Click Here for English
Esta matéria faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses.
No sábado, 17 de agosto, a defesa da moradia e sua relação com a preservação e o cuidado com o meio ambiente estiveram presentes no mutirão da Vila da Lagoa na Lagoa da Tijuca, bairro do Itanhangá, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro. A ação promoveu a restauração da vegetação de mangue e melhorias no escoamento da água e do esgoto. Estes haviam sofrido com o aterramento da região pela Prefeitura em julho de 2024, quando, de forma truculenta, iniciou-se a construção de uma praça, destruindo árvores e parte de uma Área de Preservação Permanente (APP), preservada pelos moradores há pelo menos 20 anos.
A Vila da Lagoa está inserida em uma região protegida, às margens da Lagoa da Tijuca e vizinha de ilhas como a Ilha da Gigóia e a Ilha Primeira. A comunidade tem duas entradas, uma pela Estrada do Itanhangá e outra de barco, pela lagoa. O território se caracteriza por seu aterramento em formato retangular, com 12m de largura por 200m de comprimento, e é ocupado somente por residências. No momento, são 16 edificações com 70 residências e aproximadamente 100 moradores.
A Vila da Lagoa sofreu com investidas da especulação imobiliária, com propostas e projetos de construção civil desde, pelo menos, 2016. A última delas foi a tentativa de implantação de uma praça, que tem se tornado motivo de preocupação para a Vila, por comprometer o cuidado ambiental realizado pelos moradores.
A praça seria levada a cabo em um espaço de 12m x 30m, destinado pelos moradores há décadas ao retorno e estacionamento de seus veículos, local de acesso a um ponto de atracação de barcos que transportam moradores e visitantes, e parte reservada para futuras instalações de saneamento ecológico, importante para a preservação ambiental, fauna e a flora do que muitos chamam de Pantanal Carioca.
História da Vila da Lagoa
A história da Vila se inicia nos anos 1970. Na época, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), órgão do governo federal, estava com obras na região e as sobras dos materiais eram aproveitadas para realizar aterros, que ganharam escala e formaram boa parte dos territórios hoje habitados na localidade. Foi assim que surgiram várias comunidades e condomínios no entorno da Lagoa da Tijuca, inclusive, a Vila da Lagoa.
Durante a década de 1990, a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) foi convocada pelo Ministério Público Federal (MPF) que abriu um inquérito para iniciar maior fiscalização na região e controlar o avanço populacional. A Prefeitura do Rio também esteve presente na época para acompanhar o caso. O aterramento da Vila foi encerrado entre os anos de 2002 e 2003.
A última tentativa de aterramento foi denunciada durante a vigência deste inquérito, quando um antigo morador da Vila construiu no final da Vila (no atual estacionamento) uma murada de pedras. No entanto, a obra avançava sobre a Lagoa, ocupando ainda mais o espaço pertencente à União. Assim sendo, a construção foi considerada irregular e foi barrada pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMAC), o que acarretou, entre outras medidas, em multa para o responsável pela obra.
Após a saída desse morador, o espaço ficou vago e passou a ser cuidado por outros moradores. Entre os anos de 2005 e 2016, graças à essa mobilização, foram feitos o estacionamento e area de retorno de veículos, espaço de atracação de embarcações e revitalização da vegetação do mangue.
Em 2012, no processo de legalização do entorno, o Instituto de Terras e Cartografias do Estado do Rio de Janeiro (Iterj) cadastrou em uma única matrícula três endereços, o da Vila da Lagoa, a Vila do Seu Chico e a comunidade da Pedra do Itanhangá, além de nomear o espaço que os moradores haviam destinado ao uso comum e preservação na Vila da Lagoa como praça.
Em 2019, a Vila da Lagoa foi contemplada pelo edital do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), com a ajuda da Pastoral de Favelas. A Pastoral de Favelas, em 2017, após uma visita à Vila onde constatou a situação precária de saneamento, dedicou-se a desenvolver um projeto de esgoto ecológico, sob a liderança da arquiteta Sandra Kokudai.
