Esta é a segunda de três contribuições do RioOnWatch ao Blog Action Day 2014, Dia Global de Ação dos Blogueiros, cujo tema de reflexão para 2014 é: Desigualdade. Veja todas as matérias publicadas hoje no RioOnWatch aqui.
Os preparativos no Brasil para a Copa do Mundo de 2014 foram tumultuosos. O mundo inteiro assistiu como nós brasileiros, inconformados com o aumento das tarifas de ônibus, no contexto dos gastos exorbitantes com os megaeventos esportivos, tomamam as ruas em uma onda de protestos em junho de 2013. Os preparativos para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 não apenas revelaram as profundas e persistentes desigualdades no Brasil–por exemplo, moradores das favelas têm sido forçadamente removidos em nome da infra-estrutura desejada para os eventos–mas serviram também como uma oportunidade para o debate e ativismo. Neste contexto, o Brasil experienciou um fenômeno peculiar e bastante breve: os rolezinhos em shopping centers. Apesar de terem durado apenas alguns meses, entre o final de 2013 e início de 2014, eles questionaram uma série de profundas desigualdades socioeconômicas e padrões de segregação espacial das cidades brasileiras contemporâneas, uma característica de uma série de metrópoles ao redor do globo.
O shopping center, locus da cidadania do consumismo
Como os rolezinhos conseguiram isso? A palavra “rolé” significa “caminhada casual, pequena”, e é assim que eles começaram: como nada mais do que encontros em shoppings de dezenas, as vezes centenas de jovens, moradores das periferias de cidades como São Paulo–a primeira a experienciar o fenômeno em sua forma atual–Rio de Janeiro, Belo Horizonte e outras. Organizando os encontros através das mídias sociais, os grupos se encontravam para dar um “rolé” no shopping, que é o lugar de exclusividade, luxo e consumismo por excelência das cidades brasileiras.
Os rolezinhos parecem ter sido concebidos como uma mera atividade de lazer por alguns ou até pela maioria dos participantes. De acordo com o organizador de um rolezinho em São Paulo, Paulo Barros, 16, “o objetivo é conhecer pessoas novas, curtir, tirar bastante fotos e postar nas redes sociais depois. A gente não foi no objetivo de criar confusão”. Outros, no entanto, como, Jefferson Luís, 20, que planejou um rolezinho no Shopping Internacional de Guarulhos em São Paulo e Franklin Rabelo, 23, organizador de um rolezinho no Shopping Iguatemi, em Brasília–que nunca aconteceu porque as autoridades fecharam o shopping no dia–tinham motivações políticas. Eles afirmaram que os rolezinhos eram uma reação contra a segregação social do país e a falta de investimentos em locais de lazer em seus bairros de origem, nas áreas menos privilegiadas da cidade. Para Franklin, o Shopping Iguatemi “é um símbolo dessa segregação social que existe na cidade” e o evento foi organizado “para exigir investimentos em políticas públicas como esporte e lazer, para que a juventude tenha acesso a espaços públicos de entretenimento para além dos shoppings”.
No entanto, talvez não sejam tanto as intenções e razões para participar dos rolezinhos que revelem a sua dimensão política, mas sim a reação que os mesmos causaram. Rapidamente, tornou-se evidente que os rolezinhos não eram bem-vindos nos shoppings. Os gerentes dos centros comerciais e das lojas mostraram o seu medo de uma multidão de jovens negros e de baixa renda reunidos com a intenção de se divertir, mas vistos como potencialmente perigosos. O medo da desordem, do caos e da violência que subjaz a lógica da criação de espaços de homogeneidade forçada, de previsibilidade, respeitabilidade e exclusividade como shoppings–o que os antropólogos têm chamado de ‘enclaves fortificados’–raramente havia antes ficado tão óbvio. Logo, os rolezinhos foram criminalizados pelos administradores dos shopping, pela mídia e pela polícia, que relataram furtos e se queixaram da “desordem” causada pelos participantes. O Shopping Leblon, por exemplo, localizado em um dos bairros mais ricos do Rio de Janeiro, fechou suas portas no dia 19 de janeiro, quando um rolezinho estava planejado. No mesmo mês, um número de shoppings paulistas, como o JK Iguatemi e o Shopping Itaquera, obtiveram liminares contra rolezinhos.
Esse simples ato de associação em shoppings articula as falhas do planejamento urbano das cidades brasileiras, mais explicitamente, como já mencionado, a falta de espaços públicos de lazer e atividades culturais para jovens, especialmente em áreas menos privilegiadas.
As atividades de lazer, então, foram realocadas para espaços privados de consumo, tais como shopping centers. Não é possível separar o planejamento urbano no Brasil dos padrões de desigualdade e segregação do país, já que as relações sociais se manifestam na organização do espaço, que por sua vez influenciam como os cidadãos, os moradores da cidade, podem interagir uns com os outros.
O geógrafo Milton Santos (1926-2001), por exemplo, estudou em profundidade a dimensão geográfica das relações de produção e explorou as “geografias da desigualdade” de países do Terceiro Mundo, ou como as dimensões da desigualdade impactam sobre a organização do espaço geográfico e vice-versa. Além disso, o ambiente de uma pessoa determina seu acesso a recursos, tais como serviços públicos e educação, e, portanto, pode melhorar ou limitar a sua mobilidade social. Em suas palavras, em O Espaço do Cidadão:
“Todo homem vale o lugar onde está: o seu valor como produtor, consumidor, cidadão, depende de sua localização no território. Por isso, a possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde se está. Enquanto um lugar vem a ser a condição de sua pobreza, um outro lugar poderia, no mesmo momento histórico, facilitar o acesso àqueles bens e serviços que lhes são teoricamente devidos, mas que, de fato, lhe faltam”.
A urbanização no Brasil expressou e reforçou ainda mais as relações desiguais do país, onde os valores sociais foram subordinados aos interesses econômicos, em um quadro onde o consumismo domina os valores democráticos. O número crescente de shoppings e centros comerciais, no contexto do aumento dos condomínios fechados no Brasil, nos diz algo sobre o estado da desigualdade no país.
Rolezinhos como um movimento político
Os rolezinhos são uma expressão de como os jovens moradores da periferia compreendem e abordam o seu suposto lugar nesta desigualdade socioespacial. Eles querem ser incluídos nos espaços de consumo e lazer das áreas privilegiadas, e esta é também uma reivindicação por cidadania. Esta reivindicação é explicada nas seguintes palavras da socióloga Vera Malaguti Batista, quando ela escreve sobre a criminalização da pobreza e da marginalidade:
“.um certo discurso sobre o crime precisa ser repetido ad infinitum e ad nauseum por ser fundamental para a gestão dos pobres, aqueles que não devem freqüentar o shopping, o templo da cidadania do consumo. Quem falou que nossos meninos morrendo ou matando por um boné da Nike não estão se batendo pela cidadania oferecida por este momento do capitalismo?”.
Em um sistema capitalista como o nosso, o poder de compra e o consumo são confundidos, assim como entrelaçados, com a cidadania. A classe de uma pessoa é um fator determinante do seu acesso a direitos e cidadania em um Estado como o brasileiro, no qual a Constituição garante a igualdade formal e a inclusão universal dos brasileiros, mas a distribuição substantiva de direitos ainda segue a lógica do privilégio e das relações desiguais de poder. Como James Holston argumenta, os pobres não têm o privilégio de ter direitos. Em vez disso, eles são criminalizados e repetidamente excluídos da cidade e da cidadania através de um discurso do medo, do crime e da violência, repetidamente reforçado pelos meios de comunicação, assim como pelo negócio da segurança privada, liderado pelos Estados Unidos, que tem visto um crescimento médio anual de 15-20% nos últimos oito anos e tem crescido durante os preparativos para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
É por isso que os rolezinhos fazem sentido como movimento político. Na realidade, o primeiro rolezinho foi explicitamente político. Aconteceu em 2000, no shopping Rio Sul em Botafogo, bairro carioca de classe média-alta, como o documentário Hiato (2008) demonstra. Naquele ano, membros do movimento sem-teto decidiram ir dar um “rolé” no Rio Sul como forma de protesto contra a sua exclusão. O documentário mostra como as reações a esse grupo são notavelmente semelhantes às observadas na recente onda de rolezinhos, esta última nem sempre organizada com motivações explicitamente políticas. Os atendentes de lojas recusaram-se a servir os sem-teto, perplexos com a sua presença, fechando lojas e chamando a polícia. Parece que, 14 anos depois, nenhuma lição foi tirada dessa forma inovadora de protesto.
Os rolezinhos foram breves e rapidamente perderam seu espaço na mídia. Antes até mesmo que os gerentes de lojas e shoppings, a mídia, acadêmicos e o público em geral pudessem entendê-los de uma forma sustentada, os eventos foram criminalizados e, por sua vez, essas tentativas de pará-los controlá-los politizou os rolezinhos. Organizados por uma mistura de motivações políticas e recreativas, eles revelaram as desigualdades socioeconômicas e espaciais e a segregação das cidades brasileiras, que têm testemunhado um aumento no número e tamanho dos condomínios fechados, na vigilância, bem como a privatização dos espaços públicos. A criminalização dos pobres está ligada a um discurso de insegurança no capitalismo avançado, e isso se torna extremamente claro no caso dos rolezinhos. A mera presença de um grande número de jovens de baixa renda da periferia gerou preocupações com a segurança nos shoppings, que deveriam servir como um paraíso de tranquilidade e segurança para o consumista rico em um país muitas vezes percebido como devastado pela violência, pela criminalidade e insegurança.
Esse breve momento de resistência política e de lazer provocou um longo debate sobre o presente e o futuro da democracia no Brasil. Dito isto, é oportuno terminar aqui com as palavras de Milton Santos, que, olhando para o futuro, afirmou que uma mudança profunda não virá “dos Estados Unidos ou da Europa. Virá dos pobres, dos ‘primitivos’ e ‘atrasados’, como nós, do Terceiro Mundo, somos considerados. Estas não poderão vir das classes obesas. Estas não podem ver muito. São os pobres os detentores do futuro”.
Nascida e criada no Rio, Désirée Poets está realizando seu doutorado na Universidade de Aberystywh, País de Gales, onde também concluiu seu mestrado em Políticas Pós-Coloniais. Seus interesses são mobilizações políticas urbanas, atualmente com foco em raça e etnia nos espaços urbanos.