Esta é a terceira e última de três contribuições do RioOnWatch ao Blog Action Day 2014, Dia Global de Ação dos Blogueiros, cujo tema de reflexão para 2014 é: Desigualdade. Veja todas as matérias publicadas hoje no RioOnWatch aqui.
O Brasil é conhecido pelo seu nível histórico de desigualdade social, e talvez não exista lugar melhor para observar este fato e suas consequências do que o Rio de Janeiro. Embora o coeficiente de GINI no Brasil tenha diminuído de forma impressionante na última década–ou seja, o abismo entre os mais ricos e mais pobres diminuiu–o Rio, a segunda maior cidade do país, ficou na mesma situação durante este período, mesmo recebendo as mesmas políticas federais que reduziram a desigualdade no resto da nação. Isso quer dizer que as melhorias estão sendo contrabalançadas pelas políticas e os padrões de desenvolvimento locais. Os processos desta preocupante situação são complexos e tão variados quanto as opiniões que moradores do Rio têm sobre eles.
RioOnWatch vem cobrindo políticas públicas, remoções e violações dos direitos humanos associadas à preparação da cidade para os megaeventos e como estas mudanças urbanas recentes têm sido sentidas e percebidas pelas comunidades nas favelas cariocas. Neste artigo, analisamos um projeto do outro lado dos problemas crônicos de desigualdade no Rio: uma ilha de luxo em uma cidade marcada por segregação: o mais novo condomínio de classe alta do Rio, sem medo de mostrar suas intenções, que são claramente representadas em seu nome: Ilha Pura.
Um novo modelo de exclusividade urbana e isolamento
Ilha Pura é o novo projeto imobiliário sendo construído na Barra da Tijuca, o bairro de luxo de crescimento acelerado na Zona Oeste do Rio e aonde acontecerão o maior número de eventos dos Jogos Olímpicos de 2016. Composto de mais de 3,600 unidades alojadas em 31 prédios construídos em sete blocos com o custo estimado de R$4 bilhões, Ilha Pura será maior que o bairro inteiro do Leblon. O vídeo promocional, que é mostrado em uma sala de cinema no showroom de Ilha Pura e no qual 91% dos atores são brancos, anuncia que o empreendimento será “o bairro que nasceu pronto”. A primeira rodada de apartamentos possui o valor inicial de R$765,000. Potenciais compradores podem fazer um tour na área e conferir o prédio-modelo do condomínio fechado, completamente mobiliado, e uma área que lembra um santuário que mostra os trabalhos prévios das construtoras Odebrecht e Carvalho Hosken.
O nome–Ilha Pura–enfatiza a missão de renovação e deixa implícito o isolamento do contexto urbano ao redor do projeto. E realmente é um nome que combina com este condomínio que planeja reestruturar a forma como o espaço urbano é pensado na Barra da Tijuca.
O projeto é um exercício de autocontenção: piscinas, parques enormes, playgrounds, academias, estruturas esportivas, espaços de trabalho e uma ciclovia de quatro quilômetros são parte do ambicioso design de Ilha Pura, e tudo isso seguramente cercado.
Devido à seu enorme tamanho, Ilha Pura leva a decorrente tendência de condomínios fechados na Zona Oeste do Rio de Janeiro à um novo nível. Porém, seu tamanho e design são somente duas razões pelas quais o projeto está chamando a atenção da mídia. O condomínio abrirá suas portas para se tornar a Vila Olímpica, acomodando 1800 atletas que competirão nas Olimpíadas e Paraolimpiadas de 2016. Depois disso, os apartamentos serão vendidos para compradores privados.
Esta relação especial de Ilha Pura com o futuro megaevento é um exemplo de coordenação interligada entre a Prefeitura e empresas privadas, já que o projeto ganhou vários privilégios concedidos a projetos de renovação urbana financiados pela Prefeitura na preparação das Olimpíadas. O bairro está sendo desenvolvido em conjunto–e espera-se que se beneficie disso–da nova BRT da TransOlímpica, o mesmo projeto que removerá 900 famílias da comunidade próxima Vila União de Curicica. O BRT da TransOlímpica funciona então com uma dupla função para a construção de Ilha Pura. Ele conecta Ilha Pura com o resto da cidade através do transporte público, e simultaneamente remove comunidades afrodescendentes de baixa renda da região, assim completando a missão de isolamento de Ilha Pura dos “problemas e impurezas” da cidade.
Parece que as pessoas sendo removidas das favelas que cercam o condomínio só participarão deste espaço como a mão-de-obra de condomínios fechados como Ilha Pura. Mesmo assim, eles poderão trabalhar nestas áreas porque o corredor da TransOlímpica fornecerá acesso à trabalhadores que moram em lugares distantes. Ilha Pura exemplifica os controles políticos e territoriais exercidos por construtoras de imóveis na Barra: as construtoras Odebrecht e Carvalho Hosken são duas das maiores construtoras do Brasil. Carvalho Hosken, fundador e CEO da construtura, é o maior proprietário de terras na Barra da Tijuca e Odebrecht é conhecida como uma das maiores doadoras de dinheiro para campanhas políticas, assim como influenciadora central em recentes esquemas de corrupção do governo.
Promesas de sustentabilidade
Além das reivindicações da Ilha Pura à fama por conta de sua escala e design e por ser a futura Vila Olímpica, o projeto também reivindica o prestigioso status de ser o primeiro empreendimento com o certificado LEED-ND no Brasil. LEED é o certificado mais reconhecido de “prédios verdes”, com firmas de arquitetura no mundo todo procurando ganhar os mais altos certificados para superar as demais. LEED-ND é o certificado do criador deste selo, o Green Building Council dos Estados Unidos (USGBC), que vai mais além: não se trata somente de um prédio sustentável, mas do desenvolvimento de um bairro sustentável.
Com uma nota de 47 pontos de um mínimo de 40 para a certificação, o condomínio de Ilha Pura é propagado como um oásis urbano sustentável. Durante um tour dentro das facilidades oferecidas, um representante da Ilha Pura citou recursos que fazem o projeto sustentável: sistemas que coletam água da chuva que abastecerá o local com água semi-potável, vidro refletor que irá diminuir a necessidade de ar condicionado, postos de recarga de veículos elétricos e elevadores que regeneram energia através da fricção. Esses recursos são explicados e louvados nos muitos folhetos e pacotes de informações disponíveis para potenciais investidores e compradores.
Entretanto, Ilha Pura parece inconsistente com aspectos fundamentais da proposta geral do LEED-ND, como o foco em desenolver crescimento e redesenvolvimento em áreas pré-existentes e já servidas, enquanto evitando áreas ecológicas sensíveis: zonas úmidas, corpos d’água, várzeas e terras agrícolas.
Nota-se que Ilha Pura não alcançou dois créditos LEED-ND que poderiam ter atenuado suas desigualdades sócio-econômicas: o crédito por “Vizinhança de Renda Mixta e Diversa” que é conseguido através da inclusão de uma mistura de tipos de habitação e preços acessíveis; e o crédito por “Engajamento da Comunidade” que é conseguido através do envolvimento de moradores e empresas vizinhas no design do projeto.
Outro aspecto preocupante deste certificado é que uma organização com o nível de influência mundial como o da USGBC, dá a aparência de funcionar contrariamente ao seu próprio princípio orientador de promover a igualdade social (veja o princípio No. 4 em seu plano estratégico). É irônico que Ilha Pura tenha sido certificado, ao mesmo tempo que a USGBC liberou um crédito de Igualdade Social para o sistema de classificação LEED-BD + C. Em sua marcha ao redor do mundo para capturar o mercado de certificação verde, a USGBC precisa repensar seu foco histórico em grandes construturas, e ampliar a aplicação do LEED para incluir e beneficiar todos os cidadãos de uma comunidade, “pura” ou não.
Com vários projetos de LEED-ND pendentes no Brasil, devemos nos perguntar: quem estes projetos beneficiarão?
A linguagem de pureza e exclusividade
Uma das características mais emblemáticas do projeto Ilha Pura é a linguagem peculiar seus fomentadores utilizam para descrevê-lo. Frases rebocadas nas paredes do prédio de vendas do projeto mostram como as relações públicas tentam articular a sua legitimidade: “Humanizar e urbanizar”; “Inovar e construir um legado”; “Respeite e desfute.”
A palavra “acessibilidade” é repetida sem qualquer consideração aparente sobre os problemas que a Ilha Pura apresenta de todos os lados. Embora o acesso ao transporte aumentará com as próximas mudanças na infraestrutura, a probabilidade de alguém de classe alta, que escolhe um estilo de vida de condomínio fechado, ainda mais este caso da Ilha Pura de extremo isolamento, usar este tipo de infraestrutura é mínima. Fora isso, o bairro fica a mais de uma hora do Centro da cidade do Rio de Janeiro. Em termos das grandes conotações de acessibilidade, o projeto é inerentemente inacessível: sua exclusividade é na verdade o seu principal ponto de venda para potenciais compradores. A linguagem da pureza no nome do projeto por si já revela a falta de questionamento da desigualdade condicionada na sociedade brasileira pela elite.
Os vídeos promocionais passando no cinema da Ilha Pura fazem muitas referências ao futuro da Barra da Tijuca como sendo um novo centro de atividade urbana no Rio. Imagens das praias do bairro, lagoas e montanhas acompanham declarações sobre a “imersão na natureza” da Ilha Pura, sendo o “lugar ideal para mim”, onde “tudo foi pensado para mim.” A voz, de Fernanda Montenegro, termina dizendo que aqui ela pode “respirar um ar diferente, não só puro mas mais leve.”
A desigualdade é sustentável?
Enquanto a Ilha Pura pode se gabar por operar com um certo nível de sustentabilidade ambiental, há uma gritante desconsideração da sustentabilidade social da região. Ao apresentar-se como um desenvolvimento da elite ligada ao legado olímpico da cidade, a Ilha Pura visa atrair compradores que desejam experimentar o “novo” Rio que está sendo construído na área. Com isso, as comunidades de baixa renda próximas, como Vila Autódromo e Vila União de Curicica, que se desenvolveram organicamente ao longo de décadas, de acordo com as necessidades de habitação e a visão dos seus moradores, estão sob ameaça de despejo. Apesar da Ilha Pura tentar apresentar o projeto como um componente-chave de um novo centro urbano na Barra, o isolamento e a segregação implícita no nome e estrutura do projeto só contribuem para maiores tensões entre aqueles que vivem dentro de condomínios fechados e aqueles que vivem em comunidades marginalizadas e ameaçadas de despejo.