‘Saberes Afetivos e Sabores da Rede Favela Sustentável’ Encerra 13° Festival Filmambiente Dialogando Sobre Segurança e Soberania Alimentar nas Favelas

Participantes do evento “Saberes Afetivos e Sabores da RFA” posam para foto coletiva. Foto: Bárbara Dias/ComCat
Participantes do evento “Saberes Afetivos e Sabores da RFA” posam para foto coletiva. Foto: Bárbara Dias

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No dia 30 de agosto, na Arena Dicró, na Penha, Zona Norte do Rio, aconteceu a mesa de diálogoSaberes Afetivos e Sabores da RFS com oito mobilizadores de favelas do Grande Rio, que integram a Rede Favela Sustentável (RFS)*. O evento promoveu experiências que abrangem todo o ciclo do alimento, desde o plantio até o consumo, com foco na segurança e na soberania alimentar das favelas. A mesa fez parte do encerramento do 13° Festival Internacional de Audiovisual Ambiental (Filmambiente), que acontece desde 2011, exibindo o melhor do cinema mundial, dentro da temática da sustentabilidade.

Participaram os mobilizadores da Zona Norte: Luis Cassiano do Teto Verde Favela no Parque Arará; Valdirene Militão do Projeto Ricardo Barriga na favela Roquete Pinto, no Complexo da Maré e da Fiocruz Mata Atlântica; Claudia Queiroga do Gastromotiva no Engenho da Rainha; e Patrícia Ramalho do Eixo de Saúde da Redes da Maré e Maré de Sabores. Da Zona Central e Zona Sul estiveram presentes Silvania da Silva, do coletivo Erveiras e Erveiros do Salgueiro e Evânia de Paula do O Design e o Bem Viver do Vidigal. E estiveram presentes Anna Paula Salles, fundadora de A.M.I.G.A.S., associação de mulheres no Engenho, na cidade de Itaguaí, e Aparecida Passos, do Instituto Mãos à Obra, na cidade de Mesquita, ambos municípios da Baixada Fluminense.

Participante do evento “Saberes Afetivos e Sabores da RFA” cheira uma erva na banca das Erveiras e Erveiros do Salgueiro durante o Filmambiente. Foto: Bárbara Dias/ComCat
Participante do evento “Saberes Afetivos e Sabores da RFS” cheira uma erva na banca das Erveiras e Erveiros do Salgueiro durante o Filmambiente. Foto: Bárbara Dias

O evento teve início após a fala de abertura de Gisele Moura, coordenadora da equipe gestora da Rede Favela Sustentável. Ela agradeceu pelo convite do Filmambiente, à Arena Dicró pelo espaço para realização do evento e à AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, que apoiou uma recente sistematização do trabalho do Eixo de Soberania Alimentar da RFS.

“A Rede Favela Sustentável é uma grande articulação de mobilizadores e aliados técnicos, somos 700 pessoas reunidas em rede, representando mais de 300 favelas que, juntas, estão lutando, pautando a justiça climática e a resiliência socioambiental das favelas do Grande Rio.” — Gisele Moura

Mesa 1: Água, Solo, Plantio e Hortas Comunitárias

A primeira mesa começou com a fala de Luis Cassiano, morador do Parque Arará. Luis desenvolve um impactante teto verde em sua residência. Em sua apresentação, falou sobre o que é essa tecnologia e como ela conseguiu reduzir a temperatura de sua casa, tornando o ambiente mais saudável e agradável.

“No Arará, é bem quente. Super quente. É uma favela que não tem mais lugar, não tem terreno para mais nada. A favela agora cresce para cima. Eu tenho uma casa que tem cinco andares e, nesse último andar, eu tenho um telhado verde.” — Luis Cassiano

Luis falou da possibilidade de usar o teto verde como local de plantio de algumas variedades de plantas comestíveis e de uso fitoterápico ou medicinal. Além disso, o teto verde, segundo ele, é uma alternativa a ser usada em pequenos espaços, como varandas e tampas de caixas d’água.

“Aí, vocês vão perguntar: mas e a soberania alimentar, você consegue plantar comida lá em cima do teto verde? Bem, horta eu não consigo. Porque, vamos dizer, uma alface ou uma couve vai precisar de terra para enraizar. Mas eu tenho outras coisas ali que são comestíveis… como a palma… Até o fruto dela é comestível. Tem bastante babosa. Tem algumas ervas medicinais. Saião dá de boa… além disso, na parte de baixo, no quarto andar da minha casa, tenho a minha varanda cheia de plantas. E [ali] agora eu estou numa transição de plantar realmente comida. Então, eu estou com os meus pezinhos de couve, com os meus pezinhos de alface. Tem bastante frutífera também.” — Luis Cassiano

Luis Cassiano, à esquerda, Evânia de Paula, no meio, e Gisele Moura, à direita, participam da mesa “Água, solo, plantio e hortas comunitárias” durante o Filmambiente. Foto: Bárbara Dias/ComCat
Luis Cassiano, à esquerda, Evânia de Paula, no meio, e Gisele Moura, à direita, participam da primeira mesa “Água, solo, plantio e hortas comunitárias” durante o Filmambiente. Foto: Bárbara Dias

Evânia de Paula, cria da comunidade do Vidigal, artista plástica e doutoranda pela PUC-Rio, deu seu relato sobre o projeto O Design e o Bem-Viver.

