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Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre a questão da água e a população LGBTQIAP+ nas favelas cariocas e na Baixada Fluminense.
A Greve Global pelo Clima é uma mobilização internacional que ocorre anualmente, com o intuito de alertar para as mudanças climáticas e seus impactos sobre as populações mais vulneráveis. No dia 3 de março, a ação carioca “Greve Global pelo Clima: Chega de Enchentes!“ integrante do evento foi realizada na forma de uma caminhada desde o Jacarezinho até Manguinhos, ambas favelas da Zona Norte do Rio, com o objetivo de evidenciar o racismo ambiental nas favelas, que sofrem costumeiramente com enchentes e deslizamentos.
Essa decisão foi tomada durante uma reunião da Coalizão Pelo Clima RJ junto do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS), a FASE, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), o Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz (Asfoc), a Rede Favela Sustentável (RFS) e a Rede de Vigilância Popular em Saneamento e Saúde.
Cerca de 70 pessoas acompanharam o ato, além das instituições acima. Participaram da Greve Global pelo Clima moradores, lideranças comunitárias, movimentos organizados dos territórios como o Movimento Popular de Favelas, Portal Favelas, Movimento Favelação, Conselho Comunitário de Manguinhos, Conselho Gestor Intersetorial da Saúde/Manguinhos (CGI), Organização Mulheres de Atitude (OMA), Associação de Moradores Samora Machel, Associação de Moradores Nelson Mandela, Associação de Moradores Parque Carlos Chagas, Associação dos Moradores da Nova Embratel e parlamentares, como a Vereadora Monica Cunha, a assessoria da Vereadora Thais Ferreira, a Deputada Estadual Marina do MST; e os Deputados Federais Tarcísio Motta e Henrique Vieira.
O ato foi uma caminhada da quadra do G.R.E.S. Unidos do Jacarezinho até a estação de trem de Manguinhos. Os manifestantes percorreram algumas das localidades mais afetadas pelas enchentes causadas pelas chuvas deste início de 2023. Na primeira semana de fevereiro, choveu mais do que o esperado para todo o mês, produzindo dramas e tragédias que afetaram especialmente pessoas que vivem nos territórios de favela, os mais expostos aos efeitos devastadores provocados pela negligência do Estado frente às mudanças climáticas.
Durante a mobilização, foi entregue aos moradores a Carta-Manifesto às Comunidades e à Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. O objetivo do documento é chamar a atenção para a gravidade das mudanças climáticas globais e suas consequências para as favelas. Além disso, visa incidir politicamente e exigir o compromisso efetivo da Prefeitura com ações de adaptação e proteção à vida e de enfrentamento ao racismo ambiental nas favelas, pois, os mais afetados pelos desastres climáticos na cidade do Rio de Janeiro têm CEP e cor. Com a entrega da Carta-Manifesto, os organizadores buscarão uma audiência pública com a Secretaria de Ambiente e Clima da Prefeitura do Rio de Janeiro, hoje comandada pela Tainá de Paula.
Favelados e Pretos: os Mais Afetados pelos Desastres Climáticos
Ainda na concentração do ato, na quadra da escola de samba do Jacarezinho, Rumba Gabriel, liderança local do Movimento Popular de Favelas e morador do Jacarezinho, declarou:
“Hoje eu estou aqui com essa mobilização interessantíssima. Eu diria que seria a primeira de uma sequência, que nós vamos insistir, porque a gente está cansado dessa história dos problemas serem recorrentes. A gente já sofre com isso há muito tempo. Para você ter ideia, a última obra vultosa, voltada para o rio [que corta] o Jacarezinho, foi na década de 1980… Então, essas tragédias são recorrentes. A gente sabe que o período de chuva vai chegar e vai acontecer alguma coisa de ruim… Acho que está na hora de dar um basta e me parece que nós estamos demonstrando isso a partir desse ato hoje. A gente quer obras estruturais, não obras básicas… Por isso, eu acho que vai ser importante esse nosso grito. Nós temos aqui uma cidade desintegrada [em crítica ao projeto Cidade Integrada], que não olha para esse lado… Já passa de um ano [de instauração do programa] e está tudo no mesmo lugar.”
Ainda na quadra, algumas falas foram realizadas por moradores afetados pelas enchentes, lideranças comunitárias, representantes de instituições e parlamentares que acompanhavam o ato.
A caminhada teve início às 10 horas da manhã e cortou algumas ruas do Jacarezinho. Durante o ato, a carta-manifesto ia sendo entregue e palavras de ordem eram gritadas pelos participantes da mobilização. Era perceptível a identificação dos moradores com as demandas reivindicadas. Alguns pegavam a carta e diziam “É isso aí!”. Outros cantavam juntos. Chegando no Rio Jacarezinho, uma moradora relatou para os presentes a dinâmica de alagamentos anual do território.
