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Esta matéria faz parte de uma série sobre veículos de comunicação comunitária.
Lançado em outubro de 2024, o jornal O Catarinão retrata o Jardim Catarina, em São Gonçalo, cidade do Leste Fluminense, no Grande Rio, com informações pertinentes para os moradores, além de promover o resgate da história, da memória e da identidade do território. Com 6.000 exemplares mensais, o impresso criado pela jornalista Samara Oliveira tem como objetivo promover o sentimento de pertencimento por meio de informações de qualidade sobre a região. Além disso, O Catarinão é uma ferramenta de luta de uma região periférica, que busca potencializar as vozes e reivindicar direitos dos moradores.
A idealizadora do projeto é cria do Jardim Catarina e acredita que a comunicação pode trazer transformações para o território. De acordo com Samara, a motivação para criar o jornal surgiu do incômodo com a forma que seu território era retratado pelas mídias tradicionais: sempre pela chave da violência e da criminalidade, ignorando toda a potência que constrói o território.
“A comunicação é capaz de mudar realidades. Uma coisa que sempre me incomodou sobre o Jardim Catarina é a falta de conhecimento das pessoas sobre a história do território. Eu acho que todo jornal de favela acaba tendo como ponto de partida para a sua criação o incômodo de como a mídia hegemônica trata a nossa favela, nosso território… O Catarinão nasce a partir desse incômodo, de saber que é um território muito rico, com uma história muito rica e pouco conhecida pelos moradores. Cresci sempre muito inquieta sobre a história do Jardim Catarina. Então, o ponto principal foi esse resgate de memória e identidade.” — Samara Oliveira
Distribuído gratuitamente, o processo de produção do jornal é feito por uma equipe fixa de sete pessoas, entre repórteres, produtores e profissionais de mídias sociais, além de voluntários. “Muito disso sou eu que faço, mas as outras pessoas também [fazem muito pelo O Catarinão]. Sem elas, eu não conseguiria fazer tudo,” afirma Samara.
Considerado o maior loteamento da América Latina e o bairro mais populoso de São Gonçalo, o Jardim Catarina enfrenta muitos problemas corriqueiros que causam prejuízo e impactam a saúde dos moradores na região. É o caso, por exemplo, dos frequentes alagamentos que atingem São Gonçalo e outras cidades do Grande Rio em todos os verões. Problemas geralmente invisíveis para a mídia tradicional e para o Estado. “No verão, no início do ano, a gente fez [reportagens] sobre as chuvas de verão e os constantes alagamentos que acontecem no Jardim Catarina… Explicamos por que isso acontece e trouxemos também o contexto histórico”, explica Samara.
Como todo veículo de comunicação comunitária, os desafios são enormes para manter suas atividades em funcionamento.
“Os desafios estão sempre voltados à falta de verba, de dinheiro, porque, por mais que apareçam muitas pessoas querendo investir e colocar dinheiro, a gente não pode aceitar qualquer oferta. Costumo falar que além do desafio de chegar ao dinheiro, é chegar a recursos de uma maneira que se alinhe com os nossos valores… Entre os muitos impactos que um veículo de favela pode trazer para o território, [está] o resgate da memória e da identidade, que são objetivos principais. Informamos as pessoas sobre a história do Jardim Catarina, desde como surgiu, enquanto um loteamento, como se desenvolveu até chegar ao que é hoje. Esse veículo de notícia é fundamental para informar a população do bairro mais populoso de São Gonçalo.” — Samara Oliveira

De acordo com a criadora do jornal, não há um limite de edições a serem produzidas, mas há um esforço para trabalhar o pertencimento à região a partir das memórias do território. “Depois que a gente entender que a galera tá munida de informação e conhecimento sobre a história do seu próprio bairro, aí a gente traz as coisas mais factuais”, afirma Samara.
