Essa é a quarta parte de uma série de quarto artigos sobre a história da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Clique para Parte I, Parte II e Parte III.
Parecia que, entre a inauguração das UPPs em 2008 e 2013, todos estavam prendendo a respiração. Policiais, mesmo em grande parte não se identificando com seu novo papel, para o qual tinha sido insuficientemente treinados, em geral, desempenharam as suas funções de forma profissional, e houve apenas alguns casos (relatados) de corrupção ou de violência da polícia UPP nas favelas. Por sua parte, os moradores das favelas atingidas, embora rápidos em apontar as falhas no programa, reagiram com uma aceitação cautelosa. Os meios de comunicação nacionais elogiavam a queda nas taxas de homicídio e a mídia internacional aclamava o programa como pioneiro.
É importante que fique claro que, apesar de todas as críticas recentes, existem aspectos positivos na atuação das UPPs, particularmente nas favelas menores, onde o policiamento comunitário é, por natureza, mais propenso a ser bem sucedido. A mudança mais óbvia foi a redução da taxa de violência letal dentro das favelas. Desde 2005, a taxa de homicídios na cidade, a qual tem grande porcentagem de casos ocorridos em bairros de baixa-renda, reduziu por quase metade (de 42 por 100.000 a 24), e, significativamente, assassinatos cometidos por policiais no Estado diminuíram de um recorde de 1.330 em 2007 para 415 em 2012. Embora esta redução não possa ser atribuída somente às UPPs, elas têm sido um grande fator. Des-normalizar a propensão para a violência letal e do uso de armas de fogo é um passo extremamente importante para tornar o Rio um lugar mais seguro para se viver, e as UPPs ajudaram a iniciar este processo. Nesse sentido, talvez o impacto mais significativo das UPPs foi o de dar a uma geração de crianças jovens a oportunidade de crescer em um ambiente em que a violência do tráfico de drogas não é a característica dominante de controle social. Os efeitos dessa mudança podem não ser imediatamente mensuráveis, mas certamente terão um impacto positivo no futuro.
A instalação de UPPs em favelas também abriu estes espaços para serviços públicos, empresas, organizações e atores civis que antes não teriam a mesma chance ou a infra-estrutura necessária para chegar a estes espaços. Um dos principais objetivos da UPP era recuperar alguma aparência de controle desses espaços, dando aos atores estatais e civis a oportunidade de trazer as melhorias sociais tão necessárias. Se as melhorias esperadas foram feitas é uma questão que ainda vamos discutir, mas não há dúvida de que a introdução das UPPs fez as favelas locais muito mais acessíveis, em todos os sentidos. Agora há muito mais movimento em ambas as direções, entre o asfalto e a favela, e esta nova mobilidade, tanto física quanto econômica, dos moradores de favelas pacificadas é, apesar do aumento associado do custo de vida, um desenvolvimento positivo.
No entanto, apesar destes sinais preliminares de progresso, estava bastante claro que as UPPs estavam funcionando em um equilíbrio bastante delicado. Havia ceticismo generalizado com relação ao programa, pedindo apenas um incidente para se transformar em desconfiança completa. Isto veio em julho de 2013, com a morte, ou melhor, assassinato, de Amarildo dos Santos enquanto estava detido pela UPP da Rocinha. Neste momento, o tecido frágil sobre o qual o conceito das UPPs havia sido construído começou a se desfazer. Embora tenham havido muitos, mas muitos casos de violência policial ao longo dos últimos 25 anos, devido a suposta filosofia da UPP, e graças ao recém-descoberto alcance das vozes de moradores de favelas através das mídias sociais, este caso em particular causou indignação e se tornou conhecido pela comunidade mais amplamente, tanto em nível nacional quanto global.
Desde então, protestos contra a UPP tem sido crescentes, por uma série de razões. Em primeiro lugar, há uma sensação de que a polícia, como instituição, não mudou. O policiamento comunitário baseia-se fortemente em torno do diálogo e comunicação com a comunidade; no entanto, a maioria das atividades policiais da UPP está sendo parar e deter suspeitos. Isto somado a inúmeras denúncias de policiais quebrando portas de casas, entrando sem aviso ou mandado, e agredindo suspeitos, e então temos um perfil formado de que a política de ação é essencialmente a mesma, embora menos intensa, daquela com a qual pretendia se distanciar. A tortura e assassinato brutal de Amarildo por policiais da UPP, incluindo um comandante, só aumentou este ponto de vista.
