As histórias dos moradores de rua do Rio de Janeiro estão sendo contadas pela página do Facebook chamada RIO Invisível.
Os criadores da página, Nelson Pinho e Yzadora Monteiro, ambos de 23 anos, falam com os moradores de rua, tiram seus retratos e postam as histórias na página, que já ganhou mais de 67 mil curtidas desde que foi lançada em setembro. No estilo da página americana ‘Humans of New York‘, Pinho e Monteiro buscam transformar as percepções sobre a população de rua do Rio.
“Nós percebemos que a rua é um lugar de passagem, e que os moradores de rua são parte dessa passagem, mas ninguém sabe da história deles”, disse Monteiro. “No começo [RIO Invisível] não ia ser só sobre os moradores de rua, mas também de outras pessoas que são silenciadas. Aí vimos que eles são os mais silenciados, eles sempre foram representados por outras pessoas e não por eles mesmos”.
As fotos, a maioria de pessoas vivendo nas ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro, são postadas com uma transcrição da conversa entre os criadores e o retratado, sem uma introdução ou narrativa. Isso porque o foco do projeto é que as pessoas representem a si mesmas, com o menor tipo de intervenção possível.
“Às vezes recebemos mensagens dizendo: ‘mas o que você postou é verdade?’ Nós não nos preocupamos com isso, não duvidamos da história deles. Foi dito, o encontro aconteceu, e é assim que a pessoa quer ser representada”, explicou Monteiro.
Em três meses de existência, a página ganhou mais de 67 mil curtidas. Monteiro diz que o sucesso se deve à curiosidade escondida que existe sobre os moradores de rua.
“Eu acho que havia uma lacuna a ser preenchida, era uma voz que não existia e de que as pessoas inconscientemente sentiam falta. Os moradores de rua não são invisíveis, mas suas histórias são. Nós recebemos muitas mensagens dizendo ‘vem aqui e fala com este morador de rua, eu quero muito saber a história dele’. E nós motivamos as pessoas a irem lá e falarem com eles, a derrubarem esse muro”.
Com esse objetivo, Monteiro e Pinho lançaram uma página de submissões no Tumblr, onde os leitores podem enviar suas próprias histórias e fotos. Eles querem motivar os leitores a não só buscarem a história, mas ter uma troca humana com alguém para quem eles normalmente não olham duas vezes.
“A gente não coloca tudo que eles falam online”, disse Monteiro. “Algumas pessoas não querem ser fotografadas. Mas nós vamos e conversamos e conhecemos eles”.
De todas as pessoas com quem Monteiro conversou, a que mais se destacou foi uma mulher chamada Valéria. Ela perdeu sua casa por ter deixado um namorado abusivo e sua história tocou Monteiro.
“O namorado dela batia nela e ela levou muito tempo pra deixar ele, porque ela gostava muito dele. Enquanto eu falava com ela, eu comecei a perceber uma grande força nela e isso mexeu comigo. Toda vez que eu perguntava alguma coisa, ela perguntava de volta pra mim. Isso que é legal, que estamos criando uma relação horizontal. São duas pessoas se relacionando e tendo uma conversa espontânea e solta”.
Abaixo alguns dos posts do RIO Invisível:
Valéria
“Pode me chamar de Valéria. Ih, nem sei minha idade direito. Eu tô por fora. (…) Moro por aqui mesmo já tem um tempinho. Aqui é um lugar bom, sabe? Ainda mais quando a gente começa a lembrar das coisas, fica melhor ainda. Mas só adianta lembrar, não muda nada…
Às vezes eu fico em outro lugar, dentro da minha mente, e deixo meu espirito trabalhar sozinho no meu corpo, entende? Tem muita coisa que esqueço, me perco. Quando você começa a cutucar até lembro, mas de um jeito que vem machucando. Faz um tempão que não namoro. Está fora da minha rotina, sabe? (…) Gostaria de voltar ao meu ritmo como antes, ir pros bailes… Mas é tanta pedrada, tanto julgamento, que você fica sem entender. Até o dia que eu vi que essas coisas não me pertenciam mais: briga, violência. Chega!
Queria que as coisas voltassem do jeito que eram antes, sem as brigas. Já encontrei com ele algumas vezes, mas não deu em nada. Acho que nem vai dar tão cedo. Gostaria muito de reconquistar todos os caras que eu tive alguma coisa. Mas sem essa violência toda em cima de mim.
(…) Mas a minha maior vontade, diante do reino do céu e da terra, é viver no meu paraíso com meu amor. Nós dois. Mas eu tô tão fora dele que nem sei mais se gosto mesmo. Devo gostar de outro e tô falando dele. (…) Eu adorei te conhecer, mas hoje eu não tô aqui não.”