“É o design que fala sobre o modo de vida sustentável. Como Cassiano estava relatando, nós, seres humanos, temos uma necessidade biocêntrica de estar em contato com a natureza… E o trabalho do design, do artista plástico, deve ser sustentável. A minha comunidade cresceu verticalmente e pouco tem de natureza, de meio ambiente. O Vidigal está afetado pelo concreto, está tudo concretado!” — Evânia de Paula

Ela fala de como as parcerias que ela tem no Vidigal, com a ONG Horizonte e o Comunidade Recicla, a permitem fazer um trabalho de oficinas de arte, além do desenvolvimento de uma horta comunitária.

“Na comunidade, a Comlurb não leva todo o lixo e, o que a Comlurb não leva, a comunidade joga na encosta. Sendo assim, a encosta estava com muito lixo e o projeto Comunidade Recicla limpou a área e retirou aquele lixo. Agora, em um dos pontos limpos, estamos desenvolvendo uma horta comunitária.” — Evânia de Paula

Com o lixo sendo retirado das encostas do Vidigal, veio a inspiração para a criação de uma obra de arte.

“Eu vi uma tartaruga sendo resgatada do mar, morta. Então, eu fiz essa arte para servir de inspiração para nós refletirmos sobre o que fazemos com o nosso lixo. Para onde vai o nosso lixo? Temos que pensar sobre isso!” — Evânia de Paula

Mesa 2: Ervas e Matos de Comer, Agroecologia e Utilização Integral do Alimento

Silvania da Silva, uma erveira do Salgueiro, começou sua fala enfatizando sua trajetória, que é uma continuidade ancestral do trabalho que sua avó também fazia com ervas.

“Eu fui criada com xarope de agrião, saúde do dia a dia. Foi com xarope de agrião que minha avó me criou. Com a tecnologia, com o desenvolvimento, [essa tecnologia ancestral] foi se perdendo. Então, o nosso grupo tem um trabalho de resgate e de preservação na parte de alimentação, na parte de ervas e na parte espiritual também. Esse trabalho, para mim, tem um significado enorme.” — Silvania da Silva

Além do trabalho com ervas medicinais e espirituais, Silvania também trabalha no âmbito do projeto Hortas Cariocas.

“Tem a horta carioca lá no Salgueiro, que é muito importante, porque é produzida a alimentação e é distribuída para a Escola Bombeiro Geraldo Dias, onde eu estudei, minha tia estudou, meu pai estudou… é um patrimônio da nossa comunidade. Então, a nossa horta produz, a nossa horta entrega para a escola e a nossa horta distribui para os moradores também.” — Silvania da Silva

Valdirene Militão e Silvania da Silva participam da mesa "Agroecologia, alimento, ervas e matos de comer e utilização integral do alimento" durante o Filmambiente. Foto: Bárbara Dias/ComCat
Valdirene Militão e Silvania da Silva participam da segunda mesa “Agroecologia, alimento, ervas e matos de comer e utilização integral do alimento” durante o Filmambiente. Foto: Bárbara Dias

Valdirene Militão, do Projeto Ricardo Barriga, falou sobre hortas como forma de produção de alimento saudável e de promoção de saúde.

“Quando a gente fala na implementação de uma horta, isso é saúde. A gente está gerando o nosso próprio alimento, plantando sem agrotóxicos frutas, ervas, verduras, legumes.” — Valdirene Militão

Valdirene falou também de sua horta na laje, que, dentro do Complexo da Maré, cria um espaço verde. Segundo ela, é um local onde se planta e se colhe alimento, mas, acima de tudo, é um território de bem estar.

“Hoje, eu falo da minha horta na laje dentro da favela da Maré, no quarto andar [do prédio onde moro]. O que significa para o território minha laje arborizada? Quando se fala em bem estar, dou meu filho como exemplo. Durante a pandemia, ele falou assim: ‘eu vou para a laje, vou para a horta da minha mãe porque lá eu fico em paz, lá me sinto bem’. Então, hortas estão para além do alimento.” — Valdirene Militão

Mesa 3: Cozinha Afetiva, Alimentação Solidária e Sustentável

A última mesa começou com o relato de Claudia Queiroga da cozinha solidária do Engenho da Rainha. O objetivo do projeto Gastromotiva é levar refeições saudáveis e completas para populações em situação de vulnerabilidade social.