Em 2023, o Programa Cidade Integrada distribuiu cartilhas onde divulgava o projeto da Praça do Itanhangá, do arquiteto Marcelo Mourão, sob a coordenação de Ruth Jurberg. A planta propunha a total ocupação da área e ainda uma possível remoção de casas do local, além de ocupar a APP existente. Com isso, em julho de 2024, a Vila da Lagoa enfrentou nova tentativa de obras que visavam a implantação da praça, que ia contra o trabalho de preservação já em andamento dos moradores. Sem permissão da União, a Prefeitura esteve no local com máquinas e deixou um rastro de destruição e prejuízos. Na ocasião, operários aterraram a canaleta de escoamento de água de chuva e de esgoto. Com isso, a passagem de pedestres e a entrada das casas começou a alagar quando chove. Além disso, durante a intervenção da Prefeitura, danificou-se uma das colunas da última casa da Vila, que rachou, comprometendo a sua estrutura.
Além disso, nesta última visita da Prefeitura, plantas e árvores cultivadas há mais de 20 anos por moradores foram arrancadas pela Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb), deixando o espaço irreconhecível.
Alessandra Lima*, que acompanha de perto a situação na Vila da Lagoa, afirma que a comunidade tem enfrentado desafios crescentes nos últimos meses. Ela também aponta múltiplas barreiras impostas pela burocracia estatal para quaisquer modificações nas casas da Vila e, sobretudo, com relação ao processo de regularização fundiária e titulação:
“Não tem condições de ninguém fazer uma obra sem ter autorização de quem tem o dominio da área, que é a União. A Prefeitura não tem o poder de chegar ali e fazer nada sem autorização legal, porque o local também abriga área de preservação permanente. Isso tudo ali está demarcado no processo de legalização fundiária… O processo tem mais de dez anos. A última vez que fomos à SPU ainda era um outro presidente. Havia uma exigência de ter alguma planta, porque o processo estava parado. Foi cumprida a exigência, mas o processo continua parado. Então, não é um processo que caminha com facilidade e rapidez, até porque para haver a legalização fundiária a União vai verificar as plantas, demarcações, [antes de] autorizar. O processo vai voltar provavelmente para o Iterj, que é responsável em executar as plantas e cadastro dos imóveis… Então, nossa luta continua!”
Mutirão pela Preservação Ambiental do Território
A Vila da Lagoa está comprometida com a recuperação da vegetação de mangue, um ecossistema vital tanto para a proteção ambiental quanto para a qualidade de vida dos moradores. O mangue atua como uma barreira natural contra a erosão, protege a biodiversidade e contribui para a estabilidade do clima, além de ser uma fonte de sustento para as famílias que promovem, entre outras atividades, passeios de barco para turistas.
Com cerca de 30 voluntários, o mutirão reuniu instituições como a Pastoral de Favelas, o Conselho Popular, a Ocupação Centro, o Grupo de Escoteiros 77 Uirapuru da Ilha do Governador, estudantes e professores universitários da PUC-Rio e da UFRJ, além de moradores da Vila da Lagoa e de outras favelas, entre elas Rocinha e o Complexo da Maré. Seu objetivo era limpar a sujeira deixada no mangue pela Prefeitura, replantar mudas arrancadas pela Comlurb e implementar um modesto sistema de saneamento temporário, capaz de suprir as necessidades básicas até a implantação de projetos mais adequados ao território, seu terreno e suas dimensões.
Alessandra ressalta que a negligência do Estado acompanha a Vila da Lagoa desde sua fundação. Ela também relembra que períodos eleitorais não têm sido tranquilos para os moradores, que vêem as ameaças à sua permanência aumentar, fruto do eleitoralismo alheio:
“Mesmo a Prefeitura sabendo que a praça seria em uma área de preservação, que pertence à União, a questão [desse projeto] é um pouco eleitoral. Em 2022, a Prefeitura derrubou um muro que delimitava uma área entre a Vila da Lagoa e uma outra vila ao lado e era numa época pré-eleitoral. Agora, retorna novamente tentando fazer uma obra tipo ‘pé na porta’ [sem aviso prévio] e saiu correndo porque, no mesmo dia, o Ministério Público Federal abriu uma Ação Civil Pública (ACP) questionando o que estava sendo feito aqui. Nos três dias em que os funcionários da Prefeitura ficaram aqui com máquinas, eles cortaram árvores e jogaram aterros em cima… [Mataram] mudas do mangue que ainda estavam sendo cuidadas. É uma área que nós tentamos há anos deixar preservada porque soubemos, a partir da multa do último aterramento de 2003-2004, que é uma área que não pode ser edificada. Ela foi anexada ao processo de legalização fundiária que existe, mas como existe a denominação de ‘praça’ dessa área, as pessoas confundem seus interesses e tentam fazer essa praça… [Enquanto isso] a Vila nunca recebeu sistema de esgoto, não temos água regular, pavimentação. Ou seja, nos 200m da Vila, onde há necessidade real de existir intervenção do poder público, nada é feito e somos ignorados.”
A moradora relata uma série de desafios e conquistas com relação à preservação do manguezal e à qualidade de vida da comunidade local frente à falta de infraestrutura e de serviços públicos, em meio a conflitos por terra:
“Em 2016, com a chegada do metrô, aumentou o volume de pessoas que começou a utilizar o serviço de barco-táxi para fazer a travessia, já que a Estrada do Itanhangá começou a ficar muito engarrafada na hora de pico… O mangue estava sendo muito degradado. Então, em 2017, nós, moradores, barqueiros e pessoas ligadas ao meio ambiente, fizemos um mutirão e foi construído um deck com 30m de comprimento, e as laterais do mangue começaram a se recuperar. Foi uma vitória que conquistamos porque, pelo menos naquela parte, o mangue consegue ficar bem protegido… Vale ressaltar que temos problemas com o lixo… Somos nós que temos que fazer a limpeza, porque, como não é uma área cuidada pela Prefeitura, não entram para oferecer serviços públicos: toda a limpeza e a conservação são feitas por nós.”
Também presente no mutirão, Eliane Souza de Oliveira, advogada da arquidiocese e da Pastoral de Favelas, instituição que atua há 47 anos promovendo diversos direitos, como o acesso à moradia, conta sobre o apoio prestado à Vila da Lagoa. Segundo a advogada, no início, havia na comunidade várias casas sem planta e um único IPTU para toda a área, situação que tentam reverter há anos.
“A Pastoral tem seu lado evangelizador, mas acima de tudo, a gente quer levar essas pessoas a entender que têm direitos. A pessoa que vai morar numa comunidade, no morro, que sobe com os tijolos nas costas, não faz isso porque é bom para ela ou porque gosta. É necessidade. E chega a Prefeitura ou o Governo [do Estado, ou Federal], diz que ela não pode ficar ali e destrói tudo que ela fez, sem oferecer alternativas. Então, a gente tenta levar essas pessoas a entender que moradia é um direito constitucional, que tem que ser respeitado.” — Eliane Souza de Oliveira
Segundo outra participante, Sandra Kokudai, arquiteta e voluntária do Conselho Popular, além de todos os efeitos práticos e imediatos para a comunidade, o mutirão chama a atenção das autoridades para as reais necessidades da população da Vila da Lagoa.
