Essa é a segunda parte de uma série de quarto artigos sobre a história da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Clique para Parte I e Parte III, e Parte IV.
Bandido favelado
não se varre com vassoura
se varre com granada
com fuzil, metralhadora
Como temos visto, o mandato da força policial brasileira ao longo de sua história tem sido fortemente baseado em noções coloniais de cidadania. Aqueles que ‘têm’ tendem a ser vistos como cidadãos honestos e que trabalham duro, enquanto os que ‘não tem’ são vistos como criminosos, ou potenciais criminosos. Nos últimos 50 anos, a Polícia Militar tem usado cada vez mais a força letal nas áreas mais pobres da cidade, empregando uma mentalidade de “agir primeiro e perguntar depois”.
Durante a ditadura militar, que durou de 1964 a 1985, a polícia foi encarregada de enfrentar o inimigo interno, os opositores políticos do regime. Foi durante este período que a polícia assumiu um papel profundamente militar: qualquer sugestão de que seu objetivo era proteger e defender o público desapareceu nesse momento. A segurança nacional e táticas anti-guerrilha e anti-protestos foram os principais aspectos da formação da polícia sob o regime militar. Esta doutrina de segurança nacional foi usada para motivar, justificar e defender as inúmeras atrocidades que aconteceram ao longo dessas duas décadas. Tortura e morte foram generalizadas, e a impunidade quase garantida. Os esquadrões da morte, como a Scuderie Detetive Le Cocq liderados pelos ‘Homens de Ouro’, eram compostos por policiais que realizavam segurança particular para empresários locais, principalmente nas favelas. Estes grupos são os antecedentes das milícias dos últimos anos.
Com a queda da ditadura esperava-se que a violência que marcou essa época diminuiria. No entanto, paradoxalmente, os seguintes 25 anos foram alguns dos mais brutais da história do Brasil. Entre 1991 e 2007 ocorreram uma média de 6.826 homicídios por ano apenas no estado do Rio de Janeiro, valores comparáveis com as áreas urbanas dos países em guerra civil. Em 2002, os registros mostram 62 homicídios por 100 mil pessoas no Rio, estatística semelhante a da Iugoslávia na década de 1990 ou do Iraque durante a última década. Em 2005, 3% da população mundial vivia no Brasil, mas 11% dos homicídios ocorreram no Brasil.
Grande parte dessa onda de violência se deu por causa da dinâmica que se formou entre o Estado e a favela a partir dos anos oitenta. Primeiramente, o governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola do PDT (Partido Democrático Trabalhista), decidiu implementar uma mudança de política. Tendo sido exilado durante a ditadura e tendo sofrido nas mãos da polícia, Brizola concluiu que as operações policiais maciças que ameaçavam e intimidavam moradores de favelas durante o regime militar precisavam acabar. Concomitantemente, grupos organizados nas favelas foram percebendo que havia uma enorme quantidade de dinheiro a ser feita no tráfico de drogas. Grupos como o Comando Vermelho e Amigos dos Amigos tomaram o controle de muitas comunidades, determinando acesso a gás, água, televisão digital, dominando a cena social da favela, e em muitos casos fazendo (ao seu próprio estilo) justiça no seio das comunidades. Alguns culpam Brizola pelo crescimento do tráfico de drogas nas favelas, mas, realisticamente, as condições perfeitas daquele momento tornaram o seu crescimento inevitável. No entanto, Brizola não é totalmente desprovido de culpa: a sua política de não-intervenção nas favelas aumentou ainda mais o abismo entre o Estado e as comunidades de favela, e fizeram o policiamento neste território muito mais difícil.
Foi neste contexto de crescimento do comércio de drogas que a polícia (e todo o mundo externo, incluindo a mídia e o cinema) começou a relacionar habitantes da favela com a criminalidade. Não importa que apenas uma pequena porcentagem das pessoas destas comunidades estivessem envolvidas no crime, os meios de comunicação e o governo promoveram e incentivaram esta imagem. Isto criou um medo da favela como um espaço e, consequentemente, medo de seus habitantes, levando a cidade a ser dividida em dois espaços na imaginação da população: a favela e o asfalto. Assim, quando a polícia começou a fazer incursões violentas em favelas sob a premissa de combater a guerra contra as drogas, essas ações foram amplamente apoiadas. Comentários como “bandido bom é bandido morto” tornaram-se comuns, e a Polícia Militar chegou a ser descrita, por um de seus mais altos oficiais, como “o melhor inseticida social”. Muitos dos que viviam no asfalto da cidade se sentiam mais seguros sabendo que a polícia estava tomando medidas drásticas contra os criminosos, apoiando a filosofia que usava ‘qualquer meio necessário” para chegar ao objetivo final.
Em 1998, o grupo de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) informou que a Polícia Militar do Rio de Janeiro estava matando 20 pessoas por mês, e culpou o chefe de polícia na época, Nelson Cerqueira, de gratificar oficiais envolvidos em “atos de bravura”. A violência policial atingiu um pico em 2007, quando as forças do Rio de Janeiro mataram 1.330 pessoas, a grande maioria delas nas regiões mais pobres da cidade. Todas estas mortes foram registradas como autos de resistência, o termo usado para descrever um confronto em que a polícia responde em legítima defesa. No entanto, a HRW descobriu que muitos destes casos foram inconsistentes com atos de auto-defesa: balas na parte de trás da cabeça, e múltiplos ferimentos de bala (em um caso, 32 tiros).
Boa parte dessa violência foi realizada pelo braço de elite da Polícia Militar, o BOPE. Com um emblema constituído por duas pistolas na frente de um crânio espetado por uma faca, o mandato do BOPE é bastante claro. Que a música citada acima tenha sido usada em sessões de treinamento do BOPE serve de boa indicação de como o Estado queria que seus funcionários tratassem os problemas nas favelas. A polícia entrava nas favelas em cenas agora famosas por filmes como Tropa de Elite com ataques rápidos e focados utilizando armas de uso militar. O caveirão–um grande caminhão blindado que entra na favela durante incursões policiais–tornou-se um símbolo de como a polícia via os moradores da favela. Sua presença traz medo e intimidação para essas comunidades, implicando todos os seus moradores como potenciais criminosos. Após estes ataques a polícia voltava para a segurança do asfalto, tornando-se ainda mais claro que a favela era um espaço excluído da cidade. Praticamente, a única presença policial em algumas favelas vinha na forma desses ataques, por isso não é nenhuma surpresa que as relações destas comunidades com a polícia fosse extremamente hostil.
Entre o fim da ditadura militar (em 1985) e 2008, a Polícia Militar havia se tornado, portanto, uma grande parte do problema da segurança pública no Rio de Janeiro. O legado do regime militar havia transformado a Polícia Militar em uma força treinada em um modelo de policiamento de guerra, com leis e direitos dos cidadãos em grande parte ignorados. Até 2008, a Polícia Militar do Rio matava uma pessoa para cada 23 presos, uma estatística que é chocante quando colocada em contexto: nos EUA essa proporção é 1 para 37.000. Era necessária uma mudança na política de segurança pública nas favelas, e as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), uma estratégia de policiamento de proximidade, foram inauguradas em dezembro de 2008.
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Patrick Ashcroft é pesquisador e atualmente vive no Rio de Janeiro. Sua dissertação sobre as Unidades de Polícia Pacificadora do Rio (UPPs) foi concluída como parte de seu mestrado em História Contemporânea pela Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha.