Termo Territorial Coletivo em Favelas?

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Vidigal com vista para o oceano – moradores irão receber o título num prazo de três anos. Há rumores de que os especuladores aguardam nos bastidores para comprar casas. Um modelo de titulação comunitária deveria ser considerado.

De todos os ventos de mudanças soprando sobre o Rio por esses dias talvez as rajadas mais fortes sejam as que estão por trás do setor imobiliário. Desde 2008 a média dos aluguéis dobrou na cidade toda, os preços de venda subiram ainda mais bruscamente e em alguns dos bairros mais exclusivos, como a Gávea, os valores das casas quase que triplicaram. A revista Forbes anunciou que os preços dos escritórios no Rio de Janeiro são agora mais caros que em Manhattan. E com as pacificações das favelas na Zona Sul, o jornal O Globo conta como a percepção da melhoria da segurança em torno das favelas resulta na alta dos preços vertiginosamente da noite para o dia. Previsivelmente, uma ressurgente demanda por propriedades combinada com as preparações para os megaeventos e um Prefeito pró-desenvolvimentista tem levado a cidade ao último boom de construções especulativas.

Para os magnatas da indústria, peritos e atravessadores um mercado imobiliário em ebulição é muito bem vindo. Até mesmo alguns proprietários do setor informal lucraram consideravelmente e agora, mais do que nunca, investir em favelas e em suas terras é visto com ‘olhos grandes’ em suas possíveis cifras. Mas, como a maioria dos cariocas não tira proveito dessa bonança, a inflação do setor imobiliário impõe privações para esses que já se encontram em dificuldades com suas despesas, em uma cidade cujo custo de vida rivaliza com os maiores centros urbanos da Europa e da América do Norte.

Poucos param para considerar o preço que o aumento da exclusividade no Rio cobra e não apenas dos pobres mas, na saúde e no caráter da cidade como um todo. Como em qualquer cidade o Rio é alimentado por sua classe trabalhadora: seus motoristas de táxis, seus empregados de serviços de alimentação, seus garis. Forçando esses trabalhadores a deslocarem-se para bairros distantes na periferia urbana, importantes laços sociais são arrancados, os trajetos são alongados o que torna o funcionamento da cidade menos eficiente e confiável. Porque uma grande parte da identidade cultural e artística da cidade é gerada por aqueles que no sentido monetário, possuem escassos meios de vida, a falta de acessibilidade elimina o elemento humano que faz com que o Rio seja o lugar sedutor que é hoje.

Centros urbanos de sucesso ao redor do mundo reconhecem a importância da diversidade socioeconômica e têm trabalhado para preservar o avanço da moradia equitativa através de diversos mecanismos legais e ferramentas políticas. Muitas dessas medidas são consequências do efeito exclusivamente negativo da especulação de terras e dos naturais ciclos econômicos do mercado imobiliário. Em Cingapura, é notável o nível da intervenção do Estado onde a maioria das moradias é planejada, desenvolvida e regulada pelo governo onde gerenciar a casa própria e a integração social é um objetivo explícito da política nacional. Em Amsterdã a maioria das terras urbanas é também comprada pelo Estado o que minimiza os efeitos da especulação imobiliária.

O Brasil nos últimos anos tem investido em intervenções habitacionais baseadas no Estado. O programa federal Minha Casa, Minha Vida é o maior, e tem o intuito de expandir o fornecimento de moradias no país a preços acessíveis. Todavia, no Rio de Janeiro tais programas estão associados a moradias de baixa qualidade em locais distantes. No Rio, o programa Morar Carioca continua aguardando a implementação. É um programa multibilionário com potencial para alavancar o parque habitacional existente em comunidades informais, com prestações de serviços e melhorias habitacionais nessas comunidades, mas até hoje só o nome tem sido usado pela Prefeitura, sem suas premissas. Porém, observando como as parcerias público-privadas, criadas para executar esses programas frequentemente sofrem com desperdícios, corrupção e falta de comprometimento político, muitos brasileiros são céticos em relação ao Estado liderar tentativas de entregar casas mais baratas efetivamente. Em tal quadro soluções já constituídas em “base comunitária” podem representar uma importante parte do quebra-cabeças para finalmente realizar o direito constitucional que todos os brasileiros tem a uma moradia decente.

Um mecanismo baseado em experiências de ‘base comunitária’ que vem ganhando espaço nos Estados Unidos, Inglaterra e outros países ha três décadas é o modelo chamado de Community Land Trust (CLT na sigla em inglês) ou algo como Termo Territorial Coletivo.* Enquanto a estrutura exata desses mecanismos varia entre as centenas de CLTs no mundo, a ideia básica é a mesma:

  • Uma entidade sem fins lucrativos é criada, cuja a proposta é gerenciar–para sempre–as terras na qual os moradores residem.
  • Embora as famílias são donas e constroem suas próprias moradias ou outras estruturas, a terra em si permanece ‘sob tutela’ da comunidade como um todo, e assim, protegida dos caprichos do mercado imobiliário.
  • Os CLTs são baseados num local geográfico, ou seja, definidos por uma certa dimensão geografica dos bairros ou áreas cujos limites podem mudar ao longo do tempo.
  • A maioria dos CLTs, seguindo sua missão de promover o acesso à moradia em preços acessíveis, regula os preços de revenda das habitações. Essa função de fiscalização é feita para dar aos proprietários um retorno justo em seus investimentos, porém evitando as drásticas oscilações nos valores de propriedade que disparam os ciclos de gentrificação dos bairros.
  • Se organizando quanto CLT proporciona a comunidade inúmeras vantagens em termos de capacidade de organizar e administrar o próprio desenvolvimento da comunidade de acordo com uma missão definida pela própria comunidade. Isso pode incluir, além de um objetivo de manter preços acessíveis, a garantia de urbanização de qualidade, manutenção e fortalecimento da cultura local, e outros fatores a serem definidos pelos próprios moradores.

Uma organização inovadora de base comunitária que gerencia um CLT é o Dudley Street Neighborhood Initiative (DSNI) em Boston, EUA. Originalmente formada para lidar com a decadência do bairro–um produto da generalizada desocupação urbana e negligência pública nesta comunidade Afro-Americana–o DSNI tem nas últimas décadas transformado mais da metade dos 1.300 lotes que adquiriu em unidades habitacionais permanentemente acessíveis. Apesar dos altos e baixos notórios do sistema norte-americano que depende de financiamentos privados, a DSNI tem constantemente expandido sua marca e sua contribuição para moradia acessível em um dos mais caros mercados dos EUA. De fato é a única comunidade nos EUA com autorização legal para exercer o poder de desapropriação para organizar lotes de terras para o desenvolvimento.

Enquanto os CLTs são frequentemente mais encontradas nos EUA e Inglaterra, elas estão começando a ganhar espaço em outras partes do mundo como o Quênia, uma nação com uma tradição cultural existente de propriedade de terras em comum. O Brasil também se aproveita de tradições coletivistas em suas comunidades informais, como os mutirões, e os quilombos, assentamentos onde os descendentes de escravos libertados foram dados títulos comuns de terras. Tais práticas, tendo como base a cooperação e um padrão comum de moradia em lugares de extrema escassez e insegurança, estão diminuindo com o aumento da capitalização e a entrega de títulos de posse nessas comunidades.

Sem dúvida, alguns moradores das favelas do Rio de Janeiro irão considerar como benefício imensurável a ampliação das emissões de títulos e os mercados imobiliários que eles poderão acessar. Porém, submeter essas comunidades as forças desenfreadas do mercado ameaça transformá-los em territórios mais urbanizados, acessíveis apenas para as classes média e alta, particularmente em bairros de encostas situados na elitista Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Em tal cenário, o uso de ‘fundos de posse comunitária de terras’ oferece diversas vantagens: imprime um equilíbrio entre proprietários privados e coletivos, serve como uma proteção contra as forças polarizantes da gentrificação, permite a valorização do que é singular e merece ser preservado em cada comunidade, e fortalece a coesão social que pode pavimentar o caminho para outras iniciativas sociais. A DSNI de Boston, por exemplo, oferece treinamento de trabalhadores e irá em breve abrir um campus dedicado ao aprendizado, creches e outros serviços sociais.

A adoção de um programa de posse de base comunitária poderia comprovar-se extremamente efetivo no Rio de Janeiro. Um modelo de posse desenvolvido para as favelas do Rio poderia trazer consigo as qualidades bem-vindas da posse da terra sem as armadilhas de um título individual que destrói a comunidade e força uma maioria dos moradores de favelas para às margens da cidade.

Jake Cummings defendeu sua tese de mestrado, “Confrontando o ‘Favela Chic'”, em Planejamento Urbano na Universidade de Harvard, EUA, em 2012. Seu estudo de caso foi o Morro do Vidigal.

*A partir de junho de 2018, adotamos a nomenclatura ‘Termo Territorial Coletivo’ (TTC) para traduzir o conceito, em inglês, de  ‘Community Land Trust’. Anteriormente, o conceito foi traduzido livremente como ‘Fundo de Posse Coletiva’. A nova nomenclatura melhor descreve o instrumento internacional que atualmente está sendo adequado às especificidades brasileiras, especialmente sob o aspecto jurídico.