Centro de Cultura Negra Fruta do Pé: Quilombo do Samba na Zona Oeste Carioca Preserva a Identidade e Memória Negra [IMAGENS]

Arte original por Raquel Batista
Arte original por Raquel Batista

Click Here for English

Os colonizadores portugueses realizaram a destruição da vida de uma pessoa negra de diversas formas, entre elas, a destruição cultural, a retirada das crenças, valores, costumes e batuques. Quando não mataram, embranqueceram e distorceram. Até os dias de hoje nos deixam a dúvida de quem somos, por que somos, de onde viemos e para onde vamos. Quando tomou consciência disso, Breno Batista, 24, morador da Zona Oeste do Rio de Janeiro, sentiu a urgência em criar o Centro de Cultura Negra (C.C.N.) Fruta do Pé, por meio do que estava no seu cotidiano: o samba. Sua casa sempre foi movimentada, o samba chegou na sua vida por influência da sua família. Em especial, seu padrinho Marcelo, que escutava muito samba e tocava o cavaco.

“Eu era bem novinho e já fingia estar tocando. Lembro que tinha três DVDs que ele assistia muito: Jorge AragãoDa Noite pro Dia, Fundo de QuintalAo Vivo no Olimpo e Arlindo CruzPagode do Arlindo. No meu aniversário de oito ou nove anos, fui presenteado com uma quantidade de dinheiro dos meus familiares e meu padrinho me levou para comprar um instrumento. Cheguei na loja sem saber o que compraria. Escolhi o instrumento que eu assistia no DVD do Fundo de Quintal, o tantã, instrumento que o integrante do grupo [chamado] Sereno [criou e] tocava.” — Breno Batista

Breno aprendeu a tocar instrumentos com seus primos, tios e amigos e também em vídeo-aulas no YouTube. Sempre por diversão, em família. A primeira vez que teve retorno financeiro foi em uma festa de aniversário de um familiar, em que foi remunerado para tocar. Neste momento, ele também começou a assistir alguns documentários sobre o samba e o povo negro. A partir daí, teve a ideia de criar um projeto de resgate da cultura negra através do samba.

“Eu pensava na história da formação do samba do Rio de Janeiro, [em como] organizações se formaram por meio de encontros de pessoas com o mesmo ideal. Eu precisava promover esse encontro de alguma forma.” — Breno Batista

A roda de samba começou no final de 2016, início de 2017. Sua primeira edição foi no calçadão de Campo Grande, na Rua Barcelos Domingos. Inicialmente, o nome do evento era Samba da Antiga. Breno e sua família não esperavam a proporção que tomou. Muitas pessoas frequentaram, inclusive vários sambistas mais velhos, que ele admirava. A partir de 2019, levaram a roda para o seu quintal, onde atualmente é a sede do Centro de Cultura Negra Fruta do Pé, na Avenida Cesário de Melo, 6.300, no bairro de Inhoaíba.

Roda de samba no Fruta do Pé. Foto: Divulgação
Roda de samba no Fruta do Pé. Foto: Divulgação

Atividades do Quilombo do Samba

A Roda de Samba Fruta do Pé acontece todo terceiro sábado do mês. A maior parte do público é composta de pessoas negras, o que faz jus ao propósito do Centro Cultural Negro. Cada edição recebe um convidado ou tema diferente. Já receberam grandes compositores e sambistas, como Cleber Augusto, Marquinho PQD, Zé Roberto, Zé Luiz do Império, Ph Mocidade, Áurea Martins, Andréia Caffé, Zeca do Trombone, Marcelinho Moreira, Jorge Nei, entre outros. Quem faz a abertura da roda são as Sementes do Fruta, grupo composto por alunos e músicos formados no Fruta do Pé.

Além disso, o C.C.N. oferece aulas de percussão, samba no pé e capoeira. De quinze em quinze dias, ocorre a Roda de Conversa Reflexões Pretas, com o objetivo de reunir pessoas negras que estejam interessadas em se aprofundar na busca da autonomia cultural, política e econômica. Ao se apresentarem e falarem o porquê de estarem naquela roda, os presentes têm respostas semelhantes: ”acolhimento, pertencimento, quilombo, identificação, resgate”. Segundo participantes, a sensação é de estar em um lugar seguro, onde é possível tirar toda a armadura que o racismo nos obriga a vestir diariamente.

Professor Breno e professora Jacke com alguns dos seus alunos de percussão. Foto: Divulgação
Professor Breno e professora Jacke com alguns dos seus alunos de percussão. Foto: Divulgação

Já tiveram outras atividades, como oficinas de Bonecas Abayomi, um jantar Sankofa Mhuri, uma culinária inspirada na diversidade Africana, o Cine Samba Clube, uma sessão de cinema em que foram exibidos dois documentários: Tempo Ê, que fala sobre a história do compositor Zé Luiz do Império, e Samba do Trem, uma viagem no histórico samba do trem com encontros memoráveis, e ações em escolas públicas da região.

Oficina de boneca Abayomi. Foto: Divulgação
Oficina de boneca Abayomi. Foto: Divulgação

Para Raquel Batista, cria de Campo Grande, artista visual, produtora cultural, ilustradora e fotógrafa, prima do Breno, que atua no Fruta do Pé articulando diversas atividades:

“A atividade que mais gostei de ter participado, foi uma apresentação que fizemos sobre o Mulherismo Africana, foi um encontro muito bonito e íntimo. Falamos sobre o papel da mulher na perspectiva africana, homenageamos as mulheres da nossa família. Em seguida, uma professora que estava presente neste dia, nos chamou para falarmos sobre isso na escola em que ela trabalha. Preparei uma aula pensada para crianças. Expliquei o matriarcado para crianças de dez anos e elas tiveram uma recepção muito positiva. Foi muito maneira essa troca! Principalmente por ter me aprofundado mais no tema [para poder ensinar aos pequenos].”

Raquel Batista em uma atividade de desenho com as crianças. Foto: Divulgação
Raquel Batista em uma atividade de desenho com as crianças. Foto: Divulgação

Origem do Nome e Inspirações para o Projeto

“Colocamos Fruta do Pé, por causa da música Oitava Cor, de Luiz Carlos da Vila [com Sombra e Sombrinha]. Gostava muito das comparações que ele fazia nas músicas dele. E porque aqui em casa temos árvores. Um dia eu e meu irmão Ramon estávamos no quintal pegando acerola. A música [‘Mais, é muito mais, que o calor de uma fogueira, que os vendavais, que abalam as cordilheiras, pois entre nós o amor não é de brincadeira, viu? É ter à mão, fruta do pé do fundo de quintal’] me deu um estalo e ficou: Fruta do .” — Breno Batista

Oitava Cor foi gravada pelo Grupo Fundo de Quintal, outra inspiração para o nascimento do projeto.

“O que o Fundo de Quintal fez no Cacique de Ramos, foi um movimento de ascensão para vários artistas negros e de colocar o samba na grande mídia do momento. Eles conseguiram fazer uma galera mais jovem buscar um espaço de lazer com música ancestral. Então, foi uma das paradas que me inspirei para fazermos aqui.” — Breno Batista

Um trecho da música Viver, de Antônio Candeia Filho, diz: ”Enquanto se luta, se samba também”. Candeia defendia a ideia de que as pessoas negras deveriam achar a solução dos seus problemas através das suas tradições. Ao ser questionado sobre uma das maiores dificuldades em manter o projeto, Breno respondeu que é justamente a falta de compreensão das pessoas sobre o que dizia Candeia e a consequente dificuldade que têm em ajudar na construção desse projeto de resgate da cultura negra.

