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Maria Conga foi uma líder quilombola que protagonizou a luta contra a escravidão na cidade de Magé, Baixada Fluminense, no início do século XIX. É um exemplo de heroína da resistência à escravização que precisa ser relembrada e ter sua história preservada e defendida. Com este intuito, em novembro de 2021, no píer da Piedade, um ponto turístico em Magé, foi inaugurado um busto em homenagem a Maria Conga. Contudo, pouco mais de um ano depois, em 5 de fevereiro de 2023, o monumento foi pichado com uma suástica, um símbolo nazista. O criminoso ainda não foi identificado.
O crime nazista e racista perpetrado contra o busto de Maria Conga levou à organização de um protesto em frente ao seu monumento, em defesa da memória da líder congo-brasileira, reunindo cerca de 50 pessoas em um ato simbólico de “Coroação de Maria Conga”. Essa cerimônia concretizou, cerca de 200 anos depois, algo para o qual Maria Conga havia nascido e para o qual havia sido preparada por seus pais, mas que, graças ao seu sequestro e tráfico para o Brasil, nunca chegou a acontecer: ser coroada. Princesa africana, filha de um Rei de Congo do século XVIII, Maria Conga foi finalmente coroada e agora não é mais princesa: é rainha.
Para além da coroação, a mobilização teve o objetivo de exigir que o poder público assegure a restauração e proteção do monumento, investigue os responsáveis desse crime, evite futuros danos e pare de negligenciar e tratar com descaso as comunidades quilombolas de Magé. O município possui três quilombos reconhecidos pela Fundação Palmares. Além do próprio Quilombo Maria Conga, há o Quilombo do Feital e o Quilombo Quilombá.
Estiveram presentes no ato o Quilombo Maria Conga, o Quilombo do Feital, a Associação Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ), o Centro Espírita São Jorge Guerreiro, o Coletivo Guarani, o Fórum Climático de Magé, o Movimento Negro Unificado (MNU), a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMRJ), o Comitê Popular de Lutas de Magé, a Frente Estadual pelo Desencarceramento RJ, a Comissão de Igualdade Racial e Comissão de Direitos Humanos da OAB Magé-Guapimirim, a Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, além de representantes da Prefeitura de Magé, a mãedata (como chamam o mandato) da vereadora do Rio de Janeiro Thais Ferreira, e o Deputado Federal Henrique Vieira. O protesto contou também com a presença de moradores locais e simpatizantes da figura histórica e religiosa de Maria Conga.
A História de Vida da Líder Quilombola Congo-Mageense
Maria Conga, em vida, teve uma história de luta marcada pela libertação de africanos e afro-brasileiros escravizados no Brasil. Através de fugas em bandos, facilitadas por um túnel construído por ela ligando regiões escravistas à região onde ficava seu quilombo, ela concedeu aos negros escravizados de Magé a liberdade. Método de resgate, de certo modo, parecido com o utilizado por Harriet Tubman nos Estados Unidos.
Nascida no Congo em 1792, filha de um rei, foi trazida para a Bahia por volta de 1804. Aos 18 anos, foi vendida a um fazendeiro escravista de Magé. Após anos de luta, ela conseguiu sua alforria aos 35 anos de idade, quando fundou o quilombo. A figura da Maria Conga é fundamental para a história da cidade de Magé. Um dos organizadores do ato, Marcos Cesar Junior, professor e morador do Quilombo Maria Conga, falou da importância histórica da heroína congo-brasileira.
“Ela foi fundadora do Quilombo Maria Conga, localizado no primeiro distrito, nos arredores do Morro Maria Conga. É atribuída a ela a organização das fugas de pessoas escravizadas que eram desembarcadas de forma ilegal após a Lei Feijó [primeira lei a impedir a importação de pessoas escravizadas], na Praia de Piedade [em Magé], onde ficava a Praça do Leilão. No bairro da Piedade está localizado também o Quilombo do Feital, outro ponto de referência da luta contra a escravização. Nos contam os mais velhos que Maria Conga foi responsável pela construção de um túnel que ligava Piedade ao Morro do Bonfim, por onde as fugas aconteciam.” — Marcos Cesar Junior
Giselle Florentino, da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), falou durante o ato da necessidade da construção de uma nova perspectiva de debate não só sobre a formação dos quilombos, mas de como esses foram importantes na construção da própria Baixada Fluminense.
“Existe um debate que a Baixada Fluminense surgiu a partir do desenvolvimento agrícola da região e a gente quer recontar uma outra história a partir do ponto de vista do povo negro, do povo indígena e dos imigrantes. [A história] de que a fundação da Baixada Fluminense vem a partir de um complexo de quilombos chamado ‘Hidra de Iguaçu‘, que era comandado por mulheres pretas. O Quilombo Maria Conga resistiu durante 100 anos aos intentos da Guarda Real de Portugal e foi considerado um dos mais mais resistentes e combativos nos tempo da Coroa. É a partir dessa configuração social que vai se formar a Baixada Fluminense.” — Giselle Florentino
Maria Conga não só abrigava escravizados que conseguiam escapar da violência escravagista, ela também cuidava dos doentes, realizava partos e resolvia problemas da comunidade. Lutou até o fim de sua vida pelos que se tornaram seus filhos ao chegarem ao quilombo. Ela nunca foi capturada e morreu aos 90 anos, de causas naturais.
