Festa da Pedreira de Xangô na Serrinha: Há Mais de 80 Anos Acontece a Celebração da Religiosidade Afrocarioca de Favela [IMAGENS]

O Alafin de Oió Mora na Pedreira: Kaô Kabecilê, Xangô!

Festa da Pedreira de Xangô acontece há aproximadamente 80 anos na Favela da Serrinha, em Madureira, onde essa celebração da religiosidade afrocarioca de favela persiste, arrastando todo ano fiéis à gruta da pedreira no alto da Serrinha no dia 30 de setembro. Foto: Rhuan Gonçalves
Festa da Pedreira de Xangô acontece há aproximadamente 80 anos na favela da Serrinha, em Madureira, onde essa celebração da religiosidade afrocarioca de favela persiste, arrastando todo ano fiéis à gruta da pedreira no alto da Serrinha no dia 30 de setembro. Foto: Rhuan Gonçalves

Esta matéria faz parte da série de Memórias de Potências Faveladas do RioOnWatch, que visa documentar e celebrar a história das favelas do Rio de Janeiro através de relatos e reportagens sobre a memória coletiva em sua luta cotidiana pelo direito a uma vida plena.

Pedindo licença aos mais novos e aos meus mais velhos, RioOnWatch exalta uma importante celebração religiosa da cultura afrocarioca e de favela que acontece há 80 anos, sempre no dia 30 de setembro: a Festa da Pedreira de Xangô, na favela da Serrinha, em Madureira, na Zona Norte. A fotorreportagem a seguir apresenta um panorama da festa a partir de três pontos de vista de crias da Serrinha, que têm raízes em matriarcas e patriarcas que fundaram a Serrinha, o G.R.E.S. Império Serrano, o grupo de Jongo da Serrinha e a Festa da Pedreira de Xangô. São eles: Elaine Casemiro, 53, assistente social e filha de Iraci Cardoso dos Santos, mais conhecida como Tia Ira Rezadeira, 87, principal organizadora da Festa da Pedreira de Xangô há 38 anos e herdeira espiritual de Vovó Maria Joana (1902-1986); Dário Onísègun, 40, babalorixá, ativista social e político, produtor, arte-educador, diretor artístico e neto de Cosmelino Simplício, ogã histórico do terreiro de Vovó Maria Joana e ritmista do Império—também avô de Pretinho da Serrinha; e Lucas Badecoo, 22, músico percussionista e neto do compositor da verde e branca da Serrinha, Silas de Oliveira.

Em partes do Brasil, Xangô é sincretizado com São Jerônimo, por isso, a imagem do santo católico está no centro das homenagens a Xangô na Festa da Pedreira da Serrinha. Foto: Rhuan Gonçalves
Em partes do Brasil, Xangô é sincretizado com São Jerônimo, por isso, a imagem do santo católico está no centro das homenagens a Xangô na Festa da Pedreira da Serrinha. Foto: Rhuan Gonçalves

Elaine Casemiro, cria da Serrinha e filha de Tia Ira Rezadeira, conviveu diariamente com Vovó Maria Joana. Ela é testemunha ocular das ações realizadas pela primeira matriarca da Serrinha. Vovó Maria Joana também atuou como parteira, rezadeira, líder comunitária, uma das fundadoras do G.R.E.S. Império Serrano e do grupo de Jongo da Serrinha. Ela teria 122 anos hoje. Uma personagem tão fundamental para o Jongo na cidade do Rio de Janeiro que, em 2024, a Câmara de Vereadores aprovou o Dia Municipal do Jongo e o Prêmio Vovó Maria Joana todo dia 24 de junho, Dia de Xangô, Dia de São João Batista, um dos santos católicos sincretizados com Xangô, e do aniversário de Vovó Maria Joana. Além disso, Vovó Maria Joana será enredo do carnaval 2025 do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos da Vila Santa Tereza, de Rocha Miranda: “Salve Vovó Maria Joana Rezadeira! Salve o Jongo da Serrinha! Saravá, saravá, saravá!”.

Tia Ira Rezadeira, desde 1986, assumiu a responsabilidade de organizar a Festa da Pedreira de Xangô. Foto: Rhuan Gonçalves
Tia Ira Rezadeira, desde 1986, assumiu a responsabilidade de organizar a Festa da Pedreira de Xangô. Foto: Rhuan Gonçalves

Vovó Maria Joana era uma biblioteca inteira, mas, quando ela morreu, ao contrário do que disse o poeta malinês Amadou Hampâté-Bâ, não foi como se uma biblioteca toda queimasse. Foi possível salvar muita coisa, nem tudo se perdeu, pois, ela transferiu parte de sua sabedoria espiritual e experiência para Tia Ira Rezadeira. Vovó Maria Joana não deixou que a morte levasse com ela todo seu saber, por isso, sobrevive em legado, através de Tia Ira, da Festa da Pedreira de Xangô e de tantas outras pessoas.

