Conto Ancestral: Poesia de Dudu Neves [VÍDEO]

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Conto Ancestral

Ainda posso ouvir as correntes se arrastar,
o chicote marcar,
marcas que ainda posso sentir!

Ainda posso ouvir o som da sirene da viatura tocar,
o gatilho apertar,
atirar num menino daqui!

É que arrastaram Cláudia!
Rafa Braga em uma jaula!
Marielle morta, vão vim atrás de mim!

Tanta ferida exposta!
Luto cravado na memória!
Menor com o uniforme da escola! Não conseguiu reagir!

E eu ainda tenho que resistir!
E eu ainda tenho que resistir!
E eu ainda tenho que resistir!

Ogunhiê, não me deixe sofrer tanto assim!
Ogunhiê, não me deixe sofrer tanto assim!

É que eu eu vim de lá, do lado de lá,
me trouxeram pra cá,
eu acho que o plano deles era me matar aqui!

É que eu vim de lá, sou de África.
Mas da onde eu sou?
Já que África não é um país?

Querem me silenciar,
minha história apagar,
A minha ancestralidade ocultar!

Me botar pra trabalhar,
salário mínimo ganhar,
Pra mim tentar me sustentar na crise desse país!

Bara, que zele pela minha vida!
Me livre da dura, da viatura, do capitão do mato!
Do Homem do Saco e da bala perdida!

É que assim se foram tantas vidas,
sonhos mutilados,
por causa da melanina!

É que assim escreveram tantas poesias,
inspiradas nas dores,
dores como da Tia Dolores, que sentiu a dor de perder sua cria!

É país sem paz,
pais que procria e não cria,
onde o dinheiro se tornou um deus, nascemos pobres, somos ateus!

Sistema capitalista,
todo dia mata,
mais de 71 dos meus!

E eu? Eu ando tranquilamente na favela onde eu cresci,
Eu quero andar tranquilamente no país onde eu nasci,
Mas sei que minha raíz não é daqui!

Essa terra é de um povo de flecha afiada,
de cara pintada,
Tupã, Guajajara, um povo que fala Tupi!

A minha carne trazida para uma terra roubada!
Eu fui vendido a troco de ouro e prata!
E eles gritavam: “é uma nova pátria!”

Eu pedia a Justiça de Xangô,
enquanto o caboclo também rezava,
Até o amanhecer!

E, assim, mais navios chegavam,
corpos de outros povos,
também escravizados!

Eram filhos de Nanã,
Iansã,
Ogum, Obaluaiê.

Atotô!
Ogunhiê!
Káwò-Kábíyèsìlè!

Meu povo clamou: “Káwò, Xangô! Káwò, Xangô!”
A gira girou, o ogã batucou,
Segue o canto!

E trilhem seus caminhos,
pelas trilhas de nagô preto,
você entendeu?

Preta, se você não entendeu,
é que não foi esses versos que ele te ofereceu,
mas os meus versos são todos seus!

E eu ainda tenho que resistir!
E você ainda tem que resistir!
E nós ainda temos que resistir!

Assista ao Vídeo Slam Aqui.

Poeta Dudu Neves, do Slam Melanina, da Cidade de Deus
Poeta Dudu Neves, do Slam Melanina, da Cidade de Deus. Photo: David Amen
Poeta Dudu Neves, do Slam Melanina, da Cidade de Deus. Photo: David Amen

Sobre o poeta: Dudu Neves é multiartista, não-binárie e cria da Cidade de Deus. É idealizador do Slam Melanina, o primeiro slam da Cidade de Deus e a primeira batalha de poesia da América Latina, onde o lugar de fala é apenas para pessoas não-brancas. Já atuou em diversos espetáculos como “Oya Ave Maria” e “O Encantado”, ambas pela companhia de teatro CDD em Cena.

Sobre o editor: David Amen é jornalista e cria do Complexo do Alemão, co-fundador e produtor de comunicação do Instituto Raízes em Movimento, grafiteiro e ilustrador.


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