Ela, então, começou sua jornada como ancestral, tornando-se conhecida como Vovó Maria Conga, entidade espiritual cultuada na Umbanda, religião de matriz afro-brasileira. Para os adeptos dessa religião, além da importância histórica da figura de Maria Conga, como líder quilombola, existe ainda a importância espiritual e ancestral. Sendo assim, o ataque nazista e racista vai além da figura histórica, ressoa também como um caso de racismo religioso.
O Ato de Repúdio à Violência Nazista e Racista ao Busto de Maria Conga
A chamada para o ato “Coroação de Maria Conga” solicitava que os participantes levassem flores brancas. Elas foram utilizadas para fazer uma coroa, que foi posta em volta da cabeça do busto de Maria Conga, uma espécie de oferenda à heroína quilombola, mãe e avó de multidões, libertadora de legiões de negros escravizados, entidade espiritual de gerações de umbandistas.
Após essa intervenção, as pessoas se organizaram para realizarem falas. Todos os participantes demonstraram indignação com relação à violência à memória através do ataque ao busto de Maria Conga, além de reforçarem a necessidade de que esse crime seja apurado e os responsáveis, punidos. Anderson Ribeiro, advogado, defensor de Direitos Humanos na Baixada, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Magé e Guapimirim e integrante do Coletivo Guarani, enumerou os crimes e as respectivas penas, que podem ser atribuídos aos criminosos: “Os crimes são de incitação ao racismo, apologia ao nazismo e dano ao patrimônio público. A pena para o crime de dano ao patrimônio público é de 6 meses até 3 anos de detenção, e os crimes de incitação aos racismo e apologia ao nazismo são de 2 a 5 anos, podendo ser realizada a proibição do autor do crime de frequentar o local onde foi feito o vandalismo por 3 anos.”
Marcos Cesar explicou que “a violência fascista e racista existiu, a partir do momento em que eles fizeram o que fizeram… Eles marcaram suásticas nela toda, na testa, na bochecha, no lábio, nos dois seios. No dia, a gente viu e estava assim. Mesmo após a recuperação, as marcas ainda estão visíveis.”
Essas marcas nazistas que permanecem foram recorrentemente apontadas como motivo de preocupação de muitos dos participantes do evento. Apesar da Prefeitura de Magé já ter realizado o trabalho de recuperação do monumento, em alguns locais do busto, ainda é possível ver algumas marcas das agressões nazistas. Fabíola Nascimento, assessora da Vereadora Thaís Ferreira, enfatizou a necessidade de que a recuperação do busto possa ser plena, para que ele não vire, em suas palavras, um “Memorial ao Ódio”. O busto de Maria Conga, deve continuar servindo à “produção de memória afirmativa do povo quilombola no Brasil e não [sendo] um memorial ao ódio… porque enquanto as marcas das suásticas estiverem aparentes nesse busto… se não tiver intervenção dos poderes públicos, ele pode se transformar em um memorial ao ódio”.
Iasmine Alfradique, presidente do Quilombo Maria Conga, fez uma fala sobre a necessidade de que a organização seja para além do repúdio. Ela convidou os participantes do ato, desde os representantes de movimentos sociais, coletivos e poder público, a se mobilizarem em apoio à comunidade quilombola Maria Conga.
“Para mim, é muito importante que a gente tenha atos como esse, atos de história, atos de amor. É muito memorável, acho muito importante a fala da gente ter um museu, da gente construir a nossa história. Por isso, até, que o busto está aqui… É muito importante que a gente construa e vá à frente. É muito lindo [o ato de coroação], mas eu preciso que a gente saia dos monumentos que a gente tanto defende! Com muito respeito [aos presentes], que a gente vá para um ser humano que ainda respira! Porque se a gente não conseguir salvar o humano, a gente não vai salvar mais nada.” — Iasmine Alfradique
A fala de Iasmine reforçou que o ato era de repúdio, mas também focado em chamar a atenção de todos os presentes para a causa quilombola que, atualmente, ainda se vê deslegitimizada, violentada e sem amplo apoio político e social. A coroação de Maria Conga em Magé nos convida à reflexão e à ação sobre a importância da preservação da cultura, memória e história do povo negro e de suas tecnologias de resistência.
O movimento que se iniciou em resposta a um ato de violência está evoluindo em direção à construção de um movimento, fruto da força e da coesão do povo quilombola, do movimento negro e dos coletivos e praticantes de religiões de matriz afro-brasileira. É fundamental destacar a urgência de ações mais efetivas por parte do poder público para preservar e valorizar este patrimônio cultural, histórico e espiritual que a figura da heroína nacional Maria Conga tem para Magé, para a Baixada Fluminense e para o Brasil.
Sobre a autora: Bárbara Dias, cria de Bangu, possui licenciatura em Ciências Biológicas, mestrado em Educação Ambiental e atua como professora da rede pública desde 2006. É fotojornalista e trabalha também com fotografia documental. É comunicadora popular formada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e co-fundadora do Coletivo Fotoguerrilha.