Desde 1986, ano da passagem de Vovó Maria Joana, Tia Ira Rezadeira assumiu a responsabilidade de organizar a Festa da Pedreira de Xangô. Portanto, a Festa da Pedreira de Xangô 2024 será a 38ª edição realizada sob regência de Tia Ira.

“Quando Vovó Maria Joana chegou nesse lugar que hoje é chamado Serrinha, a comunidade ainda não tinha nome. Ela faz parte dos personagens que vieram pra cá, construíram e fundaram esse lugar. Depois deram nome à comunidade. Eles vieram de diversos lugares, Vovó Maria Joana veio de Valença, na região do Vale do Café, na divisa com o estado de Minas Gerais, meu avô, Augusto Cardoso dos Santos, de fato, veio de Minas e Mano Décio da Viola da Bahia. Todos eles se encontraram no Rio, todos eram compadres, né?

Trouxeram uma gama de espiritualidade e ancestralidade dos seus que deixaram como legado toda essa cultura afro-brasileira incluindo os rituais de Umbanda, porque a maioria deles eram líderes espirituais.

Cada um se localizou num lugar estratégico que eles queriam. Vovó Maria era de Xangô e Iemanjá e ela se assentou no alto da Serrinha, mais precisamente na Rua Balaiada, 134, que antes chamava-se Rua Alice.

O orixá apontou para o alto do morro, para uma pedreira, que antigamente não tinha caminho, era tudo coberto por vegetação… Xangô mostrou esse caminho a ela, para onde tinha uma pedreira muito grande em forma de gruta. O orixá disse para Vovó Maria Joana que a partir daquele momento, todo 30 de setembro, Dia de São Jerônimo, que, no sincretismo, é Xangô, que ela subisse essa pedreira e louvasse a ele sem deixar que essa tradição morresse.

Vovó Maria Joana fez esse movimento até os 84 anos de idade, quando ela fez a passagem, mas ela já tinha preparado Tia Ira Rezadeira para dar continuidade a esse legado. Tia Ira Rezadeira, minha mãe, foi a primeira filha de santo de Vovó Maria Joana. Então, todo ano, 30 de setembro, a gente se prepara e sobe para a pedreira. A gente tira o mês de setembro para organizar o grande banquete do Rei.” — Elaine Casemiro

Xangô apontou para o alto do morro, onde antigamente não tinha caminho e era tudo coberto por vegetação, e mostrou a pedreira em forma de gruta, onde Vovó Maria Joana deveria realizar, a partir daquele momento, uma festa para ele todo ano em 30 de setembro. Foto: Rhuan Gonçalves
Xangô apontou para o alto do morro, onde antigamente não tinha caminho e era tudo coberto por vegetação, e mostrou a pedreira em forma de gruta, onde Vovó Maria Joana deveria realizar, a partir daquele momento, uma festa para ele todo ano em 30 de setembro. Foto: Rhuan Gonçalves

Segundo os moradores, essa celebração marcou todas as gerações de crias da Serrinha e ainda marca a história afrocarioca da Zona Norte. É o que também atesta Babalorixá Dário Firmino ao relembrar a trajetória de sua família na festa, um legado que vem desde seu avô, ogã do terreiro de Vovó Maria Joana. No entanto, ele também analisa o papel que o racismo religioso e a demonização das religiões de matriz africana têm tido no esvaziamento da festa ao longo dos anos.

A Pedreira de Xangô é um espaço sagrado, um território assentado na ancestralidade. Foto: Rhuan Gonçalves
A Pedreira de Xangô é um espaço sagrado, um território assentado na ancestralidade. Foto: Rhuan Gonçalves

Pai Dário, por outro lado, afirma que, mesmo com menos fiéis que antes, a Festa da Pedreira de Xangô resiste e segue sendo organizada todos os anos sob a batuta de Tia Ira na Serrinha:

“Desde que me entendo por gente, durante 40 anos, de algum modo, mesmo que quando criança, eu assistia a subida desses amalás—comida ofertada para Xangô—, o toque para Xangô, o cuidado com essa pedreira, com o lugar… Vovó Maria Joana faleceu em 1986, mas a Tia Ira já atuava como mãe de santo e como Rezadeira. Após o falecimento da Vovó Maria Joana, a responsabilidade da Tia Ira só se intensificou. Ela é quem dá continuidade, junto à Tia Evafilha de Vovó Maria Joana—, à Festa da Pedreira de Xangô.

A gente se reúne todo 30 de setembro. A comunidade hoje em dia ainda vai, mas ia muito mais. Era um número muito maior de pessoas, mas, por conta desse fanatismo religioso, por conta dessa invasão dessas religiões que acabam, de certo modo, demonizando as religiões de matriz africana, a gente perde um pouco de quórum, já que muitos moradores passam a seguir outras denominações religiosas. A festa perdeu, por um lado, um pouco o quórum interno, mas ela não acabou. A Tia Ira não permitiu que acabasse. Então, a gente continua subindo e fazendo a festa.

Nos últimos anos, a festa ganhou um quórum e visibilidade externa muito maior. Hoje, centenas de pessoas sobem aquela pedreira para louvar Xangô no dia 30 de setembro através de uma imagem de São Jerônimo, que é aquele santo barbudo que está sentado em uma pedreira com um leão aos pés que, na Umbanda, é Xangô por conta do sincretismo.

A Festa da Pedreira de Xangô talvez seja a maior festa religiosa dentro da Serrinha. As pessoas fazem seus pedidos e suas graças são alcançadas. A minha ligação pessoal e familiar é através do meu avô, Cosmelino Simplício, que era ogã do terreiro da Vovó Maria Joana. Meu avô era o homem que limpava o caminho inteiro, desde a casa da Vovó Maria Joana até a pedreira. Limpava e cuidava da pedreira para que, no dia 30, as pessoas fizessem as oferendas e a gira que acontece lá… Então, minha ancestralidade também fala por aquele lugar, porque o meu avô estava lá ajudando a construir o ritual em torno da pedreira e, hoje, de certo modo, eu ajudo a fazer com que isso se perpetue e não acabe.”

 

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Lucas Badeco, cria da Serrinha, músico percussionista e neto do compositor Silas de Oliveira, apesar da pouca idade, já coleciona diversas vivências da celebração do dia 30 de Setembro:

“Falar sobre a Pedreira de Xangô é falar de algo que considero importante pra cultura em geral. Essa tradição é muito importante porque a movimentação que tem no morro para esse dia de festa organizada pela Tia Ira é respeitada por todas e todos. Então, é simbólico vermos dezenas de pessoas subindo de branco a Serrinha, assim como aconteceu o samba lá em cima com o grupo Poeira Pura, no quintal da Tia Ira no aniversário da matriarca.

Eu tenho conhecimento da Pedreira já há bastante tempo, desde novinho a procissão passa em frente à minha casa. Lembro das pessoas paradas na escadaria, olhando. E, querendo ou não, criança é curiosa, então, eu sempre tava no quintal, às vezes tocando, ou só sentado mesmo quando a procissão passava. Aí, eu saía pra ver o que tava acontecendo. E aí, conforme a minha família já tinha passado pelo mesmo processo, chegou a minha vez de participar também. Eu não tenho religião, mas participo da Festa da Pedreira. Vou lá e toco, porque é algo que considero importante. Minha avó Gina mora na Rua Mano Décio da Viola e sempre sobe com o amalá na cabeça, então, querendo ou não, já é um movimento ancestral que carrego e que me emociona. Acompanhar esse momento em que a Serrinha pratica o combate ao racismo religioso é emocionante.”

Amalá, o banquete oferecido a Xangô, o Alafim de Oió. Notem a imagem de São Jerônimo, aquele que amansa o leão, que tem o poder da escrita e do livro, que escreve na pedra suas leis e seus julgamentos. Em várias partes do Brasil, Xangô da Pedreira é sincretizado com São Jerônimo. Foto: Rhuan Gonçalves
Amalá, o banquete oferecido a Xangô, o Alafim de Oió. Notem a imagem de São Jerônimo, aquele que amansa o leão, que tem o poder da escrita e do livro, que escreve na pedra suas leis e seus julgamentos. Em várias partes do Brasil, Xangô da Pedreira é sincretizado com São Jerônimo. Foto: Rhuan Gonçalves

Para apoiar a Festa da Pedreira de Xangô na Serrinha, a chave PIX é 021.082.527-89 (Elaine Casemiro).

Sobre o autor: Rhuan Gonçalves é natural de Macaé, cidade do Norte Fluminense, possui licenciatura em História pela PUC-Rio, dirige e produz o documentário “Menino de 47 Vai a Campo”, sobre a fundação do time profissional de futebol do G.R.E.S. Império Serrano, é fotógrafo do acervo do Imagens do Povo, vinculado ao Observatório de Favelas, localizado no Complexo da Maré, e ritimista do Império Serrano, da Estação Primeira de Mangueira e da Acadêmicos de Vigário Geral.


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