Um Olhar Crítico sobre a Conservação do Patrimônio no Rio de Janeiro: Os Dois Pesos e Duas Medidas no Caso do Horto [REFERÊNCIA]

Um assentamento informal se caracteriza não pela falta de supervisão de fora, mas pela potencialização da flexibilidade da base.

Rocinha, durante décadas a favela mais populosa do país, e símbolo da criatividade, comunidade e potência que podem caracterizar a informalidade. Foto: CatComm/RioOnWatch
Rocinha, durante décadas a favela mais populosa do país, é símbolo da criatividade, comunidade e potência que podem caracterizar a informalidade. Foto: ComCat/RioOnWatch

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A Organização das Nações Unidas (ONU) ainda utiliza com frequência o termo pejorativo “slum”—que traz a ideia de um assentamento temporário, extremamente precário e improvisado—como sinônimo de “assentamento informal” para descrever os diferentes lugares no mundo onde vivem pelo menos 1 bilhão de pessoas. Em termos gerais, quando se trata de moradia, a ideia de “informalidade” sugere um urbanismo que não conta com o planejamento ou supervisão do setor público. Contudo, a condição de “informal” é complexa e requer uma análise mais crítica.

Essencialmente, embora aquilo que chamamos de “informalidade” pressuponha uma falta de planejamento de cima para baixo, seja por meio de um plano diretor, do zoneamento, da definição de padrões ou de outras formas de regulamentação municipal, a abordagem descentralizada e focada na comunidade que frequentemente emerge, pode ser um ativo. O que mais define a qualidade do que é produzido informalmente não é a falta de supervisão vinda de fora, mas a capacidade de se potencializar a flexibilidade que vem da base.

Patrimônio e Vitalidade nas Favelas do Rio

O potencial que as favelas fluminenses têm de gerar e expandir novas atrações culturais é bem conhecido. As favelas são associadas às origens ou à manutenção de todas as atrações turísticas performáticas do Rio de Janeiro—do carnaval às festas de fim de ano, do samba ao passinho, do futebol à capoeira. Isto se deve à criatividade inerente à informalidade, não apenas porque “a necessidade é a mãe da invenção”, mas porque a falta de regulamentação vinda de fora incentiva a criatividade.

Mais recentemente, a natureza informal das favelas tem permitido que os moradores atendam às suas próprias necessidades infraestruturais de forma sustentável, como por exemplo produzindo seus próprios biossistemas de esgoto, tetos verdes, projetos agroflorestais, sistemas solares, entre outros.

Numa escala histórica, o urbanismo oportunista (leia-se “informal”), estruturado por uma complexa interação entre a disponibilidade de recursos e as convenções comunitárias, foi a base para o desenvolvimento de praticamente todos os centros urbanos antes do período industrial, uma condição que hoje é valorizada como patrimônio com a mesma frequência com que é impiedosamente eliminada para dar lugar a novas construções, como demonstram muitos espaços urbanos europeus classificados como Patrimônio Mundial da UNESCO na Europa, além de outros lugares como Valparaíso, no Chile.

Considerada patrimônio mundial pela UNESCO, Valparaíso, no Chile, "caracteriza-se por um tecido urbano vernacular adaptado às encostas", (UNESCO) e é celebrada por ser uma "cidade sem planejamento que sempre abraçou o caos (revista National Geographic). Foto: RioOnWatch
Considerada patrimônio mundial pela UNESCO, Valparaíso, no Chile, “caracteriza-se por um tecido urbano vernacular adaptado às encostas” (UNESCO), e é celebrada por ser uma “cidade sem planejamento que sempre abraçou o caos” (revista National Geographic). Foto: RioOnWatch

No contexto brasileiro, já existem precedentes de valorização de espaços informais como patrimônio, embora raramente em favelas. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reconhece vários locais que dão continuidade a práticas de construção e padrões de habitação pré-industriais. Estes apresentam planos coloniais altamente irregulares, que foram sendo incorporados aos poucos com base na disponibilidade de recursos agrícolas ou mineiros, ou foram criados em estilos vernaculares por comunidades italianas, japonesas ou de outras diásporas.

Valparaíso, Chile. Foto: RioOnWatch
Valparaíso, Chile. Foto: RioOnWatch

No Rio de Janeiro, da mesma forma que alguns monumentos são consagrados como parte do patrimônio carioca por esses mesmos órgãos de preservação, as favelas atuam como prova igualmente duradoura da vitalidade que surge da urbanidade informal, porém não são mencionadas como tal. Apesar de sua reputação como espaços efêmeros e a-históricos, muitas favelas têm as suas raízes nas mesmas lógicas de necessidade econômica oportunista e criatividade que acompanharam o urbanismo colonial de mais prestígio, e até mesmo ultrapassam a longevidade de muitos bairros oficiais.

Por exemplo, o Horto Florestal, uma favela localizada no bairro do Jardim Botânico, vem sendo habitada continuamente desde o final dos anos 1500, e muitas das atuais famílias que ali residem têm origens que remontam ao período imperial dos anos 1800. O Morro da Providência, chamado de “Morro da Favela” na sua fundação em 1897 e que levou ao uso generalizado do termo, representa bem mais de um século de desenvolvimento urbano contínuo e autônomo, e é talvez um dos mais extensos remanescentes do tecido urbano do Rio de Janeiro anterior às cataclísmicas reformas urbanas do governo Pereira Passos (1902-1906). As histórias quilombolas também marcam a história de muitas das favelas do Rio, tanto em locais designados pelo governo federal, como Sacopã ou Pedra do Sal, quanto em locais que não possuem reconhecimento oficial, como o Jacarezinho.

Morro da Providência, a primeira favela do Brasil, vista do Cais do Valongo. Foto: Jcornelius/Wikimedia Commons
Morro da Providência, a primeira favela do Brasil, vista do Cais do Valongo. Foto: Jcornelius/Wikimedia Commons

Uma Abordagem Teórica sobre a Informalidade

No final, o que diferencia espaços informais que se tornam imortalizados pelas lentes do patrimônio daqueles em que o objetivo oficial é praticamente a sua completa destruição, é o estigma. Por existirem fora dos parâmetros urbanísticos oficiais, é a prefeitura quem toma a decisão consciente de conceder a algumas das suas comunidades mais antigas o privilégio da integração e a outras um regime contínuo de exclusão, precariedade e deslocamento.

O teórico Oren Yiftachel, conhecido pelo seu trabalho sobre as cidades israelo-palestinas, caracteriza a situação através do termo “espaço cinzento”, referindo-se a condições urbanas inseparáveis de um status quase legal, inegavelmente presente, mas deliberadamente ignorado nas diretrizes oficiais. Zonas informais “cinzentas” estão presentes em todas as camadas da cidade, afirma ele, com condições ilegalizadas muitas vezes criadas pela corrupção da elite, assim como pela falta e necessidade de infraestrutura. Sem inclusão em práticas de desenvolvimento mais justas, esses espaços acabam numa encruzilhada, entre duas opções de resolução. Se a percepção política os favorecer suficientemente, eles podem ser “embranquecidos”, tendo as suas raízes na informalidade ativamente ocultadas, porém podendo persistir em conformidade com a narrativa pública. Ou podem ser “escurecidos“, tendo a sua informalidade tratada como razão para violência através da destruição e do deslocamento.

Em sua análise do discurso sobre favelas indianas, Sapana Doshi também alerta contra a dicotomia simplista entre o formal e o informal, observando que as condições de desenvolvimento que escapam à supervisão legal estão sujeitas a uma ampla gama de rótulos correspondentes a experiências heterogêneas, e, por sua vez, atribuídas graus desiguais de estigma. Ela se refere ao conceito de “cidadania graduada”: as comunidades que estão sujeitas a maiores graus de estigma são mais excluídas do diálogo urbano, independentemente das suas realidades materiais ou políticas.

O Caso do Horto

Localizado na Zona Sul do Rio, o Horto Florestal é um estudo de caso exemplar das ambiguidades jurídicas da construção informal. Há muito tempo os terrenos em torno da Floresta da Tijuca e dos canteiros de pesquisa do Jardim Botânico têm sido foco de intensa construção, o que é tecnicamente proibido sob a designação da área pelo IPHAN em 1938, mas que, mesmo assim, pôde permanecer incontestado por muitas décadas. Essas diversas construções estão situadas em uma complexa rede de narrativas que ilustram o poder do estigma para definir condições urbanas “cinzentas”, onde os padrões de informalidade permitida têm sido tudo, menos imparciais.

Além do complexo de favelas do Horto Florestal, que contém muitas das estruturas mais antigas da propriedade, o historiador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rafael Mendonça, observa que, através de um decreto contraditório de 1968, a sede do Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO) e a usina de energia elétrica adjacente foram autorizadas a ocupar esse mesmo terreno e agora seguem sem ser questionadas, pois o edifício exerce um papel fundamental na economia local. Na década de 1990, o condomínio de classe alta Canto e Mello foi construído nas encostas do Morro das Margaridas, também localizado dentro da propriedade do Jardim. Na época, a sua construção foi condenada judicialmente, contudo o condomínio permanece de pé até hoje, sem ser contestado e sem o cumprimento da condenação.

Construção sobrevivente mais antiga no Horto, construída por escravos indígenas. As estimativas sugerem que a edificação é datada da primeira plantação de cana-de-açúcar na área, cujo plantio se deu em 1575. Foto: ComCat/RioOnWatch
Construção sobrevivente mais antiga no Horto, erguida por escravizados indígenas. As estimativas sugerem que a edificação é datada da primeira plantação de cana-de-açúcar na área, cujo plantio se deu em 1575. Foto: ComCat/RioOnWatch

Foi quando novos moradores de baixa renda começaram a se mudar para a área que os apelos pela preservação do Jardim Botânico se tornaram justificativa para o deslocamento militarizado. A pressão pela demolição do Horto Florestal começou em 1980, em resposta ao crescimento da comunidade Dona Castorina, uma área de baixa renda regularizada que recebeu autorização federal através do mesmo conjunto de decretos que autorizou a construção da sede do Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO). Apesar da expansão anterior do Horto ter sido sancionada pela prefeitura e de seu núcleo informal anteceder a todos os seus vizinhos mais abastados, o assentamento enfrentou sua primeira onda de notificações de remoção pouco tempo depois, dando início a um padrão de ameaças e intimidações crescentes. A pressão para que os moradores do Horto deixem o local vem sendo contínua há mais de quarenta anos, culminando no apoio da Polícia Militar e dos principais veículos de notícias, como O Globo, contribuindo para a narrativa de que o Horto constitui uma “invasão“, apesar de sua presença histórica. Hoje, as áreas com infraestrutura elétrica e condomínios de luxo foram “embranquecidas”, enquanto as suas contrapartes que possuem renda mais baixa vêm sendo submetidas a décadas de antagonismo jurídico, às vezes culminando em violência física.

O Jardim Botânico apresenta um caso em que, de certa forma, toda construção é “informal”, persistindo apesar da designação de patrimônio federal que declara o local exclusivo para a pesquisa florestal. No entanto, a divergência de percepção entre os espaços economicamente privilegiados e os de renda mais baixa é enorme. Afinal, a favela do Horto está situada em uma das terras mais valiosas de todo o Rio, avaliada em R$10,6 bilhões e altamente desejável para a expansão da área adjacente, predominantemente de classe alta. Apesar de sua presença centenária, ela foi “efemerizada” na percepção pública e os bens obtidos em meio à sua informalidade negados em prol de uma narrativa que se concentra unicamente na precariedade e na a-historicidade.

A Historicidade como Poder

Foto: Sarah Jacob
Foto: Sheila Jacob

O geógrafo canadense Nicholas Blomley descreve as conexões entre a efemerização da propriedade e as narrativas racializadas que há muito tempo negam a legitimidade das histórias não-europeias, observando que as reivindicações de permanência nas sociedades coloniais precisam ser “persuasivas” para a elite socioeconômica. Moradores de favelas, no Horto e em inúmeros outros casos, têm sido constantemente considerados “invasores” em suas próprias terras, uma jogada retórica que persiste em completa contradição com a realidade histórica e jurídica, e que é inteiramente possibilitada pelo olhar predatório da especulação imobiliária dentro da condição urbana “cinzenta”. Eles são mantidos em estado de precariedade, sem a linguagem de títulos de propriedade e de lotes regularizados. Ao mesmo tempo, essa regularização os tornaria atraentes para os empreendimentos da elite. De qualquer forma, os moradores ficam vulneráveis à exploração econômica arbitrária e corrupta, em uma zona cinzenta permanente. [Como um adendo, é por isso que defensores do direito à moradia no Brasil vêm trabalhando para introduzir o Termo Territorial Coletivo no país].

Annelise Caetano Fraga Fernandez, na sua historiografia sobre o Parque Estadual da Pedra Branca, na Zona Oeste do Rio, observa a politização do patrimônio urbano, em um contexto local, como sendo uma força que imortaliza algumas construções como históricas, enquanto condena outras como ilegítimas, mesmo que ambas condições tenham origens informais. Seja por meio da extração de recursos ou do lazer turístico, bairros são definidos como adequados para a preservação em função da percepção do seu valor econômico, e as áreas que não contribuem são eliminadas do tecido urbano geral, em vez de entrelaçadas a ele. A urbanização é, de certa forma, concebida como um jogo de soma zero, em que algumas formas de informalidade persistem e outras são eliminadas sob o olhar aferidor do capital.

A realidade do informal, porém, é que tais conflitos não representam perdas, mas sim multiplicidade. A informalidade engloba muitas condições urbanas que frequentemente prosperam quando são economicamente vantajosas, seja em casos de condomínios de elite, construídos em altitudes ilegais ao longo das encostas da cidade, ou até mesmo em centros históricos pré-industriais anteriores ao planejamento industrializado, agora consagrados como monumentos históricos ou atrações turísticas por toda a América Latina. Hoje, a vitalidade das favelas representa outro ativo igualmente inestimável que emerge da informalidade, mas um que não pode ser monetizado e que tem sido rotineiramente suprimido devido à sua incompatibilidade com a urbanidade da elite.

Um beco na favela do Vidigal, no Rio de Janeiro (esquerda) e um em Santorini, na Grécia. Fotos: Theresa Williamson/RioOnWatch
Um beco na favela do Vidigal, no Rio de Janeiro (esquerda) e um em Santorini, na Grécia. Fotos: Theresa Williamson/RioOnWatch
Vista da favela do Vidigal, no Rio (esquerda) e de Santorini, na Grécia. Fotos: Theresa Williamson/RioOnWatch
Vista da favela do Vidigal, no Rio (esquerda) e de Santorini, na Grécia. Fotos: Theresa Williamson/RioOnWatch

Sobre o autor: Nathan Bergrin é candidato ao título de bacharel em arquitetura na Rice University, sediada em Houston, no Texas, EUA. Sua pesquisa concentra-se nas interseções entre o design ambiental e paisagístico com as desigualdades urbanas, e narrativas pós-coloniais relacionadas ao patrimônio natural.


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