Aula de percussão para as crianças. Foto: Divulgação
Aula de percussão para as crianças. Foto: Divulgação

A Equipe Fruta do Pé

Ao contrário de uma perspectiva mercadológica, que visa uma lógica individualista, uma pessoa, uma comunidade não se constrói e nem se mantém sozinha. Assim como o plantio e a colheita, o Fruta é um processo coletivo, conduzido por cinco produtores: Alexandro Pereira, Carla Batista, Kawan Lopes, Luciano Francisco e Rodrigo Wellerson.

“Eu vejo o Fruta como um lugar de pertencimento enquanto jovem preto, de impulsionar e valorizar a população negra do território da Zona Oeste. É sempre um privilégio estar fortalecendo o Quilombo do Samba.” — Kawan Lopes

O Fruta do Pé gera renda para mais de 30 pessoas: expositores, segurança, barman, produção, músicos, alimentação, professores das aulas, entre outros.

As Matriarcas do Samba

É extremamente importante visibilizar a participação das mulheres negras na construção do samba. Duas mulheres essenciais para o funcionamento do Fruta do Pé são Marly Batista e Carla Batista, avó e mãe do Breno. Tudo que ocorre no projeto conta com o envolvimento delas.

Tia Carla, Vó Marly e a sambista Aurea Martins. Foto: Divulgação
Tia Carla, Vó Marly e a sambista Aurea Martins. Foto: Divulgação

Frequentemente, Marly Batista, mais conhecida como Vó Marly, prepara o seu famoso Angu, para alimentar quem estiver no samba em sua casa. Ela apoia fielmente o projeto e não se incomoda com a batucada. Ela nos faz lembrar das Tias Baianas, que trouxeram o samba ao virem da Bahia para o Rio de Janeiro, e que permitiam que o encontro dos sambistas, candomblecistas e capoeiristas acontecessem nas suas casas. Quando alguém se queixa de alguma dor ou mal estar, Vó Marly utiliza seus saberes medicinais ancestrais através dos seus infalíveis chás. Ela diz que adora ver a casa sempre cheia.

”Sinto maior orgulho e amo o projeto dele, as pessoas que frequentam minha casa, os professores. Mesmo quando eu não tiver mais aqui, quero que eles continuem com o projeto!” —  Vó Marly

Tal como as Baianas, Carla é chamada de tia por muitas pessoas que frequentam o projeto, um título de respeito. Ela faz parte da produção e participa de todas as atividades, dedicando grande parte de seu tempo e energia para acolher, com muito amor, as pessoas que se interessam por esse quilombo do samba.

‘’Eu sinto um misto de gratidão e responsabilidade sobre eles. Fico muito feliz por essa demonstração de carinho. Muitas vezes me pego aconselhando e cuidando de todos eles!’’ — Tia Carla

Um Caminho em Afroconstrução

Um dos objetivos do projeto é a criação de uma escola de samba, que começará do zero. Será um projeto coletivo para o coletivo, com base no reconhecimento de que o samba é capaz de reconstituir a humanidade das pessoas negras, gerar empregos, politizar, educar, formar famílias e muito mais. Os membros do C.C.N Fruta do Pé fortalecem a identidade e a memória negra a partir do samba, o maior movimento cultural do país.

Bandeiras representando Dona Ivone Lara, Fruta do Pé e Candeia. Foto: Divulgação
Bandeiras representando Dona Ivone Lara, Fruta do Pé e Candeia. Foto: Divulgação

Sobre a autora: Larissa Nascimento é pesquisadora, estudante de jornalismo e escritora, mulher negra, cria da favela do Jardim Nordeste e moradora da Zona Leste de São Paulo.

Sobre a artista: Raquel Batista é artista visual e trabalha como fotógrafa e ilustradora. É estudante na Escola de Belas Artes da UFRJ, mulher negra e moradora da Zona Oeste do Rio.


Apoie nossos esforços para fornecer apoio estratégico às favelas do Rio, incluindo o jornalismo hiperlocal, crítico, inovador e incansável do RioOnWatchdoe aqui.