Nesta semana de extrema violência na cidade do Rio de Janeiro, uma série de acontecimentos causaram ondas de choque nas mídias sociais, ressaltando a situação alarmante da segurança pública da cidade e de suas desigualdades sociais e raciais, assuntos que estão provocando debates intensos à medida que cidadãos buscam um Rio mais seguro.
Choques de violência em comunidades pacificadas
Na última manhã de sexta-feira, dia 31 de janeiro, o mecânico de 33 anos Edilson Rodrigues da Silva Cardoso saiu de sua casa na Rocinha para fumar um cigarro e foi morto, baleado no peito, ao meio de um tiroteio entre a polícia e traficantes na favela da Zona Sul controlada pela UPP. Somente cinco dias antes, na segunda-feira, dia 7 de janeiro, também na Rocinha o adolescente de 16 anos Thales Ribeiro de Souza foi morto por um tiro nas costas. Nenhuma das vítimas tinha envolvimento com o tráfico.
Em sua coluna no Jornal do Brasil, o líder comunitário Davison Coutinho escreveu: “O que está acontecendo, o que o governador e seu secretário de segurança têm a dizer para essas famílias e para essa comunidade aterrorizada? Estou curioso pra ouvir as desculpas. Será que mais uma vez as vítimas serão julgadas como criminosas? Afinal, assassinado na favela é bandido e no asfalto é vitima.” Não houve qualquer explicação ou pronúncia pública sobre essas mortes.
Conflitos violentos entre a polícia e traficantes de comunidades reguladas por UPPs continuaram durante o fim de semana, com tiroteios na Rocinha, no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro. No domingo, dia 2 de fevereiro, a PM da UPP Alda Castilho, de 22 anos, foi morta com um tiro na cabeça no Parque Proletário da Vila Cruzeiro. Outro policial militar e dois moradores foram feridos. A página da comunidade no Facebook, Vila Cruzeiro-RJ, publicou notícias ao longo do dia de tensão, inclusive compartilhando um vídeo registrado por um morador mostrando PMs da UPP atirando aleatoriamente, o que não só ajudou a informar os moradores que queriam voltar às suas casas seguramente, mas também denunciando a primeira reportagem que não divulgou que moradores tinham sido feridos. No dia seguinte, a página publicou, “Chega de violência! Queremos paz e serviços sociais, pois a Vila Cruzeiro está totalmente abandonada.”
A morte de um policial costuma provocar uma reação rigorosa das forças de segurança do Rio. Após o confronto de domingo, o Secretário de Segurança do Estado José Mariano Beltrame anunciou que haverão operações em doze locais onde atua a facção responsável pela morte de Castilho. Na manhã de terça-feira, dia 4 de fevereiro, em uma dessas operações no Morro do Juramento na Zona Norte, seis pessoas foram mortas e quatro ficaram feridas. Operações policiais ocorriam simultaneamente na Santa Cruz, Vila Kennedy e na Baixada Fluminense.
Reações à última operação da PM
Imagens chocantes da operação violenta no Morro do Juramento começaram a circular a Internet instantaneamente. Na página PMERJ FEM do Facebook, um portal não oficial da polícia militar feminina do Rio, imagens de corpos e escadas ensanguentadas foram compartilhadas com a legenda: “A resposta da morte da SD Castilha e SD Rocha [a segunda morta em uma tentativa de assalto em Marechal Hermes no sábado, dia 1o de fevereiro], ambos mortos no último fim de semana, está sendo dada!” A publicação, assim como a posição da PM que aparentou favorecer a violência vingativa, foram altamente denunciadas nas redes sociais pela comunidade e por ativistas de direitos humanos. A publicação foi depois removida.
As imagens circularam com comentários do tipo “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos são para humanos direitos”, sugerindo uma atitude que serve para justificar as mortes por policiais no Rio. Comentando online, o fotógrafo e ativista Raull Santiago postou, “A polícia declara guerra/vingança em rede nacional, entra nas favelas assassinando a esmo, faz jorrar valas de sangue pelos becos e vielas… Enquanto isso, a sociedade acomodada, alienada e hipócrita aplaude com louvor esse tipo de ação, legitimando o ódio, a morte, o caos”.
A legitimidade e legalidade das ações policiais de terça-feira estão sendo questionadas. Na quarta-feira, o perito Leví Inimá de Miranda declarou abertamente que acreditava que a polícia tenha realizado execuções e sabotado qualquer possibilidade de inquérito forense ao levar os corpos ao hospital. Falando ao GLOBO, ele disse: “Posso afirmar que os homens fotografados já estavam mortos e, portanto, são grandes os indícios de execução. Ou seja, removeram cadáveres para desfazer o local.”
Moradores de favelas há muito tempo vêm denunciando a violência da PM nas comunidades, assim como ações ilegais como essa, e continuam a desabafar. Em um artigo publicado na semana passada no jornal O Cidadão da Maré, a jornalista comunitária e ativista Gizele Martins escreveu: “Nós não nos calaremos nunca enquanto houver pobre, negro e favelado sendo exterminado. O que queremos é ter o direito à cidade. Queremos ter o direito de existir, de ser, de viver, de se sentir parte e não margem deste tal sistema que apenas controla e mata favelados todos os dias”.
Ataque por grupo de “justiceiros” no Flamengo
Outro incidente violento dessa última semana aconteceu no bairro do Flamengo na Zona Sul, escandalizando muitos e gerando discussões raivosas. Na madrugada de sexta-feira, dia 31 de janeiro, um grupo de jovens brancos de classe média torturaram um rapaz negro suspeito de roubo, prendendo-o nu a um poste com uma trava de bicicleta no pescoço. A imagem rapidamente se difundiu pelas redes sociais e o grupo chamado de “justiceiros” foi tanto condenado quanto apoiado num debate moral altamente controverso.
Muitos moradores de bairros como o Flamengo, onde crimes e assaltos têm aumentado nesses últimos meses sem que uma segurança maior tenha sido imposta, têm aplaudido e defendido os vigilantes que “fizeram justiça com as próprias mãos”, revelando que existe uma onda fria e obscura de medo e aversão. No Twitter, eis alguns comentários ao acontecimento: “Não é bárbaro se é auto defesa preventiva da sociedade contra vagabundo!”; “É assim que tem que fazer com esses filhos da puta”; “Deveria ter sido morto!”; e “Está com pena dele? Leva para casa”.
Comentários do gênero não ficaram só nas mídias sociais. Na quarta-feira, a âncora do Jornal da SBT Rachel Sheherazade disse, “Num país que sofre de uma violência endêmica, a atitude dos ‘vingadores’ é até compreensível… o contra-ataque aos bandidos é o que chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite”. A sua diatribe foi muito compartilhada e criticada, inclusive pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais que divulgou uma nota de repúdio à “violência simbólica dos recentes comentários” da jornalista que “violou os direitos humanos, o Estatuto da Criança e do Adolescente e fez apologia à violência”.
Muitos outros, entre eles ativistas de comunidades e defensores dos direitos humanos, também têm verbalizado choque e ultraje em relação ao incidente e à repercussão. Muitos comentários apontaram à uma continuidade ao passado brutal da escravidão no Brasil, comparando a imagem recente do adolescente preso ao poste a uma forma de punição escrava violentíssima do século XIX. Uma dessas imagens levou a legenda “O racismo sempre se camufla de justiça para agir”. Num artigo da Carta Capital que se popularizou pelas redes sociais, o jornalista Matheus Pichonelli escreveu: “Este país que aplaude o justiçamento é o mesmo que ignora uma questão histórica: o açoite é causa, não consequência, da tragédia–e esta não foi abolida com o fim da escravidão”.
As claras dimensões de raça e de classe dos crimes e tragédias da última semana foram ressaltadas por acadêmicos conceituados do Rio, que comentaram sobre os eventos. A professora e pesquisadora de Comunicação e Cultura da UFRJ Ivana Bentes publicou: “A guerra no Brasil é uma só: contra os pobres! Onda racista e fascista no Brasil neoescravocrata. É o mesmo teatro do biopoder, poder sobre a vida e sobre os corpos negros e pobres: bestializar, destituir a humanidade, animalizar, apresentar como ameaçadores, chacinar, humilhar e transformar em objeto de ódio. Os ‘justiceiros’ imitam a policia que por sua vez chacina e massacra usando a cor e o grupo social como critério de justiçamento”.
Luiz Eduardo Soares, renomado especialista em segurança pública, publicou uma nota traçando a hipótese de que a tortura pelo grupo de jovens brancos de classe média e o seu ato de despir e prender ao poste o adolescente negro é uma reação inconsciente aos “rolezinhos” que vêm “dramatizando migrações democráticas, eliminando fronteiras entre o centro e a periferia, deslocando a violenta e iníqua supremacia de cor e classe”.
Não somente as questões de classe social e raça são essenciais à análise dos últimos acontecimentos no Rio e de seus problemas de segurança maiores, mas também a cultura da impunidade permite que tais incidentes de violência aconteçam. No Rio, a impunidade parece se estender tanto aos ladrões que assaltam diariamente nos bairros mais ricos da cidade quanto aos policiais e traficantes que matam nas favelas. Na ausência escancarada de um sistema judiciário eficaz, a vingança–como praticada pelos justiceiros e PMs na semana passada–começa a ser vista como uma substituta cabível.
Ao falar sobre esses eventos recentes na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) na última terça-feira, o Deputado Estadual e coordenador da Comissão de Direitos Humanos Marcelo Freixo advertiu contra confundir vingança com justiça, e convocou um debate extenso sobre o que aconteceu. Freixo disse: “É neste momento que venho reafirmar a defesa de uma cultura de direitos para todos. Desde o policial que precisa de mais condição de trabalho, a qualquer um destes jovens que sobrou de uma sociedade mercado de trabalho, que nunca teve o direito de ir e vir, de educação. Não é confundindo justiça com vingança que vamos construir uma democracia. Estes dois exemplos devem ser debatidos exaustivamente nas escolas públicas e privadas, no parlamento, nas igrejas, para dizer qual modelo de sociedade a gente quer”.
Os acontecimentos violentos da semana passada definitivamente instigaram debates fervorosos na mídia impressa e virtual, assim como nos bares, escritórios e ruas em todos os cantos da cidade. Que esses eventos tenham gerado um desconforto social, um maior e mais profundo escrutínio e contestação pública é um sinal promissor de que a cultura e as condições que permitem que a violência continue podem, enfim, levar a mudanças. Assim, o Rio poderá finalmente caminhar em direção a um futuro mais seguro para todos, como todos tanto desejam.