“Quando a gente foi distribuir o jornal, tinha um senhor sentado na calçada. Distribuímos para ele também. Depois, eu percebi que ele estava chorando, emocionado, olhando para o jornal. Aí, eu cheguei perto, perguntei se estava tudo bem e ele falou que sim, muito emocionado, porque o amigo dele, Marcos Delfim, foi lembrado e estava sendo retratado ali no jornal. Marcos Delfim foi o primeiro jornalista do Jardim Catarina a fazer um jornal e, coincidência ou não da ancestralidade ou do universo, Marcos Delfim era meu tio.” — Samara Oliveira
O tio da jovem faleceu, mas enquanto viveu coordenou o jornal Folha Popular. Samara diz que não tem informações sobre quanto tempo durou o jornal que o tio desenvolveu no território, uma vez que sua família também não tem registros desse trabalho.
Já o atual O Catarinão passou a ter edições bimestrais em razão dos recursos necessários para impressão. Na primeira edição, o projeto ganhou uma verba de uma organização que já visava a publicação de edição do jornal. No primeiro material, o foco foi a desinformação nas eleições. Com a verba, mais duas edições do jornal foram impressas, sendo a última com foco em desinformação ambiental. A edição deste bimestre está sendo produzida neste momento.
Como ferramenta de transformação no território, O Catarinão busca potencializar as vozes faveladas na garantia de direitos.
“A gente já provoca, a gente já reivindica direitos quando a gente está ali, e também traz isso na matéria. Quando a gente informa o direito daquele morador.” — Samara Oliveira
Para o futuro, as expectativas são realizar grandes reportagens. “Para não ser só um jornal que é entregue de mão em mão na rua, mas ser uma ferramenta que mobiliza e traz luta para poder fazer melhorias no território mesmo”, sinaliza Samara.
Além disso, o jornal busca a formalização e poder remunerar os colaboradores. Também existe o objetivo de transformar a iniciativa em um instituto, que passaria a ter um alcance mais amplo em seus campos de atuação.
“Existe o plano sobre como a gente quer impactar para além do jornal, para além da comunicação. Vejo O Catarinão como um instituto que faz um trabalho ali, com pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas, talvez trabalhando ali no combate à fome também, pensando de alguma maneira que seja não só uma distribuição de cesta básica, por exemplo, mas fazer geração de renda com essas pessoas.” — Samara Oliveira
Desde que começou a ser distribuído, o jornal inspira a simpatia dos moradores da região. “As pessoas receberam sempre muito bem, com muita empolgação e entusiasmo. Sempre que percebiam que era um jornal do Jardim Catarina, voltavam para falar com a gente, para perguntar mais sobre como é feito, quem está por trás. Percebo ali que existe um grande potencial de ser uma ferramenta de mobilização, por que o que é comunicação popular, senão isso?”, destaca a fundadora.
De toda a equipe, Samara é a única jornalista. Ela acredita que O Catarinão deve informar de maneira ética, com precisão e qualidade. “Tenho essa grande responsabilidade. Primeiro, além de fazer com qualidade e precisão, com uma linguagem não só acessível, mas também rica de conhecimento para as pessoas. Eu sei que a gente tem que trazer a linguagem para dentro mesmo, a linguagem de periferia, de favela, porém, também é importante a gente adicionar vocabulário para as pessoas que estão lendo,” frisa, apontando que há uma página no jornal intitulada “Que Nomes São Esses”, com um glossário das palavras usadas e que o leitor pode encontrar na edição.
Há mais de 20 anos atuando no bairro, o jornaleiro Oscar da Silva Lima, de 57 anos, fala sobre como tem colaborado com O Catarinão. Ele tem sido responsável por um dos pontos de distribuição dos exemplares: sua banca de jornal. “Quem leu o jornal gostou de saber da história do bairro. As pessoas gostam,” afirma Oscar. Para ele, é fundamental manter o jornal impresso, sobretudo na Era da internet e dos aparelhos celulares.
“Hoje em dia, tudo é celular. A pessoa levanta e já está com o celular na cabeceira da cama, aí não vai mais para banca de jornal.” — Oscar da Silva Lima
O dono da banca destaca a estratégia usada para fazer o jornal alcançar mais moradores do bairro. “Eu faço assim: a pessoa vem aqui comprar outro jornal, eu aproveito e já coloco um O Catarinão. Mas vêm pessoas aqui pedir o jornal e eu entrego também. Tudo o que for para informar sobre o bairro é muito bom”, ele conta.

Por outro lado, leitores conseguem acessar o jornal em uma série de outros espaços de referência na comunidade. É o que diz Lucas Siqueira Gonçalves, 27 anos, morador, ator, professor de geografia, que afirma sempre encontrar o jornal em pontos de distribuição, como lojas de materiais de construção, mercados da região, sem conta com a distribuição, feita pela própria equipe: “Lembro de quando eu era pequeno, ainda não entendia muito bem essa questão de prefeito, como funcionava. Eu falava que eu queria ser prefeito do Jardim Catarina, porque queria sempre uma evolução, um progresso para esse bairro. Quando eu vejo O Catarinão, um jornal dedicado pro Jardim Catarina, é uma emoção gigantesca de ver que não estou sozinho nessa luta pelo bairro”. Lucas diz que se identifica com as histórias contadas pelo jornal do Jardim Catarina.
“Existe uma pluralidade ali de histórias, de notícias. Então, eu acho que isso faz com que eu me identifique ainda mais com O Catarinão, sabe? E tem ainda essa paixão pelo bairro, que eu levo também por esse jornal, pelo O Catarinão. Porque, de fato, no Jardim Catarina, sendo o maior loteamento da América Latina, existe uma diversidade grande de histórias, de notícias que abrangem muitas famílias e de acontecimentos que afetam a comunidade.” — Lucas Siqueira Gonçalves
Para o professor e morador, chama a atenção a versão digital do jornal, que também funciona por meio de um site. “A gente consegue compartilhar de forma virtual também, não só de história falada, mas também de modo que a rede social faz com que o compartilhamento dessas notícias chegue mais nas pessoas”, diz Lucas, ressaltando a linguagem usada no jornal como “perfeitamente acessível e compreensível, tanto para pessoas que não têm muita instrução, quanto para pessoas que têm”.
Entre os temas abordados no jornal, o professor afirma que gosta das curiosidades sobre o bairro: “Saber que antigamente era uma fazenda de laranja e o porquê do nome Jardim Catarina. São sempre essas curiosidades históricas com as quais mais me identifico.”
Confirmando a visão de Lucas, Samara Oliveira conta que o jornal é muito bem recebido pelos moradores e afirma que ele tem o apoio da comunidade do Jardim Catarina. Segundo ela, isso se deve ao fato de que, antes d’ O Catarinão, os moradores não viam as narrativas do território veiculadas na mídia. O mesmo fator que levou Samara a fundar o jornal faz O Catarinão ser bem aceito por seus vizinhos no Jardim Catarina.
“A gente recebe apoios da maneira que a comunidade pode ajudar, seja divulgando ou com alguns empreendedores pedindo para deixar exemplares nos seus estabelecimentos para distribuição, porque, de fato, gostaram e apoiam a iniciativa. A gente recebe mensagem pelas redes sociais pedindo para deixar jornais lá, ou então sobre como é que faz para vir buscar. A gente foi abraçado pela comunidade. Nunca tive dúvidas de que isso aconteceria, mas, de fato, é muito bom ver acontecendo.” — Samara Oliveira
Sobre o autor: Igor Soares é cria do Morro do Borel e jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, contribui com o #Colabora e atua como freelancer. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos e segurança pública, já tendo passado pela redação do Estadão, do Portal iG e produzido reportagens para a Folha de São Paulo.
