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Imagine acordar um dia, em uma manhã comum, e, de repente, ser interrompido pela polícia avisando: “Saia de casa agora, porque vamos derrubar tudo!”. Famílias inteiras com idosos, crianças, pessoas com deficiência, mães solo, todas sendo postas na rua sem aviso, sem apoio e sem rumo. Foi assim que, no dia 19 de agosto, as famílias do Parque União, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio, foram acordadas.
Desde então, um movimento de resistência e luta pelo direito à moradia tem se fortalecido e tomado as ruas. Famílias resistem a sair e ocupam os imóveis que construíram para moradia própria. Já foram demolidos 32 prédios e 162 apartamentos. As operações policiais que acompanham os órgãos de demolição levam pânico à favela e causaram o fechamento de 26 escolas municipais da região, deixando milhares de alunos sem aula.
No dia 3 de setembro, 14° dia de operação, três pessoas foram assassinadas, houveram relatos de moradores torturados, invasões a residências e pertences roubados por agentes públicos. Um ônibus do BRT Transbrasil foi alvejado por tiros. Por sorte nenhum passageiro ficou ferido. Ao longo de todo o dia, foram postas em risco centenas de milhares de vidas de moradores do Complexo da Maré e de todos que circulavam nas grandes vias expressas que circundam o complexo de favelas, entre elas a Linha Vermelha, Avenida Brasil e Linha Amarela.
No total, têm sido 14 operações policiais em dias consecutivos ou muito próximos uns dos outros, focados no Parque União e na Nova Holanda, mas com incursões policiais se espraiando em determinados momentos para outras favelas do complexo, como Parque Maré, Rubens Vaz, Morro do Timbau, Baixa do Sapateiro, Vila do João, Vila dos Pinheiros e Conjunto Esperança.
A maior universidade federal do país, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), liberou os alunos e professores por conta dos tiroteios, cancelou diversas aulas e fechou seus institutos em alguns momentos ao longo das semanas de operação. Ao longo de todo o dia, 38 escolas suspenderam as aulas. Em ano eleitoral, moradores denunciam o caráter eleitoreiro das ações da Prefeitura, da Polícia Militar (PMERJ) e da Polícia Civil.
Uma família tem postado em tempo real. Greice Kelly dos Santos, 23, é mãe de três crianças, entre elas um bebê de um mês de idade. Ela e seu irmão de 17 anos vêm divulgando amplamente em suas redes sociais os desmandos da polícia e da Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP) da Prefeitura do Rio de Janeiro:
“A delegada disse que acionaria o Conselho Tutelar para retirar meus filhos porque eu estava expondo eles a riscos.”
Quando, na realidade, quem estava expondo seus filhos e toda a população do Parque União a riscos era a Prefeitura do Rio de Janeiro, a PMERJ e a Polícia Civil.
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As autoridades invadiram casas, agrediram pessoas e demoliram imóveis sem a ciência dos moradores que, ao chegarem do trabalho, se depararam com suas casas totalmente reviradas, com portas arrombadas, ou, nos piores casos, demolidas com todos os móveis e pertences furtados ou destruídos.
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Muitos mareenses denunciam que, além de casas, perderam seus locais de trabalho e se sentem completamente desamparados e injustiçados:
“Sou massoterapeuta, dei entrada nessa casa com a grana de um processo de assédio moral na empresa em que trabalhei. Aqui, além de minha casa, era também meu estúdio de atendimento. Sou uma mulher sem rede familiar, precisei buscar um acolhimento. Minha sorte é que eu consegui acolhimento aqui na favela mesmo. Mas estou completamente sem rumo.”
Na mídia dominante, proliferam informações de que os moradores que reagiram são criminosos ou aliados a criminosos porque os únicos espaços-alvo mostrados pela mídia, em construção, eram supostamente erguidos pelo tráfico, com blindex, mármore, piso de porcelanato e piscina. Porém muitas moradias-alvo já estavam ocupadas. Faziam parte do mesmo condomínio e haviam sido vendidas para pessoas trabalhadoras, famílias e pessoas em vulnerabilidade. E, assim, com essas imagens e informações parciais, se justifica todo tipo de violência.
Enquanto isso, a população se organiza dentro do possível através de protestos com pedidos desesperados de ajuda, que somente ganham algum tipo de visibilidade em meios comunitários, como o Maré Vive, o Jornal O Cidadão e o Maré de Notícias.
O Prefeito Eduardo Paes faz das remoções seu cartão de visita, de campanha, de ativação do ódio contra pobres. Nosso atual “prefeito das remoções” supera até o Pereira Passos.
Nesse bojo, os direitos fundamentais dos moradores de favela são violados, ignorando-se que o direito à moradia é um direito humano e constitucional. Em ano eleitoral, o prefeito intensifica as ações de remoção e se beneficia disso em meio à campanha, com a retórica de combate ao crime e de instauração da lei e da ordem. Isso se soma à imagem de bom malandro, carioca da gema, que beija mãos de mulheres e aparece em sambas de forma inesperada. Um simulacro de parceiro do povo. Em entrevista ao jornal comunitário Maré de Notícias, uma moradora de 20 anos, que mora em um dos imóveis alvo da demolição, relatou:
“Eu penso em continuar na minha casa, não vou sair até porque eu não tenho para onde ir. Meus filhos são pequenos ainda… Não tá tendo aula, eu tenho que levar ela [a filha pequena] no posto e não tá tendo [atendimento].”
Uma de suas vizinhas, em conversa com o RioOnWatch, contou:
“Há cinco anos, sofri um acidente e fiquei com deficiência física. Minha família me ajudou, cada um deu um pouco, os amigos também e, assim, comprei meu imóvel. Me sustento com o Benefício Assistencial à Pessoa com Deficiência (BPC-LOAS). Não tenho como comprar outra casa e ninguém, nenhuma autoridade me ofereceu uma casa. Fui no CRAS e me disseram que vão me colocar no Minha Casa Minha Vida, mas esse imóvel sai quando? Onde? Minha casa era tudo o que eu tinha!”
Nas redes sociais, ao Maré Vive, outra moradora, de 30 anos, manicure e esteticista, contou, tristonha, que:
“Essa era minha loja de trabalho… quando pensei que trabalharia por conta própria, eles vêm e destroem tudo sem nenhum aviso.”
Segundo a Fundação João Pinheiro (FJP) existe um déficit habitacional de 544.275 domicílios no estado do Rio de Janeiro—o maior desde 2016. O trabalho aponta variados graus de deficiência em moradias no Rio de Janeiro. Onde está a preocupação do Estado enquanto provedor de direitos para garantir o direito à moradia destas pessoas? Uma mãe, de 38 anos, de uma criança de cinco, desabafa:
“Os policiais chegaram nos humilhando, dizendo que moramos em condomínio de bandido. Eu trabalhei a vida toda pra juntar a grana da entrada dessa casa e pago as prestações e ainda falta bastante. Pra onde vou agora com meu filho? Não veio ninguém falar comigo sobre aluguel social ou qualquer apoio. Eu tô vendo no jornal dizer que está sendo oferecido, mas não é verdade!”
Para piorar o cenário de política de morte, o Governador Cláudio Castro continua a política de execução amplamente aplicada por seu antecessor Wilson Witzel, que teve como mote de campanha a célebre frase “vamos mirar na cabecinha e fogo!”. Em nome desta política de morte, de 2020 a 2024, segundo apontam dados estratificados das publicações da Redes da Maré, os moradores do Complexo da Maré sobreviveram a mais de 120 operações policiais, que sempre deixam mortos, feridos e causam a interrupção de direitos em saúde, educação e empregabilidade, além de muito prejuízo financeiro.
Têm havido também denúncias de ameaças contra comunicadores comunitários da Maré, que cobriram as operações e os episódios de violência e brutalidade policial. Este é o caso do comunicador Caitano Silva, do Parque União, que relatou em seu Instagram ter sofrido ameaças de policiais depois de ter postado imagens denunciando que agentes do Estado estavam arrombando e invadindo casas e lojas em uma localidade da Maré. O vídeo viralizou nas redes sociais e, logo em seguida, os policiais voltaram à cena do crime, ao local onde a denúncia havia sido gravada, a procura de quem havia filmado a ação ilegal dos agentes do Estado.