Enquanto conversávamos, um amigo de Valéria apareceu. Ele disse: “Sabe por que ela não lembra de muita coisa? Porque viveu no inferno. Ela perdeu muita felicidade, o sonho dela foi perdido”.
Guilherme
“Meu nome é Guilherme, tenho 20 anos. Tô com cara de acabado, né? Eu moro na rua há 4, mas tenho casa. Saí de lá por causa de briga e não volto mais–é muita dor de cabeça. Agora, meu melhor amigo é o Fox, meu companheiro. Encontrei ele na rua em 2012. Começou a me seguir e não largou mais. Faz o maior sucesso com esse óculos. Foi ideia de um doidão que passou e disse que eu ficaria famoso assim.
Conquistei os moradores da região. Eles me ajudam muito. Uma senhora me deu a ideia de começar a vender livro. Recebo doações, leio e vendo. Acho que já li pra lá de 400, sem brincadeira. Leio de tudo, mas sempre releio a Bíblia. Fechada é só um livro, mas, quando você abre, é mais do que isso. Uma vez uma moça chegou aqui com depressão, recitei um Salmo pra ela e saiu com sorriso de orelha à orelha.
Já me chamaram pra roubar, mas não acho certo. Eu espero que um dia eu alcance meu objetivo: sair da rua. Hoje mesmo tirei meus documentos. Só tá faltando a carteira de trabalho.”
Após me indicar alguns livros, Guilherme passou um pente no Fox para tirar a foto.
Dorian
“Meu nome é Dorian, D-O-R-I-A-N. Nasci dia 23 de janeiro de 1960. Moro na rua desde 1992, fui expulso de casa um ano depois que meu pai morreu. Ele foi meu exemplo de pessoa e amigo, não cheguei a conhecer a minha mãe – ela morreu quando eu tinha três anos. Minha madrasta não gostava de mim e nem dele. No enterro, enquanto alguns choravam, ela sorria. Ficou com a casa, com o dinheiro e eu vim parar aqui.
Na rua, discriminam muito a gente, nos chamam de mendigo. Mas todos nós somos pessoas. Não adianta, pode ser pobre ou rico, todo mundo um dia vai partir e ir pro mesmo lugar. Minha tia era muito rica, mas se suicidou. A filha ficou com a herança e, hoje, mora em Brasília e está casada com um piloto de avião. Está benzão.
Não tive mais família, não conheci ninguém na rua. Eu sonho com uma mudança. Quero sair daqui, arranjar um emprego, mas estou sem documento. Não tiro outro porque não tenho nem onde guardar. Já trabalhei em supermercado, lavei ônibus e também tocava violão em bares. Em troca, ganhava comida.
Eu nunca fui artista não, aprendi a tocar sozinho, tinha um bolo daquelas revistinhas com acordes. Pra animar, adorava tocar Roberto Carlos, Tim Maia e até em inglês… Aquela que tem um hino muito bonito, do John Lenon, conhece? Imagine. Falavam que eu canto bem, tinha gente que dançava e tudo. Ano passado eu toquei uma música para um pessoal lá e todo mundo gostou. Aí eu estava andando com o violão no ombro e, não sei o que houve, ele escapuliu da minha mão, caiu no chão e quebrou. Fiquei sem.”
Dorian quer ganhar na loteria. Com prêmio, ele vai comprar uma casa, conhecer o Brasil todo e “tirar uma ondazinha nos Estados Unidos”.
Soraia
“Meu nome é Soraia. Tenho 37, quase 40 anos. Eu trabalhava como doméstica e morava com essa família. A gente fica tanto tempo cuidando da casa de uma pessoa que sente falta de ter a nossa. Um dia resolvi sair pra poder ter a minha vida. Não fazia ideia de que ia ficar na rua esse tempo todo. Estou há mais de um ano. Muito tempo.
É ruim. Eu nunca fui uma pessoa de rua. A gente sente falta da família, alguém de confiança, do convívio mesmo. Aqui, conversamos com um ou outro, mas faz falta uma pessoa que já te conhece – tanto faz se é boa ou ruim, pelo menos já te conhece. Família mesmo, né? Vejo um monte de gente passar durante todos os dias, mas nunca os vi. Eu penso em voltar pra casa, mas eu comecei a ficar com a roupa suja e o ônibus não para pra mim.
E eu nem lembro o endereço, só vou saber indo. Não sou essa pessoa que guarda nome de rua, sabe?”
Quando fotografamos Soraia, ela estranhou a máquina. Em seguida, a foto: “Quem é essa pessoa?”