e incentivar a compra, passaram a vender até mesmo ossadas e carcaças de animais, o que não era comum no país. 

“O osso é vendido e não dado”, informa o aviso no açougue de um supermercado em Santa Catarina.

O retorno do Brasil ao Mapa da Fome traz de volta a sensação de um país de cidadãos de papel, termo cunhado pelo jornalista Gilberto Dimenstein. Produzido nos primeiros anos da década de 1990, o livro apresenta um país de contrastes e desigualdades sociais enormes, apesar do Brasil ser uma das maiores economias do mundo. A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos e de todos os modernos códigos legais que regem o país, a obra mostra como o Brasil não consegue vencer a chaga da desigualdade social e a péssima distribuição de renda.

Luis Vander, 39 anos, escolhe suas peças e ajuda a organizar a distribuição. Em situação de rua, ele tem habitado as calçadas da Glória Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
Luis Vander, 39 anos, escolhe suas peças e ajuda a organizar a distribuição. Em situação de rua, ele tem habitado as calçadas da Glória. Foto: Domingos Peixoto/Agência O Globo

Se um Brasil sem fome era uma meta inalcançável em 1990, a saída do Mapa Mundial da Fome, em 2014, mostrou como é possível vencer através de políticas públicas. Entre 2004 e 2013, segundo o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, políticas públicas de erradicação da pobreza e da miséria foram criadas e reduziram a fome para menos da metade do índice inicial: de 9,5% para 4,2%.

É preciso que a insegurança alimentar seja aspecto central de qualquer governo a partir de 2023. Sendo assim, o RioOnWatch traz uma síntese das propostas do plano de governo de Lula e Bolsonaro sobre o enfrentamento da fome estrutural.

Combate à Fome: O Que Dizem os Planos de Governo dos Candidatos à Presidência

Movimento no último dia para o eleitor tirar o título pela primeira vez, pedir a transferência do documento para outro domicílio eleitoral ou fazer o recadastramento biométrico (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Movimento no último dia para o eleitor tirar o título pela primeira vez, pedir a transferência do documento para outro domicílio eleitoral ou fazer o recadastramento biométrico. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Lula (PT)

O plano de governo de Lula afirma que a população afetada pela fome tem prioridade nos compromissos assumidos pela legenda.  O Programa se compromete com a queda da inflação, o fortalecimento das estatais e o enfrentamento à pobreza e à fome. Destaca-se a proposta de salário mínimo com garantia de aumento acima da inflação todo ano e o pagamento do Bolsa Família no valor de R$600, com um valor extra de R$150 para cada criança de até seis anos. 

Para isso, o candidato afirma que vai combater a alta dos preços como tarefa prioritária. O ex-presidente aposta na produção do campo como forma de alcançar a segurança alimentar. Lula propõe que o Estado exerça um papel incisivo para a redução da pobreza e promete reconstruir e fortalecer programas sociais, prevendo a revogação do teto de gastos aprovado por Michel Temer (MDB). O Programa também cita dar apoio “à pequena e média propriedade agrícola, em especial à agricultura familiar” e que se compromete com a soberania alimentar.

Nesta eleição, Lula é candidato pela coligação formada pelo PT, PCdoB, PV, Solidariedade, PSOL, Rede, PSB, AGIR, Avante e PROS, mas, no segundo turno, conquistou novos apoios. Lula conta agora com 16 partidos, incluindo: PDT, Cidadania, PCB, PSTU, PCO e Unidade Popular. E, apesar da neutralidade a nível nacional, o PSDB-SP e a maioria dos diretórios estaduais do MDB declararam apoio a Lula no segundo turno.

Bolsonaro (PL)

O Presidente Jair Bolsonaro tenta a reeleição pela coligação formada por PL, PP e Republicanos. Nos últimos dias, o PSC e PTB anunciaram que também apoiam sua candidatura a presidente. Bolsonaro propõe a manutenção do Auxílio Brasil como uma das principais ações de combate à fome. Destaca a pandemia do coronavírus e a guerra da Ucrânia como fatores que limitaram o crescimento da economia brasileira durante sua gestão. 

Seu Programa ressalta que um segundo governo Bolsonaro substituirá o “Ciclo da Pobreza” por um “Ciclo da Prosperidade”. Isto é: “um modelo que produz e distribui riqueza com geração de empregos. Que aumenta os benefícios sociais para os mais vulneráveis”. No entanto, os dados e pesquisas mencionados acima demonstram o contrário dessa narrativa. Bolsonaro também afirma que irá “facilitar a abertura de novas empresas, reduzindo a burocracia, o que incentiva a capacitação das pessoas para conquistarem sua autonomia e independência financeira”. 

O plano ainda cita o Programa Alimenta Brasil, que tem a premissa de comprar alimentos produzidos pela agricultura familiar e distribui-los a pessoas em situação de vulnerabilidade e a grupos populacionais tradicionais, como indígenas e quilombolas.

Sobre a artista: Estevão Ribeiro é escritor, ilustrador e roteirista audiovisual. É autor da tirinha antirracista Rê Tinta, publicada no instagram @renatatinta.

*Pseudônimo


Apoie nossos esforços para fornecer apoio estratégico às favelas do Rio, incluindo o jornalismo hiperlocal, crítico, inovador e incansável do RioOnWatchdoe aqui.