José Luiz da Silva Soares, ou apenas Luiz Soares–“nome composto dá muito rolo”–é o Mediador Social da Biblioteca Parque de Manguinhos. Luiz tem 41 anos, nasceu na Tijuca, e morou em vários bairros do Rio de Janeiro antes de se mudar para o Complexo do Manguinhos, na Zona Norte do Rio, em 1995. Como já era adulto, foi uma grande mudança em sua vida. Apesar disso, Luiz nunca saiu de lá. “O que a gente vê de bom na favela é a solidariedade, a amizade, a união–isso aí é muito legal, isso aí não tem preço”, diz ele.
Começou a se envolver com trabalho social em várias comunidades espalhadas pela cidade, e em 2010, assumiu seu cargo atual, na Biblioteca. Luiz trabalha com orientação e garantia de direitos de moradores, direcionando-os para a previdência social. Nessa entrevista, falamos com ele sobre sua história de vida, sua trajetória como gestor social, e sua visão para Manguinhos.
ROW: Quais são suas primeiras memórias de Manguinhos?
LS: Eu estava desempregado. Eu era catador de latas, de matéria reciclável–tinha ensino médio, mas não consegui locação no mercado de trabalho. Cheguei aqui em um local muito miserável, muito empobrecido. Foi uma realidade muito diferente, porque eu nunca tinha morado em favela–sempre morei no asfalto, em apartamento.
Quando cheguei aqui para morar na comunidade, foi uma discrepância muito grande–beco, terra batida. Quando chovia enchia muitos becos, inclusive onde eu morava. Tinha baratas e ratos, e sempre tinha que estar botando veneno para eles, sempre com medo das crianças acessar o veneno e causar uma tragédia. Então, foi complicado demais quando eu cheguei aqui.
Mas apesar de tudo, gosto daqui porque é um local de logística boa. E fiz aquela rede de amizade–a mulher com quem eu constituí família, já tinha 17 anos dentro da comunidade e uma rede de amizade, ela faleceu e eu preservei essa rede, e continuei na comunidade. Eu constituí uma família, mas depois eu fiquei viúvo, com seis filhos para dar conta. Ao longo desse período, dois faleceram, envolvidos com o tráfico.
O pessoal é muito humilde, muito solícito–se uma casa tiver pegando fogo, todo mundo ajuda a apagar. Em época de falta de luz, você tem vizinhos que te ajudam a fazer a religação da luz. E esse tipo de procedimento te acolhe muito. Por causa das remoções de comunidades, as pessoas costumam ser muito unidas–elas costumam ter essa parte de união muito forte. É um povo que já é muito sofrido, castigado pela vida de natureza. A solidariedade está sempre em primeiro lugar.
Quando você mora em apartamento, as vezes você não sabe nem o nome do seu vizinho do lado–não tem essa conectividade. Aqui não, aqui você vê uma amizade enraizada. Você pode vir para cá hoje, já pode começar a morar aqui, e em 15 dias você já está conhecendo a metade da favela.
ROW: Por favor, conte sua história em relação à sua trajetória como gestor social.
LS: Eu morava aqui em Manguinhos e a gente foi para uma comunidade chamada Parque Everest. Eu fui incluído no programa Cheque Cidadão na época–tinha família numerosa, eu precisava de alguns recursos, né? E eu vi que, com ensino médio, eu podia ajudar. Ali eu aprendi o que era trabalhar para a comunidade. E eu trabalhava na área social sem saber que era a área social. Eu não tinha perspectiva de estudar, de ir além do ensino médio. Minha perspectiva era trabalhar, comer, e ajudar a minha família. E aí eu comecei a arrumar emprego, mas eu vi que o meu negócio era com gente pobre, que nem eu.
Meu primeiro curso de qualificação nessa área foi curso de liderança comunitária pela FAFERJ (Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro). Lá estava o Sr. José Pereira–um homem que tinha comunidade na alma, um homem muito bom, que era pobre mas não tinha ambição de arrumar dinheiro. Com o Sr. Zé, se você sabia consertar moto, você ganhava uma bolsa para ensinar na sua favela. Ele fazia você multiplicar o seu saber: você não ia para a sepultura levando seu conhecimento–você passava diante.
Eu vejo uma federação com essa função, e não sendo cabo eleitoral de política. Ter uma política para a vida, sim! Política de partido, estou fora. Isso para mim não me representa nunca. O nosso problema, ele não está no partido, está no sistema político-econômico. O neoliberalismo é o câncer do planeta. No neoliberalismo, você não pode ser igual a mim, não podemos ter vencedores, só podemos ter um vencedor–ou eu, ou você. Então cria uma disputa logo aí. Onde tem disputa não pode ter paz, não pode ter harmonia, não pode ter crescimento.
Crescimento, que o governo diz aí, não é crescimento em projetos, é crescimento na qualidade e no conteúdo da vida. Não adianta entupir de projetos–você vai transferir renda até morrer, e não vai resolver nada, e você vai criar pessoas dependentes dessa renda! Não vai ser uma pessoa, cidadão-protagonista da sua mudança e sua transformação.
ROW: Quais são as maiores mudanças que Manguinhos passou nestes últimos anos?
LS: Manguinhos ganhou equipamentos públicos que não existiam–nem aqui e nem perto. Aqui, por exemplo, nós temos a Casa da Mulher, a Farmácia Popular, uma Clínica da Família para atender o público dessa região, uma estação de trem moderna. Eu até fiquei emocionado quando eu entrei lá. Foi um investimento bem aplicado.
Agora, continuam com os problemas que precisam ser resolvidos. Então a gente criou um grupo de trabalho, a Biblioteca puxou essa discussão, para ter poda, capina e lixeira na praça. Porque isso tudo é coisa que deveria ter–o pessoal estava jogando no chão por não ter um local para colocar.
ROW: Antes de tudo isso, como era a relação entre a comunidade e o Estado?
LS: Era uma relação razoável, dos presidentes das associações com os órgãos públicos. A vida deles era enviar ofícios, solicitar… Porém, com o tempo a liderança fica desacreditando no trabalho–vai ficar reclamando para quem? Ninguém responde, então eles vão se desanimando. E eu não tiro a razão deles, não é fácil. Mas como somos nós que moramos, somos nós que temos que dar uma força para a liderança.
ROW: E agora? Como está esta relação?
LS: Agora vamos ter uma reunião com a Light, aqui na Biblioteca. A UPP chamou vários órgãos públicos, que são os campeões de reclamação–como a Light e a CEDAE, para que eles possam se explicar perante os moradores. Os moradores reclamam na UPP, que virou “ouvidoria” agora. A mulherada, quando não tem água, não tem luz, vai lá para a porta da UPP exigir que o capitão da área tome providência. E eles ajudam muito fazendo reuniões e trazendo essas figuras que a gente precisa.
Aqui ainda têm muita coisa que é muito precária. Porém agora iluminação é uma coisa boa: tinha beco que não tinha luz há anos. Hoje em dia está aceso. Nós provocamos a Rio Luz, e eles vieram consertar um monte de luz queimada. É importante manter essa relação entre moradores e os órgãos públicos. Se a gente não provoca o órgão público, ele não vem fazer o trabalho dele. Como é que vai destruir a história da cidade partida se não resolve isso? Tem que resolver. Nós somos cidadãos como qualquer outro na cidade.
ROW: E em termos de segurança pública?
LS: Não tem muito a fazer, porque a comunidade é tranquila. Eu não notei muita diferença com a UPP. Muitas ruas foram abertas, porque antigamente tinham obstáculos; muito beco escuro foi aceso, porque começou a entrar mais serviço. Então isso tudo ajudou muito, mas falta muita coisa pra fazer ainda, muita coisa.
ROW: O que podia ser feito?
LS: O que podia ser feito: esses órgãos deveriam atuar mais, a Prefeitura e o Estado devem atuar mais, e contratar mais moradores para trabalhar nos equipamentos que são feitos aqui. Têm muita gente de fora, mas devia ter mais gente do território. Eu acho que isso funcionaria melhor. Mas têm equipamentos ótimos. A Casa do Trabalhador, que tira carteira de trabalho, e encaminha para emprego também, é um equipamento importante nesse território.
Tem a horta comunitária, a maior horta da América Latina, que eu achei fantástica. Foi o projeto que eu mais vi empregar morador. A ideia é formar uma cooperativa com esses moradores, para que eles possam ser autônomos. Então gostei, porque acaba com o cabresto de ter alguém dominando, e sempre dando na mãozinha. Tem que ser autônomo. A pessoa tem que ser protagonista da vida dela. Tem que ser protagonista das ambições dela. Não pode ser refém de alguém que está direcionando. Se não, você acaba com a história da liberdade, a história do protagonismo, e com a história da justiça social.
ROW: O que seria seu ideal para o Manguinhos?
LS: O ideal para Manguinhos é ter um respeito com a história de remoções de casas de moradia. Eu fui uma das primeiras pessoas removidas em 2009. Me dei muito bem, fui para uma casa bem melhor–continuei no mesmo território, só mudei de endereço. Naquela época, tinha poucas demandas então consegui a casa fácil.
Hoje, já está mais difícil. Têm muita gente procurando casa sem sucesso. Muitas são obrigadas a irem para outros territórios. Então, o que falta em Manguinhos é um respeito mais nesse sentido. São muitas pessoas de idade, que não querem sair, e elas sofrem muito com essa mudança.
E a parte ambiental é muito pobre, Manguinhos é um território com muita falta de verde. O PAC ainda trouxe algumas árvores, mas Manguinhos em si nunca teve investimento na área verde. O que falta também é mais mobilização para a qualificação de moradores. Muita gente mora muito tempo na comunidade, mas não sabe onde fazer um curso bom, onde se qualificar melhor. E as vezes tem condição para fazer–têm alguns cursos de graça por aí, mas a maioria não tem acesso.
ROW: Qual é o seu recado mais importante para um jovem frustrado com o estado das coisas, ou interessado em se engajar com projetos sociais?
LS: Eu acredito que esse jovem precisa vivenciar, mais um pouquinho, os movimentos sociais, os movimentos de luta pelo trabalhador, pela garantia de direitos humanos. Ele ainda está começando a vida, e tem muitos anos pela frente. Ele tem que ter um pouquinho de paciência, e levantar a cabeça, porque muitos conseguiram. Nem todos que lutam conseguem, mas todos que conseguiram, é porque lutaram primeiro.
Ele tem tudo: tem saúde, tem a juventude a favor dele. Pode começar muitas coisas que uma pessoa com mais idade já não conseguiria. Ainda há esperança, tem muitas coisas pela frente. É um país enorme, com muitas oportunidades. Com isso, a melhor herança que um pai pode deixar para um filho pobre, frustrado, desanimado e deprimido, é a sabedoria e a educação.
A faixa etária de 14 a 24 anos é a população de favela que é a mais assassinado por morte violenta–a população negra e nordestina. Eu tive dois filhos mortos dentro desse perfil, negros e pobres de favela. E eu milito nessa área por conta disso. Eu não quero que a gente possa perder mais ninguém. A minha parte eu estou fazendo.