O Milagre da Resistência: Lições dos Sucessos dos Quilombos e Grupos Indígenas Urbanos do Rio

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O passado colonial do Brasil criou um panorama sócio-político no qual as questões de raça e etnia continuam a ser problemáticas. Hoje, os grupos indígenas e negros continuam a resistir à ordem social discriminatória criada pelas relações de contato colonial. A Constituição de 1988 e instrumentos internacionais, como a Convenção 169 da Organização International de Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002, protegem os povos indígenas e grupos quilombolas do Brasil. Estas leis formam uma estrutura que permite que esses grupos se organizem de forma autônoma para decidir o seu futuro. No entanto, as disposições legais não são facilmente traduzidas em políticas públicas que melhorem a situação sócio-econômica desses grupos, fazendo da implementação dos direitos constitucionais uma luta contínua. As lutas vividas por grupos étnicos na cidade proporcionam uma janela para idéias persistentes sobre raça e etnia que impedem o reconhecimento dos mesmos como grupos étnicos.

Quilombos Urbanos do Rio: Cultura e Resistência no Sacopã e Pedra do Sal

O Rio de Janeiro colonial, um importante porto de escravos, foi o local de um grande número de quilombos, alguns dos quais ainda fazem parte da paisagem e geografia da cidade. Como explica o pesquisador e ativista brasileiro Kabengele Munanga, quilombo é uma palavra de origem Bantu, uma família de línguas faladas por povos localizados entre o que é hoje a República Democrática do Congo e a Angola. A palavra foi levada ao Brasil durante o período do colonialismo formal através da migração forçada de escravos africanos. Quilombos são hoje não apenas um fato histórico, mas uma realidade sócio-política do país. Eles são popularmente representados como comunidades rurais de escravos fugitivos, que permaneceram em seus territórios desde a abolição da escravatura, simbolizadas pelo mais famoso, o Quilombo dos Palmares. No entanto, esta definição colonial e restrita não consegue compreender as complexas e dinâmicas realidades dos atuais grupos quilombolas do Brasil. Na realidade, os quilombos surgiram onde quer que houvessem escravos africanos, em contextos urbanos e rurais, bem como em outros países, como a Colômbia ou Equador.

O resultado das mobilizações do movimento negro no contexto da redemocratização foi, entre outros, o Artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias, que garante a quilombolas o direito ao título de suas terras. Em 2003, o Decreto 4887 nomeou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) como responsável pela demarcação de terras quilombolas. Desde então, o laudo antropológico necessário para o processo de titulação desencadeou a ressemantização e expansão do conceito de quilombo, como consolidado na definição de 1994 da Associação Brasileira de Antropologia:

“Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica.Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar”.

É dessa forma que deve-se entender os quilombos urbanos do Rio de Janeiro, o Sacopã e o Pedra do Sal. Eles estão respectivamente localizados na Lagoa, bairro de classe alta (ao lado da Lagoa Rodrigo de Freitas na Zona Sul) e no Centro da cidade na região portuária. Ambos ainda estão passando pelo longo e burocrático processo de titulação de suas terras, com o Sacopã prestes a receber seu título com a visita do presidente do INCRA amanhã. Depois de anos de luta para obter legalmente a sua terra, os quilombos urbanos carregam uma mensagem importante de resistência para outros grupos que resistem à remoção e expulsão.

O que esses quilombos urbanos têm em comum é a sua importância como espaços de resistência negra e da cultura do samba. O Sacopã tornou-se famoso por suas festas de samba e pagode nos anos 1970 e 80. Os membros do Pedra do Sal foram protagonistas na criação do próprio samba, e participando de escolas de samba como a Império da Tijuca. Além disso, o Pedra do Sal tem uma importância tanto histórica quanto atual para a área portuária do Rio e para os terreiros de Candomblé, tendo sido recentemente reconhecido como área de especial interesse cultural.

Ambas as comunidades são testemunhas da presença histórica dos negros em bairros hoje disputados pela especulação imobiliária e ambas estão localizadas em áreas que foram submetidas a complexos processos de gentrificação e branqueamento. Durante a agressiva política de remoção das favelas durante a ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970, a paisagem da Lagoa mudou radicalmente com a remoção forçada de comunidades como a Favela da Catacumba–hoje Parque da Catacumba–e a favela Praia do Pinto, onde hoje se encontra o condomínio Selva de Pedra do Leblon.

Hoje, a Lagoa é um bairro de classe alta. A região portuária, onde o Pedra do Sal está localizado, faz parte de um projeto de revitalização que está aumentando significativamente o valor imobiliário da área. Neste contexto, os interesses econômicos são expressões da discriminação racial. Ambos os quilombos têm incessantemente resistido às tentativas de remoção, mas não sem perdas. Dessa forma, ao passo que a área em torno deles tem sido gradualmente branqueada, os quilombos permanecem como lembrança física de que a resistência é possível.

Sua identidade como quilombo foi fundamental nas conquistas que tiveram até hoje. Devido à sua determinação de permanecer onde têm morado há gerações, à sua identidade cultural e às possibilidades oferecidas pelo Artigo 68 e pelo Decreto 4887, eles obtiveram o reconhecimento do direito legítimo às suas terras em um contexto de deslocações massivas. O que outros–como os moradores da Favela da Catacumba–não puderam fazer, eles alcançaram. Como diz Luiz, o líder do Sacopã:

“Nós somos talvez uma das resistências número um no país devido à localização em que nos encontramos, devido ao valor econômico deste local. Portanto, o racismo não é tão forte, porque nós lutamos contra o poder econômico e a capacidade dos poderosos de influenciar todas as questões políticas–e conseguimos vencer… Temos de ter sido ajudados pelos Orixás. Depois de tudo que passamos, as pessoas se perguntam: ‘Como é que eles ainda estão aí?'”

Em uma cidade como o Rio de Janeiro, esta é uma mensagem importante de força e de esperança. A esperança dos quilombos inspira o ativismo diário dos grupos de resistência.

A Associação Índígena Aldeia Maracanã

Os direitos étnicos também são importantes para a população indígena do Brasil, hoje composta por 305 grupos étnicos, de acordo com o censo de 2010 do IBGE, falando em torno de 150 a 180 línguas indígenas. O período de redemocratização do Brasil testemunhou o aumento do protagonismo dos povos indígenas, que garantiram o fim do poder tutelar formal na Constituição e o reconhecimento de uma série de direitos, como o direito à sua cultura e à educação diferenciada.

Devido às dificuldades das áreas rurais, especialmente aquelas onde os agricultores vizinhos e o agronegócio ameaçam as comunidades indígenas, muitos povos indígenas optaram por migrar para os centros urbanos em busca de melhores condições de vida, educação e emprego. O IBGE estima que cerca de 324.000 indígenas vivem fora das Terras Indígenas (ou TIs), 80% deles na região Sudeste do Brasil. A cidade de São Paulo, por exemplo, tem uma população de cerca de 13.000 indígenas na área urbana, e tem um movimento indígena bem articulado desde os anos 1980. Na cidade do Rio de Janeiro, onde o IBGE contou 6.000 indígenas urbanos, o fenômeno é muito mais recente.

Em 2006 o movimento Aldeia Maracanã ocupou o prédio abandonado do Antigo Museu do Índio, localizado ao lado do Estádio do Maracanã. O objetivo era dar maior visibilidade ao movimento indígena do Rio de Janeiro. Eles permaneceram no prédio até 2013, onde realizavam eventos mensais de contação de história. Naquele ano, o governo do Rio decidiu que o local deveria servir às necessidades da próxima Copa do Mundo e removeu seus moradores indígenas, ameaçando derrubá-lo para construir um estacionamento.

Reunindo apoio popular e a atenção da mídia, o grupo conseguiu proteger o prédio, que agora está tombado. No entanto, os moradores foram obrigados a se realocarem para o alojamento temporário, onde moraram por mais de um ano. Este ano, eles finalmente se mudaran para o bloco de apartamentos reservado para eles em um condomínio do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida. O prédio do Antigo Museu será agora renovado em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura e se tornará um Centro de Referência da Cultura Indígena Viva, funcionando como um museu vivo e como uma embaixada para outros povos indígenas quando vierem para a cidade. Os membros formaram agora oficialmente a Associação Indígena Aldeia Maracanã e estão criando o Conselho Estadual Indígena com o objetivo de garantir políticas públicas, como de habitação e saúde, para os povos indígenas que vivem no Estado do Rio de Janeiro.

