Este artigo é uma versão revisada de um trabalho apresentado na Reunião Anual da Associação de Geógrafos Americanos (Tampa, FL. Abril 2014)
Um arquiteto recentemente descreveu o programa Morar Carioca como “a maior promessa não cumprida” do Rio de Janeiro. Durante os últimos anos, vimos um projeto ambicioso e visionário de urbanização da favela ser incorporado dentro do legado das Olimpíadas, cooptado por interesses políticos, e abruptamente desmantelado sem grandes explicações.
Em 2010, o Prefeito Eduardo Paes incluiu o programa Morar Carioca como peça-chave no legado social dos Jogos Olímpicos de 2016. Formalmente uma extensão do programa Favela-Bairro, o Morar Carioca teria sido o programa mais abrangente de urbanização de favelas na história da cidade, construído em cima de uma geração de conhecimentos técnicos e arquitetônicos acumulados. Através da modernização com participação local das favelas e um orçamento de R$8 bilhões, o programa se comprometeu em integrar todas as favelas à cidade formal até o ano 2020. As obras de grande escala incluiriam melhorias no saneamento básico, instalações de esgoto, iluminação nas ruas, asfaltamento das ruas e calçadas, construção de espaços públicos verdes e áreas de recreação, melhoria na conectividade dos transportes, estabilização de moradias e a construção de centros de serviços sociais.
“Morar Carioca, como foi escrito, é o sonho de um planejador urbano para as favelas,” disse Theresa Williamson, planejadora urbana e diretora da ONG Comunidades Catalisadoras. O plano inclui um admirável modelo de participação, a urbanização local que reconhece as prioridades dos moradores, foco na sustentabilidade, e um parâmetro de zoneamento especial de “interesses sociais” visando manter as áreas como moradia acessível. “Isso teria sido um legado de verdade, não somente para o Rio, mas também um modelo para cidades do mundo inteiro”, concluiu.
A antropologista Mariana Cavalcanti descreveu o lançamento do programa em 2010 como “uma época muito esperançosa e otimista”, na qual uma série de políticas de infraestrutura, moradia, e temas sociais estavam emergindo para transformar radicalmente o Rio de Janeiro. Durante uma visita de campo em 2012, arquitetos e urbanistas expressaram um senso de urgência e excitação. Eles visionaram que o programa Morar Carioca iria reparar as disparidades na infraestrutura urbana e prestação de serviços, imaginando meios em que o desenho urbano poderia alterar padrões espaciais de segregação e exclusão social na “cidade partida”.
Em dezembro de 2010, os resultados do concurso organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) saíram, com 40 escritórios de arquitetura selecionados para intervir em conjuntos de favelas designados. O primeiro grupo de onze empresas foi contratado em junho de 2012 e começou a realizar diagnósticos qualitativos em parceria com a iBase, ONG contratada pela Secretaria Municipal de Habitação (SMH) para organizar encontros participativos para coletar demandas dos moradores. Porém, repentinamente e sem nenhum aviso prévio, a Prefeitura rompeu o contrato com a iBase em janeiro de 2013, financeiramente desmantelando os projetos e deixando a SMH sem uma metodologia efetiva para se comunicar com as comunidades.
Dentre de poucos anos do lançamento do programa, “todo o esquema foi desfeito”, lembra Cavalcanti, conforme o Morar Carioca foi desmantelado e seu nome reapropriado para servir outros fins políticos.
Um sonho perdido
Dois anos atrás, o Prefeito anunciou que a urbanização de todas as favelas do Rio de Janeiro seria feita até 2020 como um aspecto central do legado das Olimpíadas. Ele promoveu essa mensagem para uma audiência internacional durante um TED talk em abril de 2012, no qual ele proclamou que ” a cidade do futuro tem que ser socialmente integrada” e explicou que “as favelas as vezes fazem parte da solução”.
“Agora ele não está mais dizendo isso”, disse Pedro da Luz Moreira, antigo coordenador do programa e atual presidente do IAB do Rio de Janeiro. Houve um “esvaziamento do programa e um enfraquecimento de sua capacidade”.