“Sou Carmem Camerino, moradora da beira da linha, ali perto da estação de trem, e o que acontece aqui é o de sempre. Todo ano, tem as conhecidas chuvas de verão e o rio transborda, a ponto de chegar a mais de 1,5m de altura dentro das casas das pessoas. Infelizmente, como eu moro na beira da linha, toda vez que o rio transborda eu fico presa [em casa]. Como eu tenho a parte de cima da casa, eu fico lá com meus cães. Quando as águas baixam, a gente vê o desastre das pessoas que perderam seus móveis, pessoas limpando e tirando as camadas de lama de dentro de casa. Tem muitos moradores que compram os seus móveis anualmente, por conta das enchentes. Nessa última enchente de fevereiro, antes do carnaval, nas casas mais baixas, eu vi moradores nadando nas águas para poder escapar das enchentes. É isso que todo ano acontece. A gente já denunciou, já filmou e agora com as redes sociais, com a tecnologia, a gente já postou, mas parece que ninguém ouve, que ninguém vê ou que ninguém dá importância.” — Carmem Camerino
No Largo da Concórdia, no Jacarezinho, um dos locais por onde a caminhada passou, as lideranças do ato receberam denúncias dos moradores de que uma casa havia afundado e sido interditada pela Defesa Civil. No entanto, outras casas ao lado da casa condenada não haviam sequer sido vistoriadas. Uma equipe liderada por representantes da Fiocruz e parlamentares foi até o local verificar a situação, e de fato, uma casa estava completamente fora do prumo, escorada apenas por vigas de madeira, improvisadas pelos moradores.
Após essa vistoria na caminhada da Greve Global pelo Clima, o grupo seguiu até Manguinhos, atravessando pela linha de trem e beirando o Rio Faria-Timbó, onde viu uma sede do Projeto Cidade Integrada e máquinas de dragagem paradas ao lado do rio. Os moradores afirmaram que essas máquinas “não fazem nada”, ficando apenas paradas.
Chegando a Manguinhos, numerosos moradores resolveram compartilhar seus relatos de perda, do impacto do clima e do abandono do Estado em suas vidas. Uma das falas mais impressionantes foi realizada por Maria Aparecida, que disse que, no mês de fevereiro, passou mais dias fora de casa do que em sua residência, por acreditar que corria risco de vida ao permanecer em seu lar, pois a edificação está com rachaduras.
“A gente tem que viver com medo. Às vezes eu tenho que ficar debaixo do viaduto com meu filho, esperando para a gente poder entrar dentro de casa. Tenho que ficar na casa dos outros. Se não fosse minha comadre, eu não sei o que seria de mim! Minha comadre mora no Mandela. A gente vive correndo para lá! Esse mês de fevereiro, a gente ficou mais na casa dela do que na minha. A casa da vizinha é embaixo da minha e enche. A casa dela está condenada. Condenaram a dela e não condenaram a minha? A minha casa está toda rachada! Eu moro lá com meu filho. Às vezes, ele não tem escola e fica em casa, aí a vizinha fica de olho. Eu já falei para ele que, se tiver que correr corre… Se der tempo de correr, né.” — Maria Aparecida
Na mesma localidade em que mora Maria Aparecida, havia muitas casas abandonadas e marcas de enchentes nas paredes. Algumas ainda com móveis estragados pelas águas, abandonados pelos ex-moradores que fugiram em meio à emergência climática do último fevereiro.
Conversamos com outra moradora, Maria Emília, que vive há muitos anos em Manguinhos. Ela relatou que, durante as últimas chuvas intensas em fevereiro, como em várias outras ocasiões, a Rua São José, onde mora, ficou intransitável.
“Não dava passagem para ninguém, porque entrou quase dois metros de água. Aqui que é alto, não enche porque tem uma escada, mas nessa parte aqui de baixo enche. As pessoas saíram nadando ou carregadas. Às vezes aparece uns anjos bons que ajudam.” — Maria Emília
A Greve Global pelo Clima chegou ao fim do percurso na estação de trem de Manguinhos, onde aconteceram falas de lideranças comunitárias e de organizadores do ato. A partir de relatos de desespero e tristeza, entre cenas de destruição de casas, de rios completamente assoreados e poluídos, ficou evidente para todos os presentes que o combate às mudanças climáticas no Rio de Janeiro só será eficaz se for pautado a partir das favelas, para as favelas e pelas favelas e combinado a um intensivo investimento público nesses territórios. Só na cidade do Rio de Janeiro, são milhões de pessoas vulneráveis climaticamente, que estão sob risco de vida, que veem seus bens, os frutos de seu trabalho, às vezes de uma vida inteira, sendo destruídos em questão de minutos. Um antirracismo ambiental, calcado nas favelas, é urgente para a realização do direito à favela e para a garantia do direito à cidade em meio à emergência climática.
Sobre a autora: Bárbara Dias, cria de Bangu, possui licenciatura em Ciências Biológicas, mestrado em Educação Ambiental e atua como professora da rede pública desde 2006. É fotojornalista e trabalha também com fotografia documental. É comunicadora popular formada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e co-fundadora do Coletivo Fotoguerrilha.