A presença de indígenas fora das terras indígenas formalmente designadas ainda é uma idéia que muitos precisam aceitar, inclusive o público em geral. Mas até mesmo as instituições governamentais, inclusive a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que é responsável pela política indigenista do Brasil, ainda tem de adaptar o seu entendimento. Quando muitos órgãos, inclusive federais e estaduais, não reconheceram os membros da Aldeia como indígenas legítimos, eles ficaram institucionalmente impotentes.

Apesar da ausência de apoio do Estado, no entanto, eles conseguiram reunir o apoio de outros e alcançaram o seu objetivo de assegurar o prédio do Antigo Museu como lugar de resistência indígena. Quando grupos como a Aldeia reivindicam direitos na cidade, os povos indígenas estão virando a compreensão colonial de etnicidade e indianidade de pernas para o ar. Semelhante aos quilombos, esse entendimento associa a indianidade com comunidades rurais e geograficamente distantes, como identidades pré-modernas e radicalmente diferentes. Quando essas identidades surgem na cidade, quando os indígenas usam jeans e dirigem carros e continuam a se auto-declarar indígenas, os preconceitos contra eles se tornam mais aparentes. Eles lutam por afirmação como cidadãos legítimos que, apesar de estarem na cidade, não deixam de ser indígenas. Nas palavras do cacique Marcos Terena: “Eu posso ser o que você é, sem deixar de ser quem eu sou”.

O Milagre da Resistência

Por um lado, a etnicidade é um facilitador, pois torna possível a reivindicação de uma série de direitos baseados na alteridade cultural, como garante a Constituição de 1988. Por outro lado, é também limitadora, porque os mantém repetidamente sob a definição colonial de etnicidade. Esse preconceito limita tais grupos étnicos a comunidades rurais, distantes, pré-modernas e menos influentes. Portanto, grupos étnicos no contexto urbano como a Pedra do Sal, Sacopã e Aldeia Maracanã lutam contra tais tentativas de mantê-los “em seu lugar” geográfico e social. Ao resistir, esses grupos mobilizam suas diferenças culturais e étnicas para afirmar sua igualdade como cidadãos. A nova noção de direitos civis que formou a base da Constituição de 1988 criou muitas possibilidades para os grupos que se auto-identificam com categorias étnicas, seja como quilombolas ou indígenas.

No entanto, é importante ressaltar que as conquistas desses grupos são, em grande maioria, resultado de sua própria teimosa militância, forçando o Estado a cumprir as promessas que faz. Sem o ativismo persistente desses grupos, os direitos étnicos permaneceriam apenas mais uma cláusula constitucional ou lei sem vida, que “não pegou”. Entre os muitos obstáculos que estes grupos enfrentam pode-se citar a lenta e morosa burocracia do Estado, que se torna evidente no processo de titulação dos quilombos. A burocracia, aliás, junto com os interesses econômicos, funciona para ocultar a discriminação racial, porque os indivíduos mais ricos são capazes de contornar o aparelho burocrático com seus recursos econômicos e seu poder de influência no sistema judicial. Neste contexto, quando Luiz, do Quilombo Sacopã, falou das muitas razões pelas quais eles conseguiram ficar quando tantos outros foram forçados a deixar suas casas, ele disse: “Ah, o milagre da resistência”.

Parece que no Brasil, apesar da existência de um quadro legal inclusivo, só o milagre da resistência pode garantir os direitos étnicos.

Nascida e criada no Rio, Désirée Poets está realizando seu doutorado na Universidade de Aberystywh, País de Gales, onde também concluiu seu mestrado em Políticas Pós-Coloniais. Seus interesses são mobilizações políticas urbanas, atualmente com foco em raça e etnia nos espaços urbanos.