Em janeiro e fevereiro de 2014, eu conduzi uma série de entrevistas de acompanhamento para descobrir a “resposta oficial” da pergunta: o que aconteceu com o Morar Carioca? Apesar de versões fragmentadas do projeto ainda estarem em andamento–incluindo a reapropriação do nome do programa em uma série de intervenções que não condizem com a metodologia de participação–a visão original de integrar as favelas da cidade como uma parte do legado das Olimpíadas parece ter falhado, dado que as estruturas de financiamento e participação estavam orientados para respeitar o prazo de 2016.
Quando questionado sobre o Morar Carioca em um evento em 2013, o Prefeito Eduardo Paes citou a falta de recursos financeiros. Porém, entrevistas de acompanhamento com os arquitetos e urbanistas ofereceram explicações mais cínicas, muitas vezes codificadas na linguagem de mudança de agendas políticas, equilibrando as prioridades e interesses conflitantes.
Pedro da Luz Moreira afirmou que o Morar Carioca “saiu da agenda política”, descrevendo um prefeito que abandona um projeto baseado em suas vontades políticas. Os entrevistados descreveram uma série de “engarrafamentos” que impediam o programa, que culminou em “uma revisão do Morar Carioca e seus objetivos”, como explicou um entrevistado com muito tato.
Antônio Augusto Veríssimo, ex-Coordenador de Planejamento e Projetos da SMH, explicou, “Nós (SMH) não tomamos a decisão… todas as ordens para suspender [os contratos] vieram de cima para baixo. Foi uma ordem direta do prefeito”. Quando perguntado sobre as empresas de arquitetura restantes, acrescentou cuidadosamente: “Nós não tivemos um sinal verde do prefeito para contratar o resto das equipes”, descrevendo uma “desaceleração”do programa e como o dinheiro foi desviado para outras agendas.
Vários críticos sugeriram uma ligação entre os meses mais ativos do programa Morar Carioca e a campanha à reeleição do prefeito no final de 2012, durante o qual ele frequentemente promoveu o programa Morar Carioca. A antropóloga Mariana Cavalcanti imaginava que o prefeito de repente acordou depois de sua reeleição e sentiu a pressão do prazo de 2016, levando-o a reajustar suas prioridades. Mas ela acrescentou que o prefeito tem instintos de direita e que “Morar Carioca está longe de estar no topo de suas prioridades”.
Mesmo agora, as explicações para o desmantelamento do programa permanecem obscuras para aqueles que buscam informações compreensivas sobre o programa, inclusive no site da Cidade Olímpica, que chama o programa Morar Carioca “uma verdadeira revolução em termos de integração social”, e ainda identifica o programa como um dos legados olímpicos mais importantes da cidade. O que resta aparente é que um programa ambicioso que se gabava da participação comunitária e integração de toda a cidade foi desmantelada na ausência de diálogo e transparência.
Enquanto isso, apesar da implementação mínima, o Morar Carioca ganhou o Prêmio Siemens Comunidade Sustentável, e o próprio prefeito está sendo bendito internacionalmente, evidenciando as campanhas de marketing de sucesso que têm obscurecido a triste realidade do desmantelamento do programa.
A falta de “vontade política”
Vários entrevistados compreenderam o arquivamento do programa como a dura realidade da política local: o prefeito está empenhado em uma série de interesses, enquanto administra as necessidades temporais, financeiras e espaciais de uma quantidade enorme de obras públicas no âmbito da preparação para o próximo evento esportivo internacional. Mas essas justificativas são insuficientes para as comunidades que receberam a fase participativa do Morar Carioca e agora estão sendo marcadas para remoção.
Vila União de Curicica é uma dessas comunidades que passou, em apenas dois anos, de esperança de urbanização pelo Morar Carioca para a ameaça de remoção completa para o sistema Bus Rapid Transit (BRT). Mariana Cavalcanti foi a antropóloga contratada pela empresa para intervir no grupo de oito favelas localizadas em Jacarepaguá, Zona Oeste. Ela sugere que o contrato da empresa foi abruptamente cancelado porque a Prefeitura percebeu seu erro de cálculo político em decidir melhorar essas favelas perto da futura sede olímpica. Seria mais fácil romper o contrato e retirar essas comunidades invisíveis “silenciosamente e sem conexão”, como alternativa de fazê-lo com os holofotes do Morar Carioca e diretrizes rigorosas de reassentamento do programa.
Cavalcanti afirma que o Morar Carioca não foi–como vários críticos sugeriram–um pretexto para legitimar os despejos. Em vez disso, ela argumenta que as remoções habitacionais acabaram sendo mais urgentes para o projeto olímpico do que melhorias participativas.
“Não há tempo de sobra para diagnóstico social. Agora [em 2014] eles só tem que tirar essas pessoas de lá o mais rápido possível e o Morar Carioca fica no caminho de suas necessidades, pois foi tão bem desenhado”.
Arquitetos e urbanistas mantêm sua visão inspiradora para o Morar Carioca: um programa que expande o Favela-Bairro, enfatizando uma metodologia participativa, prestação de serviços consistentes e equitativos e manutenção a longo prazo dos projetos. Veríssimo descreveu o programa Morar Carioca original como um modelo “revolucionário” que teria transformado a cidade.
“Esta é uma visão que cultivou durante algum tempo, mas a realidade mostra que não foi possível”, disse ele.
Sr. da Luz Moreira afirmou que a ideia por trás do Morar Carioca continua, mesmo que o programa em si tenha sido “esvaziado”, concluindo: “Nós não estamos encontrando a vontade política eficaz de implementar [esses projetos]”.
Exigindo habitação “padrão FIFA”
O desmantelamento do programa Morar Carioca nos proporciona uma reflexão crítica sobre o quadro do “legado” frequentemente utilizado para legitimar o recebimento de megaeventos. A justaposição entre o modelo visionário do Morar Carioca e sua não implementação fornece um exemplo importante para os líderes urbanos considerando os Jogos Olímpicos como um catalisador para iniciativas de desenvolvimento. Ele fornece um exemplo claro do que Hayes e Karamichas têm descrito como “a aparentemente crescente desconexão entre o prazo de 2016 e os requisitos estéticos do projeto olímpico que estariam com certeza substituindo o ritmo lento da participação da comunidade e exigências prosaicas, como sistemas de esgoto”. Além disso, sobre a visão de holofotes internacionais, as estratégias empresariais seguidas pelos líderes para tornarem suas cidades em “cidades globais” não são percebidas como coerentes com a urbanização de favelas. Além disso, os objetivos das elites políticas estão amarrados com os interesses privados que são incompatíveis com projetos e princípios de redistribuição.
Em junho de 2013, manifestantes tomaram as ruas para exigir o direito à cidade. Clamavam por processos participativos e gestão democrática em uma cidade que está cada vez mais sendo vendida a interesses imobiliários por trás de portas fechadas. Eles expressaram raiva contra a “sociedade do espetáculo” ao exigir serviços públicos como saúde, educação e transporte no “padrão FIFA”. Finalmente, muitos manifestantes pediram o direito à moradia digna e o fim da prática de remoções forçadas em nome de eventos esportivos.
As tensões inerentes ao programa Morar Carioca–juntamente com a realidade de sua não implementação–dialogam com muitos destes temas. Neste momento de transformação urbana acelerada no Rio de Janeiro em que a retórica da “herança” será exercida para justificar uma série de projetos de exclusão é hora de exigir que o Morar Carioca retorne à mesa de negociações.
Kate Steiker-Ginzberg começou a pesquisar o programa Morar Carioca para a sua tese de graduação em 2012 pela Universidade de Columbia. Desde então, ela viveu vários períodos no Rio de Janeiro e continuou a pesquisar e escrever sobre o impacto de megaeventos na cidade.