“É uma força-tarefa para acolher e repercutir o que realmente a comunidade quer, que é preservar o mangue e tratar o esgoto para não jogar na Lagoa da Tijuca. A gente tem no bioma da Mata Atlântica mangue, alagado, área de restinga… O mangue é uma parte muito vulnerável e ameaçada nas grandes cidades da costa do Brasil… O mangue captura carbono muito mais que a Amazônia e é o berço da vida do mar, então, tem uma importância gigantesca. E nessa área aqui da Vila, se você olhar o mapa de elevação do nível do mar, há projeções de que essa região vai alagar. Uma das ações que a gente está fazendo hoje é cuidar das valas de drenagem porque já estava tendo acúmulo de água por causa do aterro que a Prefeitura fez aqui… Então, [fica nítido que a saída] não é um projeto de um urbanista ou arquiteto dentro de um escritório, mas escutar as pessoas que realmente usam o espaço: os moradores. Esse tem que ser o caminho!” — Sandra Kokudai
Partindo deste mesmo pressuposto, Stephany Farias, advogada e moradora da Vila desde os dois anos de idade, destaca a importância do mutirão para criar uma consciência voltada para as futuras gerações.
“Isso aqui é para o nosso futuro, né? Dos meus filhos, para a velhice da minha mãe, para a paz desse ambiente que a gente sempre cultivou, arrumou, mas [que] o homem, sempre visando dinheiro, quer destruir. O objetivo aqui é manter um ambiente de paz, limpo, harmonizado com a natureza, porque a gente têm um contato muito forte com ela e, sobretudo, para o futuro e para as próximas gerações.” — Stephany Farias
Morar com a natureza é um ato comunitário de responsabilidade para Erismalda Melo, enfermeira, moradora há mais de dez anos da Vila da Lagoa:
“A gente está fazendo esse movimento para manter tudo organizado e limpo. Eu amo plantas, flores, amo tudo… É para a gente ter um ar mais saudável, né? É uma união; quando a gente se junta é um companheirismo, todo mundo se unindo por uma causa justa… A gente mora aqui há muitos anos, é uma vila calma, tranquila, têm muitas plantas, animais… Aparece [até] papagaio… Não adianta você entrar na natureza se você não souber preservar, se você não tiver o coração limpo para ajudar a preservar.”
Essa percepção de proximidade e benefício mútuo com a natureza também é compartilhada por Nilzete de Jesus, faxineira, moradora há um ano da Vila da Lagoa:
“A Lagoa, os pés de árvores plantados, ficam ao lado de onde eu moro. Minhas gatas se divertem no terreno felizes da vida. Não tem preço a vida na natureza. Eu estava acostumada a morar num apartamento que não tinha plantas, não tinha nada e aqui é natureza. Mesmo quando tá calor, você não tem calor, você respira aquele ar da natureza. É muito bom… queremos que a natureza permaneça limpa, que a Lagoa fique limpa.”
Por outro lado, a preservação do ecossistema ao redor da Vila da Lagoa tem, inclusive, impactos econômicos. É o que Gabriel Heliodoro, guia de ecoturismo, morador da Ilha da Gigoia, vizinha à Vila da Lagoa, relata:
“É de extrema importância não só para mim, como guia, mas para toda a população local do arquipélago da Lagoa da Tijuca… [Temos] diversos animais aqui, jacarés, capivaras e a garça-moura, que é uma das maiores da América Latina. Temos o total de quatro garças aqui… Somos ricos por essa influência aquática. Somos ricos em fartura de peixes, tainhas e outros tantos de água doce e salgada… É hora da gente criar conscientização… Sem falar que a população local precisa desses mantimentos de peixe. Logo, uma vez que ela é invadida com a poluição, nós também vamos ser impactados com isso.”
A Vila da Lagoa é um dos muitos exemplos de como moradores constroem relações com o meio ambiente diferentes das associadas ao estigma das favelas. É também uma lição sobre como o engajamento coletivo, a generosidade e a boa vontade podem recuperar territórios devastados pelo racismo ambiental. A saída encontrada pela Vila da Lagoa foi a auto-organização coletiva, cuidar do que está à volta, mesmo em meio à histórica e estrutural negligência do Estado.
*O nome da entrevistada é fictício para preservar sua identidade e privacidade.