“Eu escolhi doar marmitas na pandemia para pessoas em vulnerabilidade social, nas ruas… E, para lidar com pessoas na rua, precisa ter, primeiramente, amor… não é fácil, eles questionam a gente. Querem saber por que a gente está fazendo aquilo para eles. E a única palavra que eu encontrava é que eu precisava dar a eles um pouco de amor em forma de marmita, um pouco daquilo que aprendi com minha avó… Sempre digo que ser criada por vó foi o que me deu autoridade para falar sobre alimento. Todos aqui falamos sobre a importância da terra, da água, do alimento… eu busco o alimento como cura.” — Claudia Queiroga

Da esquerda para direita: Anna Paula Salles, Patrícia Ramalho, Aparecida Passos, Claudia Queiroga e Gisele Moura na mesa “Cozinha afetiva: Alimentação solidária e sustentável” durante o Filmambiente. Foto: Bárbara Dias/ComCat
Da esquerda para direita: Anna Paula Salles, Patrícia Ramalho, Aparecida Passos, Claudia Queiroga e Gisele Moura na mesa “Cozinha afetiva: Alimentação solidária e sustentável” durante o Filmambiente. Foto: Bárbara Dias

A história de Anna Paula Salles do projeto A.M.I.G.A.S. de Itaguaí também é sobre uma cozinha solidária. Ela começa seu projeto com a ajuda de vizinhas e pessoas próximas. Como ela fala, tudo no “nós por nós”. Até que ela conseguiu ganhar um edital do projeto Gastromotiva e, finalmente, pôde estruturar melhor sua iniciativa na favela do Engenho.

“Em meio à tristeza e à contagem de casos de infecção e óbitos pelo Painel Unificador Covid-19 nas Favelas… em dezembro de 2020, eu atendi uma mulher que estava toda queimada por ter feito comida no álcool. Eu atendi ela e vi aquela situação, aquela dor e eu não podia dar uma cesta básica para ela, porque ela ficou traumatizada em fazer comida na lenha. Eu comecei a ouvir outros relatos, visitar outras casas com mulheres fazendo comida na lenha.

E então, do nada, sem um tostão, somente com a vontade de fazer, a gente criou a Cozinha Solidária Itaguaí, com uma grande mobilização comunitária. Nenhuma autoridade ajudou, nenhum deputado, nenhum vereador, nada. Nós por nós. Cada mulher, cada amiga, cada inimiga doando um feijão, um arroz e, assim, a gente conseguiu fazer o primeiro sopão comunitário.” – Anna Paula Salles

Aparecida Passos do Instituto Mãos à Obra em Mesquita, em seu trabalho de orientadora social, faz uma escuta ativa e afetiva de mulheres em sofrimento. Ela elaborou junto ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) um projeto de plantio de hortas.

“O projeto Mãos à Horta… uns pneus velhos… Eu arranjei uns jalecos para as mulheres, para que elas pudessem estar engajadas e não sujar suas roupas… Por que foi feito no CRAS? Porque elas tinham aulas nesses CRAS, pois eles são ligados a um colégio municipal. Então, automaticamente, junto com essas mulheres que tinham aulas… estavam as crianças, aprendendo o plantio e como poderiam ter uma alimentação saudável.” — Aparecida Passos

Patricia Ramalho conta que o tema da segurança alimentar na Redes da Maré começou há alguns anos, a partir da demanda de mães de alunos participantes do projeto, que tinham interesse em cursos profissionalizantes. A partir daí, foi idealizado um projeto de gastronomia.

“Durante o projeto, na formação em gastronomia, as mulheres também tinham formações de gênero, cidadania e direitos humanos. E, a partir daí, a gente formou o buffet Maré de Sabores, que gera trabalho e renda para essas mulheres. Enfim, acho que não sei um número exato, mas são milhares de mulheres. O buffet é exclusivamente composto por mulheres da Maré.” — Patricia Ramalho

Ela conta que, além da profissionalização das participantes, refeições também são doadas para famílias vulnerabilizadas, garantindo uma base para outras conquistas.

“A doação de 500 refeições diárias para pessoas em situação de rua e para famílias que se encontram em situação de insegurança alimentar… É isso que todo mundo falou aqui: a alimentação é o primeiro passo para as pessoas conseguirem seus outros direitos.” — Patricia Ramalho

Todo o evento foi permeado por uma profunda e enriquecedora construção de saberes coletivos. Os mobilizadores compartilharam suas vivências e abordaram soluções para garantir a segurança e a soberania alimentares nas favelas. Acima de tudo, foi enfatizada a autonomia, a sustentabilidade e a saúde baseada em tecnologias ancestrais como traços característicos das favelas.

O fortalecimento de ações coletivas e comunitárias se dá na escuta e no compartilhamento de saberes e fazeres. É como afirma o provérbio africano: “Se quer ir rápido, vá sozinho. Se quer ir longe, vá acompanhado”. A mesa de diálogo “Saberes Afetivos e Sabores da RFS” possibilitou a troca de experiências e o crescimento do movimento de projetos importantes de segurança e soberania alimentar nas favelas, para que cada vez mais se multipliquem.

Não perca o álbum por Bárbara Dias no Flickr:

Mesa de Diálogos "Saberes Afetivos e Sabores da RFS" no Filmambiente, 30 de agosto de 2024

*A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são articulados pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).

Sobre a autora e fotógrafa: Bárbara Dias, cria de Bangu, possui licenciatura em Ciências Biológicas, mestrado em Educação Ambiental e atua como professora da rede pública desde 2006. É fotojornalista e trabalha também com fotografia documental. É comunicadora popular formada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e co-fundadora do Coletivo Fotoguerrilha.


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