Além disso, há um sentimento de que a polícia está tentando implementar um modelo social sobre a favela através da proibição, ou ao menos restrição, dos elementos culturais que considera inadequados. Um exemplo é a proibição de bailes funk ao mesmo tempo em que permite festas em novos clubes noturnos que atraem “playboys” dos bairros ricos da cidade, nos mesmos espaços. A impressão que se mantém é de que o estado, ao invés de tentar integrar a favela à cidade formal, impõe aos moradores das favelas um sistema onde estes continuam a ser vistos, de antemão, como um problema.
Há também uma frustração de que o programa não foi capaz de combater problemas sociais mais profundos enfrentados pelas favelas. A UPP é acompanhada pela UPP Social que tinha como objetivo proporcionar a integração social e econômica através, dentre outras atividades, da criação de fóruns de discussão na comunidade, estimulando o lazer e atividades culturais e fornecendo programas de formação profissional para jovens nas favelas. No entanto, muitos dos projetos sociais da UPP tiveram pouco impacto e, aos olhos de muitos, incluindo Ignacio Cano, especialista em segurança pública, este é puramente um programa de policiamento, com o aspecto social sendo pouco mais do que discurso retórico.
No entanto, o grande problema do programa é que ele, essencialmente, lança um véu de policiamento sobre áreas em que existem tensões com a instituição policial profundamente enraizadas. O conceito geral da UPP não é o principal problema aqui; o problema é que ele está sendo construído sobre bases desastrosamente podres. As tensões entre a polícia e as comunidades de favela têm sido cultivadas ao longo do último meio século (e mais). Embora tanto a polícia quanto os moradores tenham vivido, muitas vezes a contragosto, com essa tensão durante os primeiros quatro anos e meio do projeto das UPPs, foi apenas uma questão de tempo para que passasse do limite. É por isso que tem-se presenciado reações tão violentas contra as UPPs recentemente, apesar delas terem um registro melhor na questão de direitos humanos do que outros ramos da Polícia Militar. O projeto das UPPs, com algumas modificações, era, em teoria, um programa positivo, com potencial para mudar a face da segurança pública no Rio de Janeiro; no entanto, ele está pagando por décadas de negligência que precedem sua existência. Simplesmente não havia uma maneira da mesma instituição policial que matou 1.330 pessoas no Rio em 2007 de, de repente e de forma drástica, transformar sua filosofia e esperar que os cidadãos aceitassem de imediato esta reencarnação.
Para se começar a ter uma esperança de re-modelar a imagem da polícia, esses oficiais precisariam ficar pelo menos uma geração nas favelas afetadas, mas acredita-se que isso não vá acontecer. A UPP é simplesmente muito cara para ser uma estratégia viável a longo prazo. Muitos acreditam que não terão o apoio político após os Jogos Olímpicos de 2016. Programas estaduais foram historicamente abandonados nas favelas, e há um medo natural de que a UPP será mais um na lista. Esta é uma grande limitação: como qualquer um, policial ou morador, pode colocar fé em um programa que eles suspeitam que vai acabar, no máximo, resolvendo apenas parcialmente os problemas pelos quais ele foi estabelecido?
Devido ao planejamento, recursos e dinheiro necessários para fazer o programa funcionar, o programa nunca alcançará (e não pretende fazer isso) todas as favelas da cidade. Isso leva um padrão duplo que é perigoso, uma vez que em algumas favelas o estado promove uma solução pacífica baseada na mediação e comunicação, ao mesmo tempo que em outros ele mantém as táticas bélicas desenvolvidas pela polícia dos últimos 50 anos. Incidentes como o assassinato de seis supostos traficantes no Morro do Juramento no dia seguinte à morte de um oficial da UPP faz sentir-se ainda mais que a UPP é uma manifestação do século 21 “para Inglês ver”. Na maioria das favelas, mais de 700 na cidade, a Polícia Militar ignora amplamente os direitos humanos, ganhando a merecida reputação de uma das forças policiais mais brutais do mundo.