Como há em frente ao local do crime uma creche, policiais fortemente armados invadiram a creche em funcionamento, com dezenas de crianças em suas dependências, e começaram a ameaçar funcionárias e professoras, pressionando para que delatassem quem havia feito as imagens. Caitano foi acionado por moradores para cobrir essa nova denúncia, desta vez, na creche. Ao chegar no local, ele viu que dezenas de policiais apontaram para ele e disseram: “é ele!”. Moradores presentes relatam ter ouvido policiais ameaçarem Caitano dizendo: “toma cuidado, sua hora está chegando, você está na mira”. O comunicador popular decidiu denunciar essa situação em suas redes sociais como forma de se proteger, de deixar documentadas as ameaças perpetradas contra ele por policiais.
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Essa crise afeta toda a população da Maré, sobretudo, as crianças, que têm seus direitos à educação e ao lazer negados. Milhares de crianças na Maré ficaram sem aula devido às recentes operações, é o que lamentou uma manicure:
“Eu moro na Nova Holanda, nem é perto da área da remoção, mas há dias sigo com minha filha em casa sem aula. Ontem, mandaram abrir as escolas, mas eu não mandei ela porque tem muita polícia e caveirão na favela. Fico com medo dela ficar no meio de um tiroteio.”
No dia 4 de setembro, a Maré amanheceu sem tiros. Aparentemente, não haveria operação. Então, mesmo com a tensão no ar, devido à possibilidade de uma nova operação, que poderia começar a qualquer momento, as escolas reabriram e alguns alunos voltaram a estudar.
O desrespeito à população não é recente. Em 2021, em meio à pandemia, pessoas foram removidas na Nova Holanda e, à época, houve o mesmo modus operandi por parte das forças do Estado. O presidente da Associação de Moradores da Nova Holanda na ocasião, Gilmar Júnior, hoje explica que no caso do condomínio sendo derrubado atualmente, não houve nenhum aviso ou notificação de irregularidade dada pelas autoridades durante todo o processo de construção:
“Os moradores estão desesperados, pois não há direito ao aluguel social ou a outro programa social. Hoje, destruíram o sonho do morador. Antes, era um terreno vazio, sem nenhum projeto para o local. A periferia sempre fica para trás. Estamos indignados!”
O avanço de grupos milicianos, inclusive, através de figuras políticas eleitas é escancarado no Rio de Janeiro. As milícias perpetram práticas anti-democráticas, como o curral eleitoral, penetram no Estado e aplicam diversas outras estratégias mafiosas sofisticadas para se manter no poder. O assassinato da vereadora cria da Maré Marielle Franco denota a força das milícias e de sua sanha por terra.
Há tempos, percebe-se o avanço da exploração imobiliária como um dos principais braços financeiros do crime organizado carioca, seja da milícia ou das facções do tráfico de drogas. As quadrilhas da especulação imobiliária ilegal exploram e põem em risco pessoas de baixa renda, desassistidas pelo Estado e pelo mercado imobiliário formal, e ganham muito dinheiro e influência política a partir do parcelamento fácil e das acessíveis condições de pagamento, ao mesmo tempo em que, para os moradores, é talvez a única possibilidade de realizar o sonho da casa própria. Essas quadrilhas, segundo a polícia, passaram a fornecer moradia para grandes parcelas da população que, de outra forma, ficariam desamparadas. Enquanto os bancos impõem regras praticamente inatingíveis para pessoas de baixa renda e faveladas, as milícias e o tráfico facilitam, aquecem um mercado lucrativo, que tem trazido cada vez mais influência territorial e política para as quadrilhas que atuam no Rio de Janeiro. Quem perde? Quem sempre perdeu e ficou para trás: os moradores de favela, a maioria afro-brasileira, cujo direito à moradia, desde a abolição da escravatura, vem sendo sistematicamente negado. Às favelas, restam poucas opções: a auto-construção, a construção coletiva por meio de mutirões ou a mercê de quadrilhas que tentam lucrar com a negligência do Estado.
*Os nomes de todos envolvidos no texto, todos moradores da Maré, são fictícios para preservar a segurança dos mesmos.