Projeto Ẹbí Oferece Educação Afrorreferenciada, com Suporte Educacional e Lúdico, para Crianças, Mães e Pais de Favelas e Periferias

Atividade de contação de histórias na Rocinha, na festa do Dia das Crianças no ano de 2021. Foto: Bárbara Dias
Atividade de contação de histórias na Rocinha, na festa do Dia das Crianças em 2021. Foto: Bárbara Dias

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As Mães de Cria e a Pandemia do Coronavírus

No último dia cinco de maio, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o fim da emergência global da Covid-19. No entanto, mesmo após mais de três anos, ainda são visíveis os impactos da pandemia na rotina de ensino-aprendizagem de crianças e adolescentes. Na cidade do Rio de Janeiro, um estudo coordenado por pesquisadores da UFRJ e da Durham University, do Reino Unido, alertou que crianças pobres aprenderam quase a metade do conteúdo esperado durante o ensino remoto no período da pandemia.

Em 2020, o jornal comunitário Fala Roça divulgou que, segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a Rocinha chegou a liderar o número de casos de Covid-19 em favelas do Rio. Junto a isso, veio o impacto da pandemia entre os moradores, como, por exemplo, o aumento do desemprego.

Foi nesse período de adversidade que a pedagoga e contadora de histórias negras, Carla Souza, cria da Rocinha, criou o projeto inicialmente chamado Mãe de Cria. Na época, a iniciativa se concretizou na forma de um grupo em um aplicativo de mensagens, oferecendo uma rede de acolhimento e orientações pedagógicas para lidar com os pequenos confinados em casa. 

“O Mãe de Cria é um projeto que nasceu em meio a uma adversidade mundial: a pandemia do coronavírus. Estávamos todos atônitos diante do inimigo invisível. Foram longos dois anos dedicados a levar suporte educacional e lúdico para famílias em vulnerabilidade social. Pensando nos crias das favelas, periferias, subúrbios e quebradas do Brasil, construímos uma rede de afeto (principalmente) e de educação afrorreferenciada. Porém, a mudança faz parte da dinâmica da vida e de toda sua natureza.” — Carla Souza

Carla Souza em uma contação de história online, em uma live sobre o livro Amoras, de Emicida, durante a pandemia, ainda enquanto projeto Mãe de Cria, em 2020. Foto: Bárbara Dias
Carla Souza em uma contação de história online, em uma live sobre o livro Amoras, de Emicida, durante a pandemia, ainda enquanto projeto Mãe de Cria, em 2020. Foto: Bárbara Dias

Carla começou oferecendo a possibilidade de fazer atividades em casa, já que o projeto nasceu com as demandas da pandemia. Entre 2020 e 2022, criava atividades com sucata para que as famílias replicassem, sempre baseadas na literatura afro-brasileira e africana, além de produzir vídeos de contação de histórias de literatura negra infanto-juvenil. Carla chamou o projeto de Mãe de Cria, porque, como explicou, é “’mãe’ baseado no perfil da maioria de famílias em vulnerabilidade no Brasil, que têm mulheres negras chefiando lares, e ‘cria’ porque vem de uma expressão comum utilizada em favelas e periferias para designar pessoas que nasceram e foram criadas nestes locais”.

O grupo de mensagens para amigas e amigos virou um perfil nas redes sociais. Com o retorno aos espaços coletivos, o Mãe de Cria saiu das telas e ganhou as ruas, através de palestras em escolas, favelas e ONGs. Depois que se tornou um projeto físico, expandiu ainda mais o seu escopo e beneficiou crianças, majoritariamente pretas, em todo o estado do Rio de Janeiro. Durante esse trajeto, Carla sempre manteve os crias das favelas e quebradas em seu foco, seja através da rede de afeto que se estabeleceu ou da educação afrorreferenciada, métodos da iniciativa. O Mãe de Cria ensinava suas crianças a partir do protagonismo preto, de narrativas que partem das potencialidades do povo africano, de dentro e fora do continente-mãe.

Projeto Ẹbí em contação de histórias e atividades afrorreferenciadas na Escola Municipal Souza da Silveira em Cavalcanti, Zona Norte do Rio de Janeiro, no ano de 2022. Foto: Bárbara Dias
Projeto Ẹbí em contação de histórias e atividades afrorreferenciadas na Escola Municipal Souza da Silveira em Cavalcanti, Zona Norte do Rio de Janeiro, em 2022. Foto: Bárbara Dias

Foram promovidas rodas de contação de histórias, oficinas e consultorias pedagógicas para mães pretas, influenciadas pela filosofia africana do Sankofa—retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. Como explicou Carla, o projeto tem uma perspectiva afrorreferenciada, que “visa auxiliar as famílias a se tornarem mais autônomas e, ao mesmo tempo, certas de que somos uma comunidade e que, como comunidade, aprenderemos juntos o caminho de volta para nossa Terra Mãe.”

Carla contou com a contribuição de sua amiga, a psicóloga Adilsilena Braz, conhecida como Lena, que começou a dar suporte no Mãe de Cria pela internet, através de lives. Lena comenta:

“Minha função era pensar e separar material. Depois passou para o operacional de contar histórias [ao lado] da Carla, para auxiliar e mediar, e também para a elaboração das atividades: o que a gente ia oferecer para as crianças, como a gente ia abordar, com que material… fui sendo parceira mesmo e sempre com olharzinho psicológico para contribuir com o projeto.”

Projeto Ẹbí: ‘É Preciso uma Aldeia Inteira para Criar uma Criança’

Em 2022, o Mãe de Cria mudou de nome e passou a ser Projeto Ẹbí. A mudança se deu porque a palavra mãe pesa exclusivamente sobre as mulheres, colocando só sobre elas a responsabilidade de educar. A pedagoga, então, decidiu escolher um nome que refletisse a realidade de que crianças são responsabilidade da família inteira e assim surgiu o projeto Ẹbí. Proveniente do Yorùbá, língua da família linguística nígero-congolesa, um dos idiomas de maior influência no português brasileiro, Ẹbí significa “família”. No entanto, não no sentido ocidental do termo. Ẹbí incorpora também uma ideia de comunidade, de unidade de um povo.

Lançamento da nova identidade visual do Projeto Ẹbí. Foto: Divulgação
Lançamento da nova identidade visual do Projeto Ẹbí. Foto: Divulgação

Nesse sentido, Carla acredita que a educação de uma criança é a mais linda e importante missão de uma comunidade, de todo o Ẹbí e não só da Mãe do Cria. A professora e contadora de histórias resumiu: “Por isso, o Projeto Ẹbí tem como lema o provérbio africano, que diz: ‘É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança'”.

“Ao sair da pandemia essa coisa de fazer atividades virtuais perdeu um pouco o sentido com a volta aos espaços coletivos. O perfil perdeu um pouco a função inicial, mas os propósitos ficaram mais definidos… A natureza é sem dúvida a maior escola que temos e não teria como ela não estar presente na ‘nova cara’ do projeto. A Mãe África também tem sido minha bússola norteadora nesta busca por uma educação cada vez mais afrorreferenciada. Para finalizar, não poderia deixar a beleza de se ensinar em roda, lado a lado. Este conceito está representado pelos elementos circulares e arredondados presentes em nossa nova identidade… O círculo não exclui, tem como característica a integração, a horizontalidade, a ligação… Assim renasce o Projeto Ẹbí. Afirmo ser um renascimento, porque ainda somos Mãe de Cria na essência. Contudo, pela dinâmica que a natureza impõe, foi preciso rebatizar este propósito de vida e educação.” — Carla Souza

Projeto Ẹbí, no ano de 2022, em atividade de consultoria afrorreferenciada e contação de histórias realizada na casa de Cassia Divino. Na foto, Cassia e a filha Luiza, à esquerda, com a amiga Milana e a filha Liz. Foto: Bárbara Dias
Projeto Ẹbí, no ano de 2022, em atividade de consultoria afrorreferenciada e contação de histórias realizada na casa de Cassia Divino. Na foto, Cassia e a filha Luiza, à esquerda, com a amiga Milana e a filha Liz. Foto: Bárbara Dias

Na rede social do projeto, Carla compartilhou sobre a escolha das cores da nova identidade, como forma de reconhecer sua própria identidade física e espiritual. Tais cores, como o verde musgo, o amarelo mais escuro e o marrom, fazem referência a uma divindade muito antiga e pouco conhecida: Onilé.

“Onilé, a Primeira Divindade da Terra, segundo a mitologia Yorubá, é uma divindade feminina relacionada aos aspectos essenciais da natureza, a tudo que se relaciona à apropriação da natureza pelo homem, o que inclui a agricultura, a caça, a pesca e a própria fertilidade. Tudo começa com Onilé, a Terra-Mãe, tanto na vida como na morte. Onilé também foi chamada de Ilê, a casa, o planeta. Olódùmarè, pai da Divindade, disse que cada um que habitava a Terra pagasse tributo a ela, pois era a mãe de todos, o abrigo, a casa.” — Carla Souza

Cassia Divino, historiadora e mãe participante do projeto Ẹbí com a filha Luiza, comenta como o projeto impacta crianças pretas, a diferença que poderia ter feito na sua própria vida escolar, e compartilha a importância do Ẹbí na educação de sua filha. Ela comenta que, quando criança, não teve contato com histórias afrorreferenciadas e internalizou, por muito tempo, o racismo que recebia das outras crianças na escola.

“O Projeto Ẹbí da Carla Souza é um projeto que acende o solo das nossas crianças, né? Principalmente de crianças pretas, né? A gente sabe que temos uma população majoritariamente preta no Brasil. No Rio de Janeiro, então, nem se fala! E a gente vê o quanto as nossas crianças sofrem dentro das escolas, né? Principalmente crianças pretas… Essas primeiras experiências, esse primeiro contato com o coletivo, com a sociedade, é dentro de uma sala de aula… E esse espaço escolar muitas vezes é traumático pra essa criança… Eu estudei num colégio particular… com poucas crianças pretas. Eu me sentia muito hostilizada e, na verdade, eu era. Eu me lembro que, sempre quando o assunto era escravidão, por exemplo, eu morria de vergonha. Como eu era a única preta retinta dentro da sala de aula, todo mundo olhava pra mim… E, daí, com a criação que eu tenho dado para Luiza, eu sempre trago ela.” —  Cassia Divino

A historiadora entende que o projeto Ẹbí fornece ferramentas para as crianças e adolescentes enfrentarem o racismo, muito presente em suas rotinas, de diversas formas. É exatamente por isso que ela faz questão de proporcionar para Luiza as muitas atividades oferecidas pelo projeto. Cassia elenca inúmeros impactos positivos no comportamento e no desenvolvimento da filha após a experiência de pedagogia afrorreferenciada e contação de histórias do Ẹbí. Segundo ela, a menina é outra depois da participação no projeto de Carla.

“A valorização da cultura negra dentro da infância de forma lúdica, articulada, muito bem pensada, muito personalizada… Carla estudou a idade da Luiza… ela já trabalha na educação há muito tempo, então, a gente foi tendo uma conversa sobre o que a Luiza mais gosta de fazer, quais suas atividades… A partir dessas informações, Carla montou esse projeto personalizado, de acordo com a idade da Luiza. Isso foi um diferencial muito grande… A gente fez várias atividades propostas, atividades lúdicas mesmo, pra criança se sujar, pra ela ter liberdade, pra ajudar no desenvolvimento cognitivo, motor e tudo… Daí, a gente percebeu que a Luiza era uma criança que gostava de brincadeiras de concentração… Ela adora brincadeiras com água, essas que exigem concentração e coordenação motora. A gente ficou muito surpreendida com tudo que essas atividades acabaram desenvolvendo nela… A gente percebeu que realmente a Luiza é outra depois [do projeto Ẹbí]… Percebi que essas brincadeiras de concentração deixavam ela mais tranquila e ela ficava realmente bastante tempo naquela atividade… Têm músicas que estão na memória dela até hoje, músicas africanas que contam a nossa história, nossa ancestralidade, sabe?” —  Cassia Divino

Projeto Ẹbí de contação de histórias realizou dia de atividades afrorreferenciadas e piquenique com crianças da Rocinha, no Parque da Cidade, no bairro da Gávea, Zona Sul da cidade, bem ao lado da favela, em 2022. Foto: Bárbara Dias
Projeto Ẹbí de contação de histórias realizou dia de atividades afrorreferenciadas e piquenique com crianças da Rocinha, no Parque da Cidade, no bairro da Gávea, Zona Sul da cidade, bem ao lado da favela, em 2022. Foto: Bárbara Dias

Cassia finaliza sua fala recomendando o projeto para outras crianças negras e atestando que representatividade importa. Os efeitos dessa experiência aforrreferenciada na infância são incríveis e ela vê como algo muito positivo que o projeto se expanda e possa atingir um público maior. Ela ressalta que o trabalho do projeto Ẹbí se enquadra na Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História da África e Afro-brasileira. Portanto, o que o Ẹbí faz é lei e deveria ser política pública nas escolas, praças e parques públicos há pelo menos 20 anos.

“[O Projeto Ẹbí é] representatividade, fortalecimento e vivência, e tudo isso é importante pra criança, sabe? Isso faz muita diferença pra gente. Eu indico, assim, de olho fechado… fico muito feliz da Carla estar conseguindo dar prosseguimento a esse projeto de outras formas, em outros lugares, porque a gente precisa realmente fazer isso, se a gente quer transformação… O trabalho que ela tem desenvolvido com outras famílias e em escolas tem sido maravilhoso! É realmente um trabalho que se enquadra na Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de História da África e Afro-brasileira dentro das escolas. Isso se faz muito necessário… [no combate à] hostilização dessas crianças pretas, né? E a gente tem que tratar a educação com seriedade, de forma decolonial e afrorreferenciada… como prevenção… isso previne tantas coisas que a gente não faz nem ideia.” —  Cassia Divino

A pedagoga Carla Souza, com seus 22 anos de experiência como docente, mantém o projeto através de oficinas, sempre em favelas e regiões periféricas, ou através de consultorias online.

Sobre a autora: Gabriela Anastacia é jornalista, mãe e empreendedora, não necessariamente nessa ordem.


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