Enquanto isso, o estado está tentando desesperadamente transformar um punhado de favelas selecionadas estrategicamente na Zona Sul a fim de apresentar uma versão higienizada da cidade para as massas e os meios de comunicação que chegarão para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos (enquanto a Baixada Fluminense, que tem as mais altas taxas de homicídios no Estado, teve sua primeira UPP instalada somente este ano). Além disso, desde as primeiras instalações, muitos argumentam que esses locais foram escolhidos para favorecer a especulação imobiliária nos bairros à beira-mar altamente cobiçados e, cada vez mais, as favelas em seu entorno.
Esta estratégia é incorporada pela maneira com a qual as UPPs “retomam” os territórios escolhidos. Avisados com semanas de antecedência que uma comunidade irá receber um posto da UPP, as facções do tráfico de drogas que anteriormente controlavam essas áreas são dadas a oportunidade, são até mesmo encorajadas, a fugir antes da entrada do Batalhão de Forças Especiais (BOPE) . Embora essa tomada de território possa enfraquecer esses grupos, certamente não os destrói; ao contrário, os empurra para outra área da cidade. Isso só serve para criar um deslocamento do crime, mas, talvez, seja este o objetivo: o Estado prefere enfrentar criminosos (e as consequências sangrentas) nas áreas mais periféricas da cidade. Há também especulações de que a polícia tenha forjado um acordo com os grupos criminosos. Seja qual for o caso, parece estranho que o governador Sérgio Cabral, que, em referência à luta contra o crime, uma vez disse que “para fazer omeletes você tem que quebrar os ovos“, seria, um ano mais tarde, a força motriz por trás de um programa que basicamente dá anistia para os criminosos.
Durante os primeiros quatro anos da UPP muitos, inclusive o autor que ora escreve, sentiram que a UPP, se bem gerida, teria o potencial de trazer mudanças duradouras para a segurança pública no Rio de Janeiro. No entanto, após os recentes acontecimentos, está se tornando cada vez mais tentador adotar a visão cínica da UPP como uma máquina de propaganda, com símbolos, logos e slogans aprazíveis para a audiência internacional. Na realidade, as UPPs foram simplesmente muito ambiciosas. O policiamento comunitário é uma ideia louvável, mas a UPP foi implementada tão rapidamente, em uma escala tão grande, e em um ambiente tão volátil, que os problemas que está enfrentando agora eram, na realidade, inevitáveis.
Parece que um programa mais bem sucedido pode acontecer apenas depois dos dois megaeventos. Com todo o sentimento anti-governo relacionado aos custos exorbitantes da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, há muita agitação e cinismo para permitir que a UPP funcione eficazmente. Ironicamente, apesar da Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos terem dado o impulso para mudar a política de segurança nas favelas, o cinismo gerado por isso resultou em um grande obstáculo para o programa. Talvez depois que esses eventos passarem, vá surgir uma oportunidade para criar-se uma estratégia menos motivada pela politicagem.
Qualquer que seja essa estratégia, ela deve incluir uma reestruturação da Polícia Militar. Como vimos ao longo desta série, a Polícia Militar do Rio de Janeiro, ao longo de sua história, tem prejudicado e reprimido as classes mais baixas, tornando-se cada vez mais militarizada em seu policiamento das áreas mais pobres da cidade. Daí resultou em uma completa ausência de confiança da favela para com o Estado, que o programa da UPP tem, quase inevitavelmente, sido incapaz de reverter. A única forma realista de restaurar alguma confiança na instituição seria alterar completamente o arranjo da Polícia Militar, eliminando condenados por corrupção e violência letal, criando uma comissão de supervisão independente, bem apoiada, e se livrar da mentalidade militar que ainda permeia esta instituição. Até então, os conflitos e tumultos acontecendo atualmente nas favelas pacificadas parecem destinados a continuar.
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Patrick Ashcroft é pesquisador e atualmente vive no Rio de Janeiro. Sua dissertação sobre as Unidades de Polícia Pacificadora do Rio (UPPs) foi concluída como parte de seu mestrado em História Contemporânea pela Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha.