Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre a questão da água e a população LGBTQIAPN+ nas favelas cariocas e na Baixada Fluminense.
Banana, hortaliças, pimentão, quiabo, jiló, berinjela, maxixe, chuchu, abobrinha, beterraba, cenoura, taioba, serralha, alho poró, diversos temperos, milho, alface, agrião, mandioca; todos esses alimentos são cultivados e comercializados por pequenos produtores que possuem quintais e sítios agrícolas em um lugar conhecido como Região das Vargens, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Mas os constantes alagamentos e a especulação imobiliária estão colocando em risco a vida de moradores, dos trabalhadores da terra e de toda a agricultura orgânica da região.
A Região das Vargens é formada pelos bairros Camorim, Recreio dos Bandeirantes, Vargem Pequena e Vargem Grande, e é localizada entre o Parque Estadual da Pedra Branca e o Complexo Lagunar de Jacarepaguá. Com mais de 12.000 hectares, a floresta urbana da Pedra Branca possui dezenas de mananciais que desaguam em uma área composta por quatro lagoas de água corrente, doce, salobra ou salgada, conhecida como Pantanal Carioca. E toda essa área alagada e alagável passou por processos de drenagem para dar lugar à urbanização.
As águas das chuvas perderam os locais onde se acomodavam, ao mesmo tempo em que a biodiversidade foi atacada. As consequências são áreas urbanizadas alagadas em estações chuvosas, como aconteceu em setembro de 2020. Na época, moradores gravaram um vídeo denunciando a obra irregular Chácaras Residencial Club, em Vargem Grande. A construção, localizada em área ambiental, cercou um rio que existia ali, o que impossibilitou o escoamento da água da chuva, gerando uma enxurrada na Estrada do Sacarrão. Moradora da região há mais de 30 anos, at ativista ambiental Beth Bezerra soa alerta.
“Desde 2021, está acontecendo um processo de desestruturação por parte da prefeitura. O Mosaico das Vargens está sendo reduzido a cada decreto. No último [decreto] foi instituído o zoneamento ambiental da APA do Sertão Carioca, prevendo as Unidades de Conservação (UC), mas com uma redução de 40% da área destinada ao Refúgio de Vida Silvestre do Campo de Sernambetiba (REVIS). Aterros e lixões formados por restos de construções de empreendimentos imobiliários de luxo podem ser avistados em UCs. A consequência disso será a criação de uma zona de calor impactante não só na região da bacia, mas no município como um todo.” — Beth Bezerra
Em carta aberta, Beth ressalta o fato do Brasil ser signatário da Convenção de Ramsar, que trata da importância de zonas úmidas de interesse social, voltadas à conservação e uso sustentável dos ecossistemas de áreas úmidas. E explica que a REVIS, além de ser uma área de proteção ambiental, recebe todos os rios e canais que descem do Maciço da Pedra Branca, funcionando como uma grande bacia receptora dessas águas, as drenando e distribuindo através de canais.
Beth alerta, ainda, que os aterros, estradas e licenciamentos dentro da área destinada a REVIS colocam em risco em torno de 20.000 famílias residentes no corredor entre a Estrada dos Bandeirantes, o Canal do Portelo, o Canal do Rio Morto e adjacências, incluindo comunidades, condomínios e loteamentos.
Uma dessas 20.000 famílias é a de Eduardo Ribeiro e seus dez irmãos. A família possui um sítio de 16.800m², que, há 70 anos, recorre à agricultura como meio de subsistência. Adeptos da agroecologia e focando no cultivo de alimentos mais rústicos e resistentes, o sítio produz todas as frutas, verduras e legumes citados no início desta reportagem. O sítio já escoou sua produção para a Central de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro (CEASA-RJ) e, atualmente, fornece para diversos estabelecimentos da região, como restaurantes, bares, mercearias e sacolões, além de entregar a domicílio, conta Seu Eduardo, vice-presidente da Associação de Moradores Amigos de Vargem Grande (Amavag).
“Ano passado, deu meio metro de água dentro do terreno que tinha produção de aipim, jiló e berinjela. Perdi essas safras inteiras. Outros produtores também perderam tudo. O Seu Jorge, que cultiva hortaliças na Estrada do Sacarrão, também perdeu tudo. Ele ficou desanimado, mas graças ao apoio de outros agricultores da região ele conseguiu produzir novamente. Meu irmão também ficou numa depressão tremenda porque perdeu tudo e, agora, está abrindo as áreas lá atrás e começando a plantar aipim novamente.” — Eduardo Ribeiro
Seu Eduardo explica que o irmão teve que afundar as valas para fazer o escoamento das águas que descem do Parque Estadual da Pedra Branca e relata que muitas saídas de água foram aterradas ou bloqueadas por empreendimentos imobiliários em áreas de conservação ambiental.
Ele relata que não há, por parte da prefeitura, do estado ou da união, qualquer tipo de incentivo à produção agrícola local e ressalta que os agricultores continuam em suas terras, produzindo alimentos para a cidade, graças à rede de apoio que sempre existiu entre eles. Ao longo da conversa, Seu Eduardo vai se lembrando dos inúmeros aterros e construções ocorridas nos últimos 30 anos. São tantos que ele até perde a conta. Segundo o Censo Agropecuário, realizado pelo IBGE em 2017, existem 87 estabelecimentos produtivos nas Vargens.
Segundo o artigo Lutas Sociais e o Papel das Unidades de Conservação, publicado na Revista Periferias, alguns grupos permaneceram ligados ao passado de lutas pelas terras ancestrais, como os quilombos, outros à luta pela moradia em comunidades e contra as remoções, como a Vila Autódromo. Há, também, os que praticam atividades agrícolas junto ao lugar de viver, como é o caso da família de Seu Eduardo. Porém, todos esses podem passar por um processo de gentrificação. O geógrafo Brasiliano Vito Fico, autor do artigo, disserta:
“A ocupação destas áreas só é possível quando grandes intervenções em toda a paisagem permitem a redução de riscos aos novos habitantes, especialmente nas baixadas alagáveis de brejo; aí a instalação de infraestrutura dispendiosa de drenagem e aterramentos exigirá um retorno financeiro compatível com o alto investimento do mercado da construção civil. Esse processo inviabilizará a manutenção da população de baixa renda, levando inevitavelmente à gentrificação das Vargens.”
Essa região corresponde à atual Área de Planejamento 4 (AP4) do município do Rio de Janeiro, formada por 19 bairros na Zona Oeste da cidade. A AP4 possuía uma população de 909.955 habitantes, em 2010, e uma população estimada de 1.011.946, em 2015. Esse crescimento populacional se deu a partir da década de 1960, na qual se iniciou o plano de urbanização do Estado da Guanabara, a ex-capital da República. Encomendado ao arquiteto Lúcio Costa, o plano consistia na ocupação planejada dessa região.
O conceito foi equilibrar as áreas edificadas com as verdes, integrando as Zonas Norte, Sul e Oeste da cidade, a partir de um grande eixo metropolitano. Segundo o artigo Dinâmica urbana recente da cidade do Rio de Janeiro: considerações a partir da análise de dados dos censos do IBGE e do licenciamento urbanístico municipal, a AP4 é a área que teve o maior aumento populacional e de domicílios na capital nas últimas décadas. Dissertado pelo arquiteto e urbanista Henrique Barandier, a população cresceu em 47,69%, entre 1980 e 1991, 29,59%, entre 1991 e 2000, e 33,33%, entre 2000 e 2010. Em domicílios, cresceu em 34,84%, entre 1991 e 2000, e 51,21%, entre 2000 e 2010.
No artigo A Resistência Popular que Protege as Regiões das Vargens Cariocas, Beth Bezerra explica que a região das Vargens se manteve predominantemente rural até a década de 1970, quando se iniciou uma escalada populacional com o surgimento de loteamentos, comunidades e condomínios.
Ela conta que as lutas sociais sempre marcaram a trajetória dos moradores na busca pela preservação ambiental, pelo direito à moradia, pelo enfrentamento à sanha desenfreada do poder imobiliário, pelo direito à água, à moradia e à educação.
“A consciência do direito humano sempre fez parte dessa trajetória… Desde a criação da Amavag, passando pelo Plano Popular das Vargens até o Movimento S.O.S. Vargens, a participação popular sempre trouxe sua voz, principalmente ao enfrentamento do PEU das Vargens e o desmonte ambiental. Os moradores das Vargens são símbolos de luta e resiliência, do permanecer, do preservar o essencial à vida de hoje e da posteridade. Movimentos populares marcam sua história desde o período escravagista. Com a preservação de raízes como o Quilombo Cafundá Astrogilda, os pequenos agricultores desde o século XIX contribuem para a alimentação do carioca, através de hortifrutis produzidos em bases sustentáveis oferecidos em feiras e escolas.” — Beth Bezerra
Segundo o boletim informativo do Movimento Baía Viva, a Prefeitura assinou, em meados de 2022, um convênio com o Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado do Rio de Janeiro (Sinduscon-Rio) para o “desenvolvimento” da Região das Vargens com um projeto que prevê a retificação de rios, construções de estradas, pontes e travessias, drenagens de rios e outras grandes “melhorias” sem consulta pública e sem as devidas licenças ambientais. Questionada, a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano (SMPU) respondeu, por e-mail:
“O PLC nº 44/2021, revisão do Plano Diretor, enviado pela prefeitura e aprovado em primeira discussão na Câmara dos Vereadores, tem propostas de médio a longo prazo, em diversas escalas, para reduzir os alagamentos e enchentes na região das Vargens. No Anexo 1B, estão previstas intervenções de revitalização, dragagem e valorização do entorno de diversos rios e canais na região. Já nas propostas de macrozoneamento e zoneamento, há restrições para a ocupação dos terrenos, incidindo, por exemplo, a exigência da Superfície Mínima Drenante na escala dos lotes, obrigando que parte do lote seja mantido permeável. Para as áreas públicas a serem urbanizadas, também são previstas mais áreas verdes e jardins de chuva, de modo a contribuir com o escoamento das águas pluviais.”
A SMPU também informou que participou das audiências públicas do PLC nº 44/2021 tanto em 2021, promovidas pelo Poder Executivo, como, em 2022 e 2023, promovidas pela Câmara Municipal do Rio para a discussão das propostas do Plano Diretor e escuta ativa das demandas dos moradores da Região das Vargens e produtores locais.
Já a Fundação Rio-Águas respondeu que atua na limpeza e no desassoreamento de canais da região periodicamente, com o objetivo de prevenir enchentes e alagamentos:
“Receberam serviços de limpeza: o Canal de Sernambetiba, rios do Cascalho, Vargem Grande, Vargem Pequena, Portão, Bonito, Calembá e Cancela. Os efeitos dos trabalhos já foram sentidos no último verão e não houve registro de alagamentos significativos nestes bairros.”
Para Beth, é necessário a criação das Unidades de Conservação APA Sertão Carioca e Revis Campos de Sernambetiba, pois as principais atribuições dessas áreas de brejo é funcionar como reservatório natural, retendo excessos hídricos das chuvas e dos cursos d’água que descem do Maciço da Pedra Branca. O único meio de garantir a ocupação da região é respeitando sua capacidade de suporte territorial que é bastante limitada frente à complexidade e fragilidade de seu meio ambiente.
“Cada alagamento que dá nas plantações dos agricultores dá uma perda, por baixo, de uns R$500.000. Isso só de produção agrícola! As enchentes dão outros prejuízos como o motor, os canteiros, as tubulações, as mangueiras, os materiais, as terras. Se contar tudo isso, passa de R$500.000. E são coisas que levamos anos para comprar e montar [como] uma estrutura de irrigação, que perdemos em poucas horas por conta das enchentes. Graças a Deus esse ano não teve perda. O que está acontecendo agora é reflexo do que aconteceu lá atrás. É difícil lutar contra o sistema, é o sistema que está mandando [em] tudo. A gente está aqui lutando pela nossa agricultura.” — Eduardo Ribeiro
Sobre o autor: Felipe Migliani é formado em jornalismo pela Unicarioca e tem especialização em jornalismo investigativo. Atua como jornalista independente e repórter freelancer nos jornais Meia Hora e Estadão. É coloborador do Coletivo Engenhos de Histórias, que investiga e resgata histórias e memórias da região do Grande Méier, e do PerifaConnection.