Essa é a mais recente de uma série de matérias sobre experiências de Termos Territoriais Coletivos (TTC) pelo mundo. Nos dias 18 e 20 de junho, ocorreu o IV Seminário Nacional do Termo Territorial Coletivo, cujo tema foi “Cultivando Comunidades Sustentáveis e Resilientes”.* O evento online contou com a participação de 117 pessoas de vários estados do Brasil. Na ocasião, foram debatidos e aprofundados alguns aspectos do TTC e suas aplicações, em especial experiências internacionais de TTCs focados em construir resiliência ambiental e climática, através dos vínculos entre a terra e a comunidade. Nesta matéria, apresentamos essas experiências inspiradoras e inovadoras do seminário.
O Termo Territorial Coletivo (TTC), modelo de gestão coletiva de territórios passando por um rápido crescimento em sua aplicação pelo mundo, atua bem além de seu foco mais conhecido, que é garantir moradia acessível e permanente, para abranger também diversas iniciativas permitindo a moradia digna e segura de forma mais ampla. Estas vão desde a agricultura urbana até a mitigação dos impactos causados pelas mudanças climáticas. A gestão comunitária da terra permite uma abordagem que visa o bem-estar e a qualidade de vida, promovendo um sentido amplo de coletividade e responsabilidade compartilhada.
No contexto da agricultura urbana, os TTCs têm se destacado como uma solução eficaz frente aos desafios enfrentados pela pressão da especulação imobiliária nas cidades, o que dificulta o uso dos espaços urbanos para o plantio. Os TTCs, ao assegurarem que o uso da terra seja determinado pela comunidade, possibilitam o acesso de terrenos para plantio, caso seja esse o interesse dos moradores, assim garantindo a produção direta de alimentos. É o que conclui o relatório Fazendas Urbanas em TTCs: Como Termos Territoriais Coletivos Estão Apoiando a Agricultura Urbana.
Em relação às mudanças climáticas, o censo dos TTCs de 2022 revelou que cerca de 80% dessas iniciativas nos EUA estão implementando ações de enfrentamento. As medidas adotadas incluem eficiência energética com o uso de energias renováveis, recuperação de áreas verdes e criação de infraestruturas verdes para mitigação de desastres.
Portanto, vê-se o crescimento de TTCs preocupados em criar espaços verdes dentro das comunidades, como parques, jardins urbanos e hortas; TTCs adotam uma visão ampla do conceito de comunidade, que diz respeito às relações de vizinhança, às redes de solidariedade, indo além de um conjunto de casas.
Fazenda de Boston e Estufa de Dudley: Segurança Fundiária Entrelaçada à Segurança Alimentar
Fundado em 2017, na cidade norte-americana de Boston, pelo Instituto de Fazendas Urbanas, que ensina e difunde práticas de agricultura urbana, Boston Farm (Fazenda de Boston) surgiu em um contexto de interesse dos moradores em criar hortas urbanas e a disponibilidade de terrenos vazios, que não cumpriam nenhuma função social. O TTC foi criado para adquirir esses terrenos e transformar em espaços de gestão coletiva, ensinando e apoiando agricultores locais, majoritariamente negros e latinos, no cultivo de alimentos.
Atualmente, Boston Farm possui cinco fazendas urbanas administradas por moradores, cuja produção gera renda e abastece as próprias comunidades. O conselho gestor do TTC inclui lideranças comunitárias, agricultores locais e técnicos desenvolvedores de projetos. Seu plano estratégico visa tornar-se um modelo para a criação e desenvolvimento de fazendas urbanas, apoiando a difusão dessas práticas pelos Estados Unidos.
A história da Dudley Greenhouse (Estufa de Dudley) exemplifica o impacto de um TTC bem aplicado. Em um bairro de maioria negra e imigrante, um terreno abandonado foi adquirido pelo TTC Dudley Neighbors Incorporated (DNI), em 2004 e, a partir de uma consulta pública aos moradores, o espaço foi transformado em uma estufa de 10.000m², em parceria com o Food Project.
Atualmente, cerca de 200 moradores do TTC de Dudley plantam seus alimentos na estufa gerida de forma participativa por um conselho eleito pela comunidade. O terreno é propriedade do TTC de Dudley Street e arrendado ao Food Project, ficando protegido da especulação imobiliária. Além de fornecer um espaço para agricultura, a iniciativa promove cursos, distribuição de mudas e sementes, além de feiras comunitárias.
TTC do Caño Martín Peña em Porto Rico: Gestão Coletiva Cria Comunidades Mais Resilientes
Em San Juan, capital de Porto Rico, o TTC Caño Martín Peña abrange oito favelas, hoje regularizadas pelo TTC, situadas nas margens do Canal Martín Peña. Lá, vivem cerca de 25.000 pessoas que possuem um grande senso de pertencimento à terra, mas sofrem constantemente com inundações e ameaças de remoção. Em resposta a essas frequentes questões socioambientais, na década de 2000, foi proposto um plano governamental de dragagem, que levou os moradores a realizarem mais de 700 atividades de mobilização entre 2002 e 2004, principalmente voltadas para o debate de uma provável gentrificação do território a partir dessas obras de melhoria junto dos títulos individuais propostos inicialmente.
É nesse momento que, coletivamente, a população local decidiu pelo TTC como uma solução de regularização fundiária para a preservação de seu direito à moradia. Com a adesão de mais de 2.000 famílias ao TTC, a terra da comunidade foi permanentemente retirada do mercado, permitindo que os moradores pudessem se apropriar do desenvolvimento local trazido a partir das intervenções governamentais.
Em 2017, Porto Rico foi atingido pelos furacões Irma e Maria, que devastaram toda a ilha, deixando milhares de mortos e resultando em danos de longo prazo. Nesse episódio, as comunidades do Caño Martín Peña sofreram muito, porém, a organização histórica e movimento coletivo do TTC permitiram que os moradores respondessem rapidamente, evitando os piores danos e atendendo as demandas dos moradores de forma mais ágil do que outras comunidades e até bairros formais do entorno. De imediato, construíram pontos de acesso à internet com ajuda de energia solar, levantaram recursos para cobrir as casas cujos telhados haviam sido danificados, e recuperaram casas em mutirão.
Fundação Eco Verde Sostenible: Terras Coletivas Preservam Recursos Naturais
Em Honduras, nos anos de 1990, as comunidades ao noroeste do país sofriam constantemente com práticas econômicas exploratórias, que levavam à contaminação dos cursos hídricos, apropriação de terras comunitárias, perda da biodiversidade e poluição, o que prejudicava a subsistência dos moradores locais. As leis do país, apesar de garantirem o direito coletivo aos recursos naturais, não conseguiam protegê-los.
Foi quando, em 2004, surgiu a Fundação Eco Verde Sostenible (FECOVESO), fundada para proteger o acesso à água em comunidades rurais. Esse TTC tem como foco adquirir e manter terrenos em torno de bacias hidrográficas para servir às comunidades rurais e montanhosas, atuando em uma região de 60km² no noroeste do país. Seu conselho gestor inclui representantes das comunidades e aliados técnicos, em sua maioria, voluntários. Entre suas ações principais estão o reflorestamento, a construção e a reforma de postos de saúde, melhorias em escolas e o suporte a professores.
No Havaí, TTC de Lahaina É Resposta Ao Setor Imobiliário Ávido e Astuto Após Tragédia Climática
No Havaí, o TTC de Lahaina foi criado em resposta a um incêndio devastador resultado de mudanças climáticas em 2023, que destruiu a maior parte da cidade de Lahaina. Apesar de recente, esse caso é bastante emblemático em demonstrar como o TTC pode ser usado como instrumento de defesa contra os riscos para moradia oriundos das mudanças climáticas. A partir da tragédia, especuladores imobiliários já de olho ha muito tempo nos terrenos disponíveis nesta cidade turística, entraram rapidamente com ofertas de compra, enquanto moradores indígenas e de gerações sofriam vulnerabilizados com a perda de suas casas. Para combater o que seria uma gentrificação instantânea, e preservar a tradição cultural, histórica e socioambiental da cidade, ativistas e moradores uniram-se para criar um TTC, que comprou terras da cidade para mantê-las permanentemente acessíveis aos moradores.
O TTC de Lahaina tem como uma de suas principais funções reconstruir casas destruídas pelos incêndios na ilha. Ele compra a terra, reforma as casas, recupera ambientalmente o espaço e garante a permanência do morador no local, retirando aquela terra do mercado. Tendo sido inicialmente financiado por doações, este TTC recentemente passou a receber subsídios do governo federal estadunidense. Seu conselho gestor é composto inteiramente por moradores da cidade e tem como prioridade a aquisição de terras de alto valor ambiental ou cultural, sempre com o objetivo de garantir sua preservação e recuperação ambiental.
Terra Prometida: Direito à Moradia e Preservação Ambiental a partir da Soberania Alimentar
Apesar de ainda não existir um TTC em solo brasileiro, as propostas multiplicam cada vez mais.
Ana Santos do Centro de Integração da Serra da Misericórdia (CEM), organização dedicada à agroecologia na maior remanescente de floresta na Zona Norte do Rio de Janeiro, a Serra da Misericórdia, realiza uma mobilização que ela enxerga como inseparável, entre direito à moradia e soberania alimentar.
A partir da poesia “como quem planta uma semente, para ver germinar o alimento necessário a todos os seres vivos”, no IV Seminário Nacional do TTC no Brasil em junho de 2024, Ana fala de como é estar em um resquício de área verde, dentro de uma dos maiores complexos de favela do Rio de Janeiro, o Complexo da Penha, e trabalhar com temas relacionados ao direito à moradia na área da Terra Prometida, junto da preservação ambiental. Ela lança a provocação:
“O que é possível fazer, quando você chega dentro de uma área verde, que você sonha em preservar, mas que, ao mesmo tempo, você tem a necessidade de morar e de realizar um trabalho?… Como produzir comida na Serra da Misericórdia de forma coletiva? Esse era o caminho de pensar soluções a partir do que todo mundo necessita que é, comer… Pensar a distribuição da terra, pensar a forma, que usos a gente daria para a terra… É possível manter o verde quando as casas crescem a cada dia?… Como sonhar com uma moradia digna a partir desse território de ausência… até hoje, a Terra Prometida não está no mapa. A soberania alimentar era o caminho possível, gerido por nós, a gente não ia precisar do governo… a relação do morar com a produção de alimento construía dignidade dentro do território, para os moradores… eu planto, eu colho, eu troco e eu preservo.”
Na visão de Ana e de seus vizinhos, “não dá pra dissociar soberania alimentar do direito à moradia”. Assim sendo, Terra Prometida é um local onde se constroem moradias, se planta e se colhe.
“O TTC se aproxima muito do movimento da agroecologia, que é onde os moradores se reconhecem a partir dos seus próprios fazeres… a favela sempre se juntou pra poder levantar uma casa, bater laje, sempre captou água da chuva com as panelas e baldes, sempre teve seu espaço de plantio, seja do boldo, seja de banana… O TTC dentro da Serra da Misericórdia vai possibilitar que as áreas verdes permaneçam, protegendo as nossas nascentes e os nossos animais… É também quando a criança e o adulto voltam a sonhar com o verde como possibilidade. A enxada que está na mão é para obra, mas também para cavar o chão e colocar a semente na terra.” — Ana Santos
Assista à Apresentação Realizada Sobre Essas Experiências no IV Seminário Nacional do TTC, por Felipe Litsek, Junto da Fala de Ana Santos do CEM:
*Sobre o IV Seminário Nacional do Termo Territorial Coletivo: O tema do primeiro dia foi “O Termo Territorial Coletivo e a Cidade Contemporânea” e trouxe para o debate os desafios das cidades e como o TTC pode contribuir para o enfrentamento de problemas sistêmicos com a proposição de soluções locais. Nesse primeiro momento, estiveram presentes Orlando Santos Junior, do Observatório das Metrópoles, João Pereira, da Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM), e Marcos Landa, Movimento Nacional de Luta Pela Moradia (MNLM). No segundo dia, o tema em debate foi “O Termo Territorial Coletivo e a Sustentabilidade Ambiental: Perspectivas da Gestão Coletiva do Território“, a partir do qual Felipe Litsek, subcoordenador do Projeto TTC, realizou a apresentação dos casos descritos nesta matéria. Essa sessão também contou com a participação da Ana Santos do Centro de Integração da Serra da Misericórdia (CEM), citada acima.
O Termo Territorial Coletivo (TTC) e o RioOnWatch são ambos projetos cuja gestão é realizada pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).