IX Julho Negro, das Favelas à Palestina: Roda de Conversa Reúne Mulheres Negras de Favela, Ativistas e Agricultoras

Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e comitê de solidariedade a Cuba reuniram-se no dia 27 de julho no Raízes do Brasil, em Santa Teresa, no IX Julho Negro. Foto: Vinícius Ribeiro
Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e comitê de solidariedade a Cuba reuniram-se no dia 27 de julho no Raízes do Brasil, em Santa Teresa, no IX Julho Negro. Foto: Vinícius Ribeiro

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No sábado, 27 de julho, durante o tradicional café camponês do Raízes do Brasil, espaço do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) em Santa Teresa, na Região Central do Rio, aconteceu a nona edição do Julho Negro, com rodas de conversa protagonizadas por mulheres negras, de favelas e de periferias.

O Julho Negro é uma mobilização que, desde 2016, une forças de diversos países do mundo, como Brasil, Palestina, Haiti, México, Chile, Honduras, Colômbia, Argentina, Índia, África do Sul, Quênia e movimentos como o Black Lives Matter (em português, “Vidas Negras Importam”), dos Estados Unidos. Parceiros internacionais que lutam em seus territórios contra o racismo, a militarização e o apartheid.

No Rio de Janeiro, a iniciativa é liderada por movimentos de favela e mães de vítimas da violência policial, visando denunciar o terrorismo de Estado, que atinge essas comunidades. Seu principal objetivo é conectar as lutas locais, criando uma rede internacional de solidariedade para enfrentar os efeitos territorializados do racismo, do colonialismo e da militarização da vida em contextos periféricos.

Gizele Martins é jornalista e foi a organizadora da roda de conversa sobre protagonismo das mulheres negras de favelas e periferias do IX Julho Negro. Foto: Vinícius Ribeiro
Gizele Martins é jornalista e foi a organizadora da roda de conversa sobre protagonismo das mulheres negras de favelas e periferias do IX Julho Negro. Foto: Vinícius Ribeiro

O evento que marcou o Julho Negro de 2024 foi uma roda de conversa idealizada e organizada pela jornalista e militante Gizele Martins, cria do Complexo da Maré, Zona Norte do Rio, referência na comunicação popular e no movimento de favelas do Rio de Janeiro.

A roda de conversa contou com Patrícia de Oliveira, integrante da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência; a agricultora periurbana Juliana Wu, do assentamento Terra Prometida, em Duque de Caxias, cidade da Baixada Fluminense; Cláudia Santiago Giannotti, uma das fundadoras do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC); representantes ou membros do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e de mídias comunitárias, como o jornal Garotas da Maré, e moradores de favelas e de outras zonas da cidade, interessados em discutir as opressões que matam pessoas socioeconomicamente vulneráveis e racializadas nas periferias do mundo todo dia.

“Esse é o nosso IX Julho Negro e, hoje, a gente resolveu fazer um café da manhã com mulheres negras faveladas, que são exemplos de resistência no Rio de Janeiro, lutando contra o genocídio negro, lutando pelo seu território, contra as prisões, mas, principalmente, lutando pelo direito à vida ao redor do mundo. O Julho Negro tem essa intenção de articular mundos, lutas e resistências ao redor do mundo.” — Gizele Martins

Simone Lauar é jornalista popular do jornal Garotas da Maré e militante da área de saúde mental. Foto: Vinícius Ribeiro
Simone Lauar é jornalista popular do jornal Garotas da Maré e militante da área de saúde mental. Foto: Vinícius Ribeiro

A jornalista popular do jornal Garotas da Maré e militante da área de saúde mental, Simone Lauar, remarcou como a violência e a pandemia do coronavírus afetaram mulheres pretas destes territórios. Ela também destacou como seu projeto, Mentes da Maré, pôde apoiar essas mulheres durante a pandemia e continua apoiando.

“[Com o] Mentes da Maré, a gente atua desde 2020. A maioria das pessoas que procuram atendimento psicológico são mães solo, negras periféricas e faveladas. Muitas delas perderam seus parceiros na pandemia porque eles tinham que trabalhar e acabaram ficando com Covid-19… [Outras perderam] seus filhos [em decorrência da violência] nas favelas. Muitas mães solo têm dificuldade de sustentar seus filhos, então, a gente faz esse projeto com muito amor.” — Simone Lauar

Em geral, essas mulheres, mães, filhas, tias, irmãs e avós assumem a responsabilidade pelos cuidados da família, o que ocasiona a falta de emprego. Segundo dados do IBGE de 2021, enquanto a taxa de desocupação dos homens é de 9%, para as mulheres, é de 13,9%.

Beto do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) ao lado de Rafaela Albergaria do Observatório dos Trens no IX Julho Negro. Foto: Vinícius Ribeiro
Beto do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) ao lado de Rafaela Albergaria do Observatório dos Trens no IX Julho Negro. Foto: Vinícius Ribeiro

A assistente social e coordenadora do Observatório dos Trens, Rafaela Albergaria, fez uma fala sobre a importância de políticas públicas, como a creche em horário integral e outros espaços que acolham as crianças enquanto suas mães estudam e trabalham.

“Falar sobre direito à cidade é falar sobre creche em horário integral para que as mulheres negras, que são aquelas mais assoladas pela fome, pela miséria, pelo desemprego, [para que] tenham a possibilidade de acessar um trabalho digno… Então, não é possível ter creche de sete às duas horas da tarde, isso não contempla a realidade nem dá dignidade às mulheres negras.” — Rafaela Albergaria

O espaço escolhido para o evento foi o Raízes do Brasil, o espaço do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) na cidade do Rio de Janeiro. O MPA tem como foco os pequenos agricultores rurais, a agricultura familiar, a alimentação orgânica e a ideia de que comer é um ato político, um dos princípios formativos do Julho Negro.

“Eu vim aqui participar mais uma vez do Julho Negro, porque teve uma edição que o pessoal teve lá no assentamento onde moro, no Terra Prometida, em Duque de Caxias, e a gente viu muitas interseções entre os problemas no campo e nas favelas… Então, sempre que a gente [no assentamento] pode, a gente participa do Julho Negro, porque, além da questão do racismo, a gente sofre o racismo ambiental. A gente é cercado por Furnas, pela Petrobras e a gente não tem direitos básicos como estrada, energia, sistema de saúde… a gente não é atendido por nada disso.” — Juliana Wu

Roda de conversa reuniu participantes, ao fundo da foto, na ponta da mesa, vê-se, da esquerda para a direita, Simone Lauar, Juliana Wu e Rafaela Albergaria no IX Julho Negro. Foto: Vinícius Ribeiro
Roda de conversa reuniu participantes, ao fundo da foto, na ponta da mesa, vê-se, da esquerda para a direita, Simone Lauar, Juliana Wu e Rafaela Albergaria no IX Julho Negro. Foto: Vinícius Ribeiro

Em 2024, essa importante articulação completa nove anos. Ao longo deste tempo, a rede amplificou as vozes daqueles que lutam por justiça e igualdade em todo o mundo, do Rio à Palestina. Gizele Martins, que já foi à Palestina, tem uma forte militância ligada à causa da sua libertação, e trouxe à discussão sua experiência de visitas ao país do Oriente Médio, que sofre acusações de apartheid e genocídio perpetrado por Israel.

“A Palestina me leva à África do Sul… Fui e voltei de navio… Essa travessia de navio foi muito louca, é lembrar do navio negreiro… na volta, vim da África do Sul para a Namíbia e de lá para o Brasil… Na África do Sul, visitei as lideranças que lutam pela Palestina e que lutaram contra o apartheid… Dei palestras nas escolas da Namíbia sobre as conexões entre as favelas e a Palestina… É preciso falar do processo de invenção do inimigo. Aqui no Brasil, é o povo negro, a favela, o indígena, o quilombo, os movimentos sociais, nós, os pobres, somos o inimigo. Lá na Palestina, a invenção de que eles são terroristas é usada como justificativa para o genocídio, como justificativa para matar… São as mesmas armas aqui e lá.

O número de comunicadores ou jornalistas assassinados [na Palestina é gigante]…. É um dos primeiros genocídios transmitidos ao vivo no mundo… O exército e a polícia israelenses são uns dos mais tecnológicos do mundo na forma de te matar; eles reconhecem os chips, localizam as lideranças palestinas pelos celulares e as matam. Então, há uma campanha sobre celulares na Palestina para usar o aparelho só por um dia, queimar e, então, passar a usar outro… Lá, só é seguro ficar com um celular se você for uma liderança visada por algumas poucas horas… A gente tem muitas semelhanças, óbvio que não é a mesma coisa, a gente tá vendo a realidade e a destruição da Palestina [em Gaza, mas, ainda assim, é comparável]… Choca aqui e lá quando tem as crianças assassinadas ou presas… Na Palestina, tem crianças presas a partir dos três anos às vezes… É entregar a vida pela oliveira, pela água, pela terra.” — Gizele Martins

Plantação palestina privada de oliveiras na época da colheita em 2022 em Wadi Rababa, na região de Silwan, a poucos metros da Cidade Velha de Jerusalém, em Jerusalém Oriental, capital da Palestina Ocupada. Foto: Julio Santos Filho/EAPPI
Plantação palestina privada de oliveiras na época da colheita em 2022 em Wadi Rababa, na região de Silwan, a poucos metros da Cidade Velha de Jerusalém, em Jerusalém Oriental, capital da Palestina Ocupada. Foto: Julio Santos Filho/EAPPI

Patrícia de Oliveira, da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência, igualmente já esteve na Palestina. Ela também trouxe suas vivências para a roda.

“Em vários lugares, encontramos pessoas resistindo… A questão lá é a terra… a gente foi num local que uma família quase acabou queimada porque os colonos israelenses atearam fogo nas casas palestinas… Um homem de um vilarejo próximo foi ajudar, tentar salvar uma pessoa e acabou morrendo. Ele levou um tiro na cabeça de um soldado israelense quando tentava resgatar a avó da família de dentro da casa que pegava fogo… Fomos em um campo de refugiados de 1948 e, quando chegamos, vimos que a juventude do território estava se organizando para ir pra rua. O clima estava tenso porque os israelenses tinham matado uma criança de dez anos. Com isso, não pudemos ficar muito tempo porque, com o movimento, vêm os drones e os carros dos soldados israelenses… também pegamos tiroteio antes de ir pro aeroporto. Nosso vôo era às 6h, tentamos sair à meia-noite, mas estava tendo tanto tiro que o motorista resolveu esperar antes de sair.” — Patrícia Oliveira

Em 2024, esse apelo pela solidariedade internacional do Julho Negro se fez presente, em especial, com relação à população da Faixa de Gaza, que, desde de outubro de 2023, resiste a uma agressão israelense, que, segundo o que a Corte Internacional de Justiça (CIJ) decidiu, depois de processo movido pela África do Sul, é plausível considerar como um caso de genocídio. Reforçando a decisão da Corte de Haia, da mesma forma, de acordo com a relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) Francesca Albanese, há motivos razoáveis para apontar que há um genocídio sendo perpetrado em Gaza. Portanto, mais do que nunca a Palestina esteve presente na roda de conversa do Julho Negro.

O Julho Negro já entrou para a agenda dos movimentos sociais como, além de um espaço de encontro, inspiração e fortalecimento mútuo, como um momento de celebração da solidariedade internacional entre territórios populares, suas tecnologias de vida e formas de resistência.

“Fiquei muito, muito feliz de ver essas pessoas que… são minhas referências de luta e de resistência. É com essas pessoas que eu construo a luta nesses 20 anos que eu sou integrante do movimento de favelas. Então, fiquei muito feliz de vê-las aqui, de ouvi-las e abraçá-las.” — Gizele Martins

Sobre o autor: Vinícius Ribeiro é nascido e criado na Zona Oeste, entre a Estrada da Posse, em Santíssimo, e o Barata, em Realengo. Atualmente, mora na Mangueira. Jornalista, cineasta e fotógrafo, é membro do Coletivo Fotoguerrilha. Assina direção e roteiro dos curtas SobreviverDame CandoleSob o Mesmo Teto e Entregadores. Atualmente, está em um projeto sobre uberização e precarização do trabalho.

Sobre a autora: Alice Machado, 24 anos, moradora de Anchieta e estudante de Serviço Social pela Uerj, formada em Comunicação Popular pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e fotojornalista pelo Coletivo de Mídia Independente Fotoguerrilha.


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