No Centro do Rio de Janeiro, no Teatro Firjan SESI, tive a oportunidade de assistir uma das últimas apresentações desta temporada do monólogo Macacos, criado e protagonizado pelo jovem, multipremiado, ator e dramaturgo Clayton Nascimento. Esta é uma montagem que trata sobre a urgência da luta pelas vidas negras brasileiras, contra a normalização da brutalidade policial, do genocídio da juventude negra e do martírio das mães de vítimas do Estado. O preconceito contra o povo preto dá o tom de toda a obra. Dá, até mesmo, nome à peça, pois, assim como defendia Lélia Gonzalez, o autor faz uma subversão do xingamento racista “macaco” para retomá-lo, a partir da narrativa e da perspectiva do negro. Segundo a obra da acadêmica brasileira, para além da resistência, há a subversão. Lélia propõe uma batalha discursiva ao subverter a língua, um dos dispositivos coloniais mais eficientes no processo de assujeitamento dos corpos negros. É neste âmbito que Clayton coloca a subversão do racismo estrutural como ponto central da obra desde o seu título até o fim.
No local, a audiência se constituía majoritariamente de pessoas brancas. Para as poucas pessoas negras que constituíam a plateia naquela noite, cada fala do ator rememorava dores próximas e bem conhecidas. Antes mesmo do ator subir ao palco, percebi que a peça já tinha começado para mim. A energia do público já me atravessava. Com a subida ao palco, o trabalho do ator consistiu em organizar e canalizar essa energia, transformando-a em arte. E isso é algo que Clayton faz excepcionalmente bem.
A campainha toca pela terceira vez. O monólogo se inicia com um grito poderoso: “MA CA COS!”. Imediatamente, isto densifica a atmosfera em cena. E o ator continua, gritando repetidamente “Macacos! Macacos!”, preenchendo o palco desprovido de cenografia ou mobiliário. Junto aos gritos e à atuação, compõem a cena jogos de luzes e uma leve fumaça, suspensa no teatro. Durante todo o espetáculo, o ator apresenta-se com o mesmo figurino: seu corpo negro, trajando uma bermuda preta e carregando em seu bolso um batom vermelho. Incrivelmente, o batom é usado no segundo ato do monólogo para construir um mapa histórico que explica o processo de colonização do Brasil.
Testemunhei a entrega e dedicação de Clayton à narrativa sensível que se seguiu. Em um impressionante monólogo, ele revelou-se um artista forte, preparado e comprometido com o papel. Não é a toa que ele foi um dos atores mais jovens a receber dois prêmios de melhor ator no mesmo ano: Melhor Ator Prêmio Shell 23 e Melhor Ator Prêmio APCA 23.
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O espetáculo trata de temas densos e delicados, ampliando a visão do público para a realidade das mães que perdem seus filhos à violência policial em meio a operações em favelas do Rio de Janeiro. Clayton tem a habilidade de se transformar em diversos personagens durante a peça; abraça a jornada de diferentes personas negras. Ao encarnar esses diversos personagens, ele amplia a visão do público para uma realidade sensível e cruel.
A narrativa leva ao desconforto toda a plateia, mas, às lágrimas, as poucas pessoas negras presentes. Nós nos reviramos nas poltronas desde o primeiro ato. Dentre as personagens feitas por Clayton, ele dá vida a Eduardo de Jesus Ferreira, um menino de dez anos morto no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, em 2015, enquanto brincava. No dia 2 de abril de 2015, mídias comunitárias documentaram que o menino Eduardo foi assassinado durante uma operação policial. Enquanto a mãe estava na cozinha e a criança brincava na porta de casa, ouviram-se disparos. Ela correu em direção ao filho, que já se encontrava morto, com um tiro de fuzil na cabeça, disparado por policiais militares.
A peça aborda de maneira profunda, focada na trajetória de personagens reais, temas como o genocídio da população negra, e desconstrói mitos históricos do racismo brasileiro. O ator também se utiliza de sátiras para aliviar a densidade da peça. No entanto, a obra sempre aponta para a necessidade do desconforto e da reflexão sobre as questões raciais e sociais para, um dia, superá-las.
O monólogo proporciona um olhar maduro e firme sobre o cenário do teatro negro brasileiro. Contudo, é importante que pessoas negras acessem a narrativa com cautela, pois pode ser um lugar de gatilho e muito desconforto.
A temporada de Macacos foi encerrada, por enquanto, no Rio de Janeiro, mas a obra do ator pode ser acessada em seu livro MACACOS: Monólogo em 9 episódios e 1 ato, publicado pela editora Cobogó.
Ele termina a apresentação com uma bandeira que estampa a cara de dezenas de pessoas negras, moradoras de favelas e periferias, vítimas da violência racialmente motivada do Estado. Filhos, pais, irmãos que nunca encontraram justiça. É neste momento que as palmas ocupam o teatro. No entanto, as palmas não são somente para o ator ou para a obra, elas são, sobretudo, para as vítimas do genocídio negro e suas famílias, que, sem alternativa, vivem o luto em luta.
Ao fim da salva de palmas, entretanto, o espetáculo ainda não se encerra. Nas apresentações no Rio de Janeiro, Theresinha Maria de Jesus, mãe de Eduardo, é convidada por Clayton a subir no palco para dar seu relato de perda, luto e luta. Clayton e Theresinha acreditam que a arte também é uma forma de justiça. Dar visibilidade a essa criança assassinada é fazer o pequeno Eduardo viver de novo, mesmo que por poucos minutos, em algumas cenas. É comum, depois do relato de Theresinha, que a resposta da plateia seja um estrondoso #JustiçaparaEduardo. Theresinha afirma, em entrevistas, que a pressão pública gestada a partir do monólogo pode resultar na reabertura do caso de seu filho, arquivado pela Justiça há alguns anos. Para ela, Macacos tem sido, acima de tudo, um motivo de esperança.
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Sobre o autor: Cleyton Santanna é jornalista e roteirista, formado pela UFRRJ e pela CriaAtivo Film School. Em seu canal no YouTube, discorre sobre curiosidades, ancestralidade e cultura afro-brasileira. Em 2017, produziu dois documentários, “Entre Negros” e “Tudo Vai Ficar Bem”, e, em 2018, foi premiado como roteirista, com o curta-metragem “Vandinho”, pela Creative Economy Network. Atualmente, atua como comunicador no Museu do Amanhã e é o apresentador do